No IPO do Porto, há agora um sino a cantar a esperança de quem deixa os tratamentos para trás. Mas o regresso à normalidade é - sobretudo para os pais - um novelo complexo e frágil, tecido a medo, insegurança e dúvidas. A boa notícia é que a nuvem da incerteza tende a dissipar-se com o tempo.
Juliana Araújo, 15 anos, aguarda pacientemente na sala de espera das consultas pediátricas do IPO do Porto. O espaço há muito se tornou familiar, ela e a mãe já por ali passaram um sem-fim de vezes desde que, em 2022, lhe foi diagnosticado um osteossarcoma, perderam a conta aos medos indizíveis que ali enfrentaram. Hoje, porém, Juliana é o rosto da leveza, livrou-se por fim do cateter, tem um sorriso sereno, está impecavelmente arranjada e maquilhada. Hoje, vem para tocar o “sino da esperança”, que chegou ao IPO em fevereiro e desde então tem ajudado a alavancar o otimismo das famílias que por ali passam. A ideia é simples: quem conclui o tratamento, tem direito a três badaladas, que representam o fim de um ciclo e o início de outro, desejavelmente livre das amarras do cancro. “Lutei, venci, toco o sino para celebrar”, pode ler-se na face mais visível do sino (ou sinos, porque há um no internamento e outro no piso das consultas).
Em ambos os casos, a mesma simbologia. “Representa a esperança, é uma forma de mostrar que o objetivo é chegar aqui”, explica Filomena Maia, responsável pelo serviço educativo do IPO do Porto. A ideia veio a reboque de um projeto internacional, que teve origem num hospital do Texas, em 1996, e desde então tem sido replicado nos EUA e na Europa, com incontidas doses de emoção. “O processo por que estas famílias passam é tão moroso que tocar o sino é sempre um momento muito significativo, com muita emoção, para eles, para os pais, até para os profissionais – eu emociono-me sempre!”, confessa Filomena. O ato é voluntário, só toca o sino quem quer, e a ideia é que familiares e profissionais se juntem também, qual catarse coletiva. Juliana trouxe a mãe, a irmã, uma prima, às tantas junta-se a médica que a acompanha, o serviço educativo, Juliana faz o sino ecoar com pujança, sorri muito, emociona-se, é uma sexta-feira cinzenta, mas cá dentro há um quentinho a dar cor à esperança.

Sónia Pereira, a mãe, está com as emoções à flor da pele, tem os olhos marejados, parece ainda cambaleante, há dentro dela um emaranhado de sentimentos por gerir: o alívio, a ressaca de um período “muito doloroso”, o medo que a faz andar sempre de pé atrás. “Mesmo em casa estamos sempre com receio, a perguntar se está bem, se lhe dói alguma coisa. Agora os valores já estão todos bem, mas o medo fica.” Sónia já sofria de ansiedade, com o cancro da filha piorou, faz medicação, mas calar as vozes que a desconcertam por dentro ainda é uma luta diária. É certo que Juliana já voltou à escola, que a vida começa aos poucos a recompor-se, mas o pós-cancro, e o pós-cancro pediátrico em particular, é muito mais um caminho de curvas e solavancos do que uma travessia reta e airosa.
Que o diga Maria, que o diga Miguel, são pais de Susana, uma menina de oito anos que deu entrada no IPO em maio de 2022, com uma leucemia linfoblástica aguda do tipo B e terminou a quimioterapia intravenosa há quase dois anos (a oral manteve-se até junho deste ano). “Acho que para nós, pais, acaba por ser mais difícil, vemos muita coisa naqueles meses, temos conhecimento de situações que estavam a correr bem e depois tiveram um volte-face, não podemos dar nada por garantido”, aponta a mãe. “Claro que o fim dos tratamentos é um marco, a vida de alguma forma fica mais facilitada, mas o medo é o mesmo”, realça o pai. “Não há grande vontade de festejar nada, até porque não queremos correr o risco de enguiçar o que quer que seja. E eu nunca fui supersticioso.”
Miguel puxa a fita atrás. Lembra que, em março de 2022, a filha começou a ter umas febres que iam e vinham, que a levaram a uma consulta, que lhes falaram de virose. Mas os sintomas mantiveram-se, a febre não arredava pé, ela estava cada vez mais apática, foram pedidas análises, detetou-se um problema linfático, nessa mesma noite Susana foi internada no IPO. Eles ficaram ambos em choque, a mãe mais emocional, o pai mais pragmático, as semanas que se seguiram foram de uma angústia sem nome. Susana começou a ter dores, mais os efeitos da quimio, às tantas “os valores desceram” e teve de ficar em isolamento.
