Passeio dos tristes
Algo dentro mim sabe que nada daquilo é inteiramente verdade. As famílias habituam-se a contar as histórias de uma certa maneira, quase sempre a do seu narrador mais persuasivo – outros talvez pudessem dizer “melhor” –, e a certa altura isso vai-se incrustando na memória de toda a gente (até na visão do Mundo). No nosso caso, eu sei que nenhuma daquelas vezes em que nos quisemos sentir postos de parte era realmente inevitável, porque muitas famílias faziam melhor com menos recursos.
Nós não éramos só pobres: também éramos bastante desorganizados. Agora que olho para trás, era quase como se também acarinhássemos a pobreza porque o Mundo seria mais difícil de explicar de outra forma. Mas, mesmo sabendo-o, eu dou por mim a celebrar muitas dessas memórias da escassez, inclusive naquilo em que sei que foram fabricadas. Mais do que a celebrá-las: a lamentar que o meu filho não possa tê-las parecidas, iguaizinhas, porque nada é tão formador como a privação.
Evidentemente, não falo da pobreza extrema, que conheço até bem, mas nunca consegui imaginar nossa (o que diz muito). Já aquela pobreza, digamos, casta, passível de ser exercida com certa honradez, ah, essa continua romântica. Sentados à mesa da cozinha húmida da minha infância, nós fomos sempre humildes, até sábios. O Mundo quis-nos mal, mas nós resistimos sempre, embora com mazelas. Entretanto, tivemos desejos e aprendemos a dominá-los. Quisemos pertencer e fomos transformando o facto de ficarmos de fora no revés diário de que heroicamente nos reerguíamos.
Graças a Deus, proclamava alguém. Mas o que todos sentíamos era que era graças a nós mesmos, bardos do nosso próprio martírio, como sói numa família com uma mãe mediterrânica no papel de cronista.
E a minha surpresa é que, de repente, uma parte de mim lastime que o Artur não possa contar essas histórias também. Não nasceu rico, nem sequer nas categorias mais confortáveis da chamada classe média. Mas seria obsceno reclamá-lo pobre, ademais numa terra de escassezes tão exultantes. E, extraordinariamente, eu tenho de me reprimir para não o deplorar. Ah, se ele andasse a adolescência toda vestido com roupa de outras pessoas. Ah, se ele só tivesse esquentador em casa aos 14 anos. Ah, se ele se sentisse um menino mau e desmerecedor ao ver as prendas que os parentes da América enviavam aos primos dele no Natal.
Coitadinho.
Coitadinho!
Coitadinho: que amoroso é, e que sábio, e que honrado – como ele precisa do meu abraço, coitadinho!
Sim, só agora se concretiza realmente essa mitografia original. Aí está ela, a infundir-me culpa por ter sido capaz de tratar da minha vida. É quase divertido.