Pode a poesia ser usada em prol da saúde mental?

Variante da arteterapia, a poetoterapia - abordagem terapêutica que utiliza a poesia como ferramenta de expressão emocional - é já uma prática comum em vários países, com especial incidência nos Estados Unidos. Em Portugal, está ainda em fase embrionária. E há ressalvas que é importante fazer, alerta a Ordem dos Psicólogos.

Imagine-se confortavelmente sentado numa poltrona, de livro na mão, a ler um dado poema que porventura reflete aquilo que está a sentir. Até aqui, a sugestão pouco tem de disruptivo. Agora, pense que este cenário decorre durante uma sessão de psicoterapia e que o “exercício” é uma forma de ajudar a expressar aquilo que de outra forma não consegue e, em última instância, de promover o seu bem-estar. Se o quadro aqui descrito lhe merece estranheza, saiba que a poetoterapia, como habitualmente é designada, é já uma ferramenta adotada pelo Mundo fora, com particular incidência nos Estados Unidos, onde, desde 1983, existe até uma federação nacional dedicada ao tema (em 2014 renomeada International Federation for Biblio/Poetry Therapy [Federação Internacional de Biblioterapia/Poetoterapia]).

Variante da biblioterapia, que é o uso da leitura como ferramenta terapêutica, a poetoterapia é, nas palavras de Rui Lopes, psiquiatra que trabalha no Hospital Lusíadas de Braga e um dos poucos médicos portugueses que já recorre à leitura de poemas em contexto de consulta, “é uma forma de abordagem terapêutica de arteterapia que utiliza a poesia como ferramenta de expressão emocional e autoconhecimento, permitindo que os indivíduos explorem e elaborem sentimentos e experiências de uma forma criativa e simbólica através da linguagem poética”. É ele quem nos ajuda a perceber as origens desta ferramenta que, reconhece o clínico, “tem ainda diminuta expressão em Portugal”.

“Os primeiros registos que existem remontam ao tempo dos romanos. A título de curiosidade, consta-se que, na altura, os papiros eram até dissolvidos numa solução para que pudessem ser ingeridos e tomados como se fossem medicamentos. Mais tarde, o médico grego Sorano de Éfeso ficou conhecido por prescrever tragédias para os pacientes acelerados ou eufóricos e comédia para os doentes deprimidos.” Da Antiguidade para a modernidade, há dois nomes importantes a reter: por um lado, o de Samuel Crothers, ensaísta americano que, no início do século XX, cunhou o termo “biblioterapia” (que inclui não só a poesia, mas todos os outros géneros literários); por outro, o da Clínica de Menninger (EUA), que, anos mais tarde, deu nas vistas à conta de “uma colaboração entre os médicos e os bibliotecários para que fossem prescritos livros”.

“E assim acabaram por ser os grandes impulsionadores desta ferramenta”, destaca Rui Lopes, que é também investigador da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Décadas depois, surgiu a tal federação nacional (que, entretanto, passou a internacional) e, à boleia dela, outros passos importantes para a credibilização da chamada poetoterapia, como a criação de “um comité de académicos que dá formação e garante a certificação nesta área”.

Mas, afinal, quais são as vantagens potenciais da poetoterapia? Rui Lopes fala de “um método complementar, acessível [no sentido em que um livro basta para a aplicar], que pode ser usado em vários contextos, desde as escolas ao trabalho com a comunidade no geral” e que, pondo “o foco no poder da palavra falada e escrita”, permite “explorar as experiências e o sentimentos de forma criativa e simbólica”, até pelas suas “múltiplas significâncias”. Refere ainda o facto de se tratar de uma ferramenta “fácil de aplicar, que capta a curiosidade e a criatividade dos próprios pacientes” e que “estimula a empatia na relação terapêutica”.

“Muitas vezes, os doentes que sofrem de depressão, ansiedade ou outras doenças do foro psíquico vivem numa redoma de isolamento e a poesia pode ajudá-los a sentirem-se compreendidos, a ver as suas emoções validadas.” O clínico realça ainda a mais-valia da poetoterapia nos casos em que “há dificuldades de expressão, seja porque os doentes estão deprimidos e até com alguma lentificação do raciocínio, seja porque sofrem de alexitimia, que é a dificuldade em descrever emoções, sentimentos e sensações corporais”. Além da possível ajuda ao nível do “fortalecimento da autoestima”.

Questionado sobre o tema, Miguel Ricou, presidente do Conselho de Especialidade de Psicologia Clínica e da Saúde da Ordem dos Psicólogos, admite que “pessoas que se envolvem na arte, na poesia e na escrita, sobretudo pessoas que tenham particular sensibilidade e gosto nestas áreas, podem tirar benefícios disso”, mas chama a atenção para dois aspetos que, no seu entender, merecem particular precaução: “Desde logo, preocupa-me o agente que vai aplicar a técnica. Porque é óbvio que se ela for aplicada por alguém que não tenha formação e experiência adequadas nesta área pode causar estragos.”

Mas há mais: “Outra coisa que me preocupa é a possibilidade de passar a ideia errada de que isto é algo que podemos generalizar e adotar em todos os casos. Nesse sentido, acho que o nome que se dá, poetoterapia, pode ser algo problemático, pela impressão errada que se pode dar de esta ser uma abordagem terapêutica em si mesma. Quando mexemos com pessoas que não estão bem, temos de ser extremamente cuidadosos”. A “Notícias Magazine” questionou ainda o Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e a Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental sobre o tema, mas não obteve resposta.

Rui Lopes, que começou a recorrer à leitura pontual de poemas em consulta já em 2019, quando ele próprio lançou o primeiro livro de poesia como forma de “catarse emocional”, concorda que a poetoterapia está longe de se aplicar a todos os doentes. Desde logo porque só faz sentido usá-la em “situações moderadas, em que a pessoa esteja estabilizada”. No seu caso, recorre a esta ferramenta com cerca de “30% dos pacientes, regra geral pessoas mais racionais, com um QI mais elevado e que têm dificuldade em expressar-se”. Habitualmente, recorre aos seus próprios poemas, mas “não é obrigatório”, frisa. Pelo Mundo fora, há, aliás, vários casos de colegas que o fazem com poemas de autores consagrados, de Goethe ao português Fernando Pessoa.

“Costumo recorrer aos meus poemas por haver um conhecimento mais profundo do eu poético e das emoções descritas, o que, a meu ver, ajuda a estabelecer uma relação mais intimista e próxima com o paciente”, ressalva, sublinhando que o que mais o entusiasma enquanto psiquiatra “é a relação e a interconexão com os pacientes”. “Entendo que a empatia é a nossa grande arma”, frisa.

E, portanto, quando vê que há recetividade por parte do doente, escolhe um poema que se adeque ao quadro emocional descrito e procedem em conjunto à leitura do texto, em busca de um paralelismo com o estado do doente e, desejavelmente, de uma catarse. “Por vezes, há a mobilização das chamadas lágrimas secas, algo muito comum em quadros de depressão. Há doentes que, à custa de um mecanismo de defesa, passam meses e meses sem chorar, e a leitura do poema pode ajudar a desencadear o choro.” Noutros casos, a reação não é tão visível a olho nu, mas a ideia será sempre que o processo redunde numa “catarse emocional e eventualmente física”. “É como se a poesia ajudasse a induzir a esperança”, entende Rui Lopes.