Acordaram que a mãe ficaria com ela, ao pai caberia tratar da logística, levar roupas, lavar roupas, devolver roupas, desinfetar tudo. “Nessa altura, via-a cá de baixo da janela e ia-me embora, foi duro, ainda hoje me custa falar nisso”, assume, com a voz a fraquejar. Quando chegou a hora de as ir buscar para voltarem a casa, teve um “enorme choque”. “Ela vinha com uma aparência muito diferente, muito mais magra, as pernas pareciam ossos, já tinha alguma dificuldade em andar.” Miguel aguentou-se, “que remédio tive”, chorou muitas vezes, tantas na viagem de regresso a casa, mas sempre sozinho.
Pelo meio, tentaram sempre incutir à filha a premissa de não se ver como uma vítima, acham que resultou, orgulham-se disso, Susana é uma menina feliz e sociável e aparentemente sem traumas. Para os pais (que entretanto se separaram), o processo é mais complexo. “Acho que a Susana não ficou com grandes triggers [gatilhos], eu fiquei mais”, admite o pai. Naqueles meses de angústia profunda, viveu episódios particularmente duros. O dia em que lhe rapou o cabelo porque ele não parava de cair, o dia em que a filha teve um pneumotórax e ele a viu a ser aberta para que pudesse respirar, o dia em que voltaram a casa e ela teve um ataque de pânico. “Isso também me partiu o coração, ver uma criança de cinco anos com medo de morrer.” Ou o dia em que a filha mudou o tratamento e sofreu um “choque anafilático violento”, que a levou aos cuidados intensivos do Hospital de São João, no Porto, outro “cenário dantesco”. Ou o simples facto de ter partilhado quarto com crianças que já partiram. Peças de um trauma que se prolonga.
Para a mãe, não tem sido muito diferente. Se o dia do diagnóstico foi o pior que teve na vida, porque achou que a doença seria fatal, os meses que se seguiram foram vividos numa espécie de piloto automático, a resolver problemas, a arranjar distrações “para tentar tornar tudo mais suportável”, a tentar sobreviver. “Durante o período do tratamento, há tanta coisa com que temos de lidar que não há espaço para nos irmos abaixo.” Mais tarde, sentiu necessidade de procurar apoio psicológico. Mas ainda hoje vive num limbo que a obriga a um esforço de equilíbrio constante. “Por um lado, há um grande alívio, por ela já ir à escola, por não ter de estar sempre a faltar, por já ter uma vida bastante normal. Antes, faltava muito , com frequência tinha de ficar em isolamento, havia uma grande instabilidade. Por outro lado, há o receio, nós sabemos tanta coisa, às vezes é difícil não pensar.”
Para Maria, o regresso à vida dita normal teve ainda uma outra dificuldade, que explica o facto de não ter querido ser fotografada nem identificada pelo apelido. É que, a dada altura no processo de recuperação de Susana, deixou o trabalho que antes tinha. E arranjar um novo foi um desafio. Sobretudo quando, semana sim semana não, a filha ficava doente e ela tinha de ficar com ela em casa. A dada altura, num processo de recrutamento, chegou à fase final e tudo parecia estar a correr às mil maravilhas. “Mas quando disse que de 15 em 15 dias precisava de ir com a minha filha ao IPO, tive a nítida perceção de que o rumo da entrevista mudou. E a verdade é que acabei por não ficar.” Ou mais uma dificuldade do pós-cancro pediátrico, a juntar a uma lista que já vai longa.
Nem tudo é mau, ainda assim. Há conquistas que a confortam. A maior de todas, lá está, é sentir que a filha “não tem grandes fantasmas”. E que “amadureceu muito”. “Vivemos tudo de forma muito aberta, a doença dela foi sempre falada na escola, tivemos uma experiência muito positiva, a professora foi excecional, a Susana esteve sempre em contacto com os colegas, viram-na sem cabelo primeiro, depois com cabelo outra vez, acho que tudo isso foi muito importante para que houvesse uma certa normalidade no regresso. E, na verdade, o que me parece é que ela já esqueceu muita coisa. Pouco fala disso e já aconteceu falarmos de certas coisas daquele período e ela não se lembrar, o que é um alívio muito grande. Até diz que tem saudades de ir ao IPO, por causa dos amigos que lá fez.”
Stress pós-traumático
Este desfasamento entre a angústia dos pais e uma maior naturalidade dos filhos no regresso à rotina não é propriamente uma exceção, confirma Carla Ribeiro, psicóloga na delegação de Braga da Liga Portuguesa Contra o Cancro, que tem uma especialização em psicologia oncológica. “Não é possível generalizar nem definir exatamente a forma como diferentes crianças e adultos lidam com o período a seguir à doença. Até porque também depende muito da faixa etária das crianças”, começa por ressalvar (sem surpresa, crianças mais pequenas tendem a lidar melhor do que adolescentes). Ainda assim, “de uma forma geral, os pais têm uma maior consciência e uma maior perceção a longo prazo”. O que frequentemente faz com que “as crianças, a partir do momento em que recuperam a rotina, se sintam melhor mais rapidamente” e que os pais tendam “a ficar mais preocupados com os cuidados que é preciso ter, mais ligados ao receio de que o cancro volte, a eventuais sequelas da doença ou dos tratamentos”. Defende, a propósito, que seria importante os progenitores terem mais informação disponível “sobre a fase do pós” e um maior apoio económico, dado que muitos deles deixam a vida profissional em standby para se dedicarem aos filhos.
Quanto a eventuais recidivas, Teresa Oliva, oncologista pediátrica, partilha números de alguma forma animadores. “A Organização Mundial de Saúde só considera a doença curada após dez anos do fim do tratamento. Mas a cada ano que passa há menos probabilidade de recair. E, atualmente, a taxa de sobrevida a cinco anos é de 85%. Há 50 anos andava nos 58%, é uma melhoria muito grande.” Menos positivo é o facto de o número de novos casos seguir em crescendo. Ao IPO do Porto, em particular, chegam cerca de 80 novas situações por ano. “Mas estes problemas hoje também são detetados muito mais cedo.”
Voltando ao pós-cancro, Ana Monteiro, responsável da Acreditar (associação de pais de crianças que têm ou tiveram cancro) na região norte e centro, recorda que há vários desafios que se colocam também às crianças e adolescentes. “Desde logo o facto de poderem regressar à escola com outra imagem. Mas também dificuldades de integração, de socialização ou do ponto de vista cognitivo. Podem cansar-se mais, ter dificuldades ao nível da memória, menor capacidade de atenção, não conseguir acompanhar tão bem. Isto obriga a que a escola esteja atenta e aberta a certos ajustes, para reintegrar a criança da melhor forma.” Já os pais podem mesmo sofrer de stress pós-traumático. Carla Ribeiro, psicóloga da Liga, reconhece isso mesmo. “Um diagnóstico de cancro é um momento de crise, um trauma que pode ter esse efeito. Vai sempre depender dos recursos que cada um tiver em cada momento para lidar com a situação. Mas é um cenário possível. Também por isso é importante que haja um apoio às crianças e aos pais.” Alterações de sono significativas, labilidade emocional, dificuldade de retomar as rotinas, dificuldade de expressão emocional ou um constante reviver de episódios traumáticos são sinais potenciais de que o tal stress pós-traumático está instalado, muitas vezes associado a quadros de ansiedade.

(Adelino Meireles)
Flávia Silva, mãe de Teresinha, menina de seis anos que começou a ser tratada no IPO aos 20 meses por causa de uma leucemia, lembra-se do momento em que percebeu que a experiência traumática que viveu andava a estilhaçá-la por dentro. Aconteceu em 2022, Teresinha já tinha entrado na fase da vigilância, já tinha voltado à escola, já tinham ido todos à Disney, agora andavam a fazer uma espécie de “rota dos castelos” em várias cidades portuguesas. Naquele fim de semana, o destino era Santa Maria da Feira. Dias antes, Flávia notou na filha umas quantas pisaduras, o quadro era-lhe insuportavelmente familiar, levou-a à pediatra, foi aconselhada a dirigir-se ao IPO. Só que Flávia já tinha prometido aquela viagem à filha, além disso, pensou, se aquilo fosse o pior que podia ser, não voltariam a ter aquela oportunidade tão cedo, o melhor seria seguir viagem e na segunda-feira entrar em contacto com a médica do IPO. Foi exatamente isso que fez, descobriu dias depois que as pisaduras nada significavam, Teresinha estava ótima, a leucemia não tinha voltado. O problema é que aquele fim de semana que era suposto ser de alegria e lazer foi para Flávia uma perfeita tortura. “Passei o tempo todo num medo e numa ansiedade brutais, a perguntar-me se estaria a ser uma mãe irresponsável. Foi aí que percebi que precisava da ajuda da psiquiatria.”
Recuemos agora a 2019, ao momento daquele diagnóstico assombroso, depois de terem aparecido a Teresinha umas nódoas negras que simplesmente não passavam. Quando a isso se juntou a febre, rumaram ao hospital de Braga, as análises confirmaram a leucemia, de lá já só saíram para o IPO. Quando soube do diagnóstico, Sebastião, o pai de Teresinha, não conteve as lágrimas, Flávia não, não chorou, na verdade durante o período mais crítico nunca chorou. É o tal modo de sobrevivência que se ativa por instinto e que só na acalmia dá de si. Durante meses, canalizou todas as energias que tinha para tornar os internamentos e os longos períodos de isolamento de Teresinha o mais divertidos possível, recorrendo a jogos, a lápis de cor, a lápis de cera, a uma criatividade sem fim.
Foi sempre ela que ficou com a filha no hospital, na altura ainda dava de mamar, deu durante muito tempo depois disso, a opção foi, por isso, óbvia para ambos. Foram meses longos, pesados, que o apoio incondicional da família e dos amigos ajudou a suportar melhor. O regresso a casa também teve o seu quê de desafiante, tudo tinha de estar impecavelmente esterilizado, os lençóis todos os dias tinham de ser trocados, era uma pressão permanente. Em junho de 2020, recebem, por fim, boas notícias: Teresinha passa do internamento para os tratamentos de quimio em hospital de dia, foram mais dois anos assim.
Até que em março de 2022 chegou o momento tão desejado, Teresinha fez por fim o último mielograma, tudo estava bem, em abril a família seguiu para Disney, foi tudo inesquecível naqueles dias. Com as boas notícias veio o livre-trânsito para o regresso à normalidade, Teresinha pôde por fim voltar ao colégio, já Flávia viu-se e desejou-se para lidar com o medo. “Não é como receber um diploma de licenciatura. Esse nós sabemos que ninguém nos vai tirar mais. O fim dos tratamentos nunca vai representar esse tipo de conquista, andamos sempre com pezinhos de lã.” A somar ao receio, a sensação de se sentir à deriva. “Parece que ficamos com uma espécie de síndrome de Estocolmo, durante tanto tempo temos de seguir as instruções do IPO para tudo e mais alguma coisa e de repente deixamos de ter isso, temos de ser nós a decidir tudo. De repente, a Teresinha tinha febre e eu tinha de a levar a um pediatra qualquer, porque já não era elegível para consulta no IPO. Ainda por cima, aqueles primeiros meses foram muito difíceis, ela andava sempre doente, o medo era uma constante, a vida parecia que não arrancava. Também é difícil sair do carrossel da vida normal e depois ter de voltar a entrar. Parece que já não faz sentido, que já não somos as mesmas pessoas.”
Com o tempo, foi percebendo que sofria de stress pós-traumático, começou a fazer medicação para a ansiedade, permitiu-se sentir o peso do trauma, foi aos poucos retomando o trilho, pé ante pé, com o receio sempre à espreita, mas sem aquele peso insuportável que um dia teve. Flávia recorre a uma metáfora feliz. “O medo está sempre no bolso, mas vai ficando lá mais para o fundo.” Voltar ao trabalho é que foi um bico de obra. “Eu nunca fiz teletrabalho, desliguei totalmente, nem das passwords me lembrava. E fiquei com muito receio de voltar, não tinha sequer vontade de falar com pessoas, e como trabalho numa companhia de seguros, tinha mesmo de falar.” Felizmente, houve sempre compreensão por parte da empresa, acabou por voltar, foi “muito bem recebida”. Mas a travessia do cancro fê-la descobrir outras vocações, que gostava de explorar um dia.
Quanto a Teresinha, “adaptou-se muito bem” no regresso à escola, parece “bem resolvida”, ainda no outro dia a professora leu um livro sobre cancro pediátrico e ela resolveu assumir ali, perante a turma toda, que sim, também tinha perdido o cabelo um dia. “E acho que ali se fechou um ciclo para ela”, conclui Flávia, genuinamente feliz. Quanto ao resto, há um recado que faz questão de deixar e vincar: “Depois de passarmos por uma coisa destas, a sociedade não nos deixa falar. No início, parece que as pessoas não sabem mais o que nos fazer, depois vai havendo uma saturação, então quando acabam os tratamentos é do género: ‘Pronto, já passou, já chega, não fales mais nisso’. Devia haver mais empatia.”
Ana Monteiro, da Acreditar, reconhece que há ainda um longo caminho a traçar nesse sentido. “A s pessoas no geral têm a ideia de que quando o tratamento termina, está tudo bem. Viramos a página, acabou, as famílias voltam à sua vida normal. Não é assim que as coisas se passam. O tratamento termina, mas há uma série de cuidados que é preciso continuar a ter, uma vigilância apertada que é preciso manter. Há uma visão muito romântica do pós-cancro que não corresponde à realidade.” Carla Ribeiro, da Liga, também aponta o dedo a uma certa “incompreensão”. “Muitos pais referem que só se sentem compreendidos em consulta ou por outros progenitores que tenham vivenciado uma situação semelhante.”
A especialista faz ainda mais uma ressalva. “Aquilo que sabemos é que a recuperação física e psicológica de uma doença oncológica é muitas vezes mais prolongada do que o período da própria doença. Mas há muito pouco essa perceção por parte de quem está à volta.” Daí que o apoio psicológico seja também uma peça essencial deste puzzle. A pensar nisso, tanto a Liga Portuguesa Contra o Cancro como a Acreditar disponibilizam apoio psicológico gratuito a crianças e cuidadores que estejam a viver (ou tenham vivido) uma doença oncológica.
Mas o pós-cancro pediátrico não se faz só de traumas e angústias. Flávia, mãe de Teresinha, reconhece que dá hoje mais valor a cada passo em frente. “Cada conquista, como o facto de a Teresinha ter conseguido entrar no conservatório, é vivida e sentida em cada poro da nossa pele. É mais do que orgulho, é felicidade num estado singelo. Acho que acabamos por viver com mais intensidade as âncoras que nos foram salvando da tempestade.” Miguel, pai de Susana, também tirou lições construtivas daqueles meses tenebrosos. “Tudo o resto fica muito relativo. Os outros problemas não nos tiram sono nenhum, nem a pulsação muda. Deixamos de ter paciência para futilidades. E de alguma forma recebemos uma lição de humildade. A força que se vê naqueles pais e naquelas crianças com quem nos vamos cruzando nos corredores do IPO é uma lição para a vida.”

E no longo prazo, como se lida com a marca de uma doença oncológica vivida na infância? A marca, em si mesma, nunca desaparece por completo, jura Joana Ferreira, vimaranense de 36 anos, uma das fundadoras do grupo de Veteranos da Pediatra do IPO do Porto (composto por ex-doentes do serviço). No caso de Joana, recebeu um diagnóstico de osteossarcoma aos 11 anos, era então 2000. “Isto faz muita diferença. Se hoje a palavra cancro ainda tem uma conotação muito negativa, na altura era um assombro. Numa criança então, nem se fala.” Apesar da distância temporal, não esquece os pontos principais na cronologia da história que a trouxe até aqui.
Lembra-se que a primeira quimioterapia que fez “correu mesmo muito mal”, fez tratamento durante uns meses, foi operada em novembro, teve de pôr uma prótese, depois mais quatro meses de quimio. Por esta altura, chegou a acreditar que o pior já tinha passado. Só que no regresso a casa caiu, partiu a perna, não suportou o gesso e, portanto, teve de passar mais dois meses no IPO, acamada e com um peso sobre a perna. Lembra-se que para os pais tudo isto foi “mesmo muito complicado”, que por várias vezes viu a mãe chorar, que percebeu que era grave quando entrou no consultório e os viu aos dois desfeitos, “tristíssimos”. E lembra-se de sentir muito medo do desconhecido, até medo de morrer. Também se lembra de voltar à escola, um momento particularmente difícil. “Não tinha cabelo, estava inchada, andava de muletas, andei durante muito tempo. E portanto fui durante muito tempo tratada de forma diferente, havia muita curiosidade, embora as pessoas não me perguntassem nada. Olhavam para mim, havia um distanciamento, no início havia quem achasse que er a algo contagioso.”
É uma marca que perdura, como o cancro em si mesmo, por muito que o tempo vá esbatendo o fulgor das memórias. “Hoje já passo dias sem me lembrar disso, no início há uma nuvem grande de incerteza que paira, mas ela vai-se esbatendo com o tempo. Tentei sempre levar uma vida o mais normal possível. Tenho algumas limitações físicas, uma perna dois centímetros mais curta, o meu joelho não dobra totalmente, ultimamente tenho tido alguma perda auditiva. É algo com que tenho de viver, mas não é algo que me define.” Tanto que o cancro nunca a impediu de fazer nada relevante: prosseguiu os estudos, tirou a carta, formou-se em Psicologia, começou a trabalhar, encontrou o amor. Como qualquer outra jovem de 36 anos. Também por isso gosta de partilhar a história dela com crianças e adolescentes que lutam contra o cancro, de levar a esperança a quem, por estes dias, não a consegue vislumbrar. No fundo, como o sino que desde fevereiro mora no IPO, num cantinho onde o ecoar de cada badalada grita que a vida promete seguir lá fora, solta de amarras, pé ante pé.