
Irritam-se, bufam, pedem (às vezes ordenam) que as crias se calem, no limite gritam-lhes para que parem de chorar - e, sem surpresa, fazem ainda pior. As explicações para esta “intolerância” e os sinais que devem levar à procura de ajuda.
Fábio Gomes, 35 anos, natural de Ovar, sempre se teve como alguém “bem-disposto e muito tranquilo”. “Tranquilo até em demasia, às vezes fazia-me bem ter um bocadinho mais de atitude”, atira, numa autocrítica divertida e saudável. A companheira, pelo contrário, foi sempre mais “explosiva”, um pequeno furacão, para o bem e para o mal. Portanto, quando começaram a pensar em ter filhos, ambos assumiram que seria mais ou menos assim: ela mais efervescente, ele o rei da paciência. Mas falharam o prognóstico. Na verdade, foi exatamente o oposto. “Costumo dizer que o meu filho, apesar de ter sido a melhor coisa que me aconteceu, despertou em mim um lado negro que eu não conhecia”, partilha Fábio.
Um lado que se evidenciou logo nos primeiros meses de vida do filho, hoje com quase dois anos. “Até aos três meses foi um bebé muito tranquilo. Depois veio um período, sobretudo entre os três e os seis meses, em que, antes de adormecer, chorava mesmo muito, uma coisa horrível. E eu, que tentei sempre adormecê-lo, comecei a dar por mim desesperado, a gritar-lhe que parasse de chorar, como se adiantasse alguma coisa gritar com um bebé. Pelo contrário, ele chorava ainda mais e era um círculo vicioso. Acabava sempre por ter de trocar com a mãe. ” Fábio assume-o com uma frontalidade desarmante. Por causa disso, decidiu até voltar à psicoterapia. “Fui falar com o meu terapeuta e dizer-lhe: ‘Isto está a acontecer e está a assustar-me, parece que fico descontrolado’.”
Na altura, sentiu que falar sobre o assunto ajudou. E tem noção de que a pressão de estar a começar num trabalho novo não ajudou. Mas admite que o problema não está resolvido. “Era mais vincado quando ele era mais pequeno, mas há alturas e alturas. Ainda hoje sou muito mais reativo do que a mãe. Basta ele chorar um bocado mais e eu começo a bufar, sobretudo se for mais para o fim do dia. E depois fico frustrado, porque sei que não me devia passar. Parece que é mais forte do que eu.” Além do impacto no filho, Fábio percebe que a relação conjugal também se ressente. “Já tivemos muitas discussões por causa disto, há um desgaste grande”, confessa, desalentado.
Quase dois anos depois, continua sem perceber cabalmente de onde lhe vêm tais reações. Mas há algo que já constatou e que vale a pena enunciar. “Muitas atitudes que tenho com ele foram as que tiveram comigo. Há expressões que uso que são as mesmas que a minha mãe usava comigo. Coisas como: ‘Porque é que estás a chorar? Daqui a nada apanhas e depois choras com razão’.” Fábio não concretiza a ameaça, mas, de alguma forma, continua a reproduzir o padrão que marcou a sua própria educação. E tem consciência disso. Mas está longe de ser caso raro.
Assumindo-o ou não, há muitos pais a passar pelo mesmo. Os psicólogos confirmam-no. “Regra geral, não é o motivo de procura da terapêutica, mas, muitas vezes, quando começamos a falar sobre circunstâncias adversas, acabamos por detetar algum tipo de frustração gerada pelo choro da criança”, refere Paulo Dias, psicólogo da infância e da adolescência que trabalha nas Clínicas Dr. Alberto Lopes. E acrescenta: “Há uma grande tendência, quase universal, de querer calar o choro de uma criança, seja pelo cansaço ou pelo julgamento alheio. Quando o choro é importante, é uma forma de comunicar”.
Também Maria Andresen, psicóloga clínica, constata esta realidade, plasmada em duas formas possíveis: “Por um lado, pais que o assumem a posteriori, quando as crianças já são um pouco mais velhas. Por outro, pessoas que, não o constatando diretamente, deixam subentendido que estão no limite, dizendo coisas como: ‘Não sei mais o que lhe fazer’”. A especialista encontra uma explicação mais ou menos óbvia para esta dificuldade. “Costumo dizer que o choro dos nossos filhos tem ligação a um neurotransmissor só nosso. Se estiver um bebé ao nosso lado a chorar, é capaz de não incomodar tanto, se for o nosso faz-nos trepar paredes. É como se houvesse uma sintonia química entre o choro do bebé e o coração dos pais. ” E sim, esta intolerância ao choro tende a ser mais vincada nos primeiros meses de vida das crias, desde logo porque, por norma, é nessa fase que mais choram.
Clementina Almeida, psicóloga de bebés, confirma esta tendência com frequência. Sendo que, como faz questão de frisar, parte de explicação tem raízes evolutivas e biológicas profundas. “É algo que inclusivamente está documentado. Em termos de evolução da espécie humana, estamos preparados para reagir intensamente ao choro do bebé.” Até porque, nos primórdios da civilização, reagir rapidamente ao choro das crias aumentava as hipóteses de sobrevivência. Acresce que o choro dos lactentes é habitualmente agudo e repetitivo, o que o torna difícil de ignorar. E que ativa áreas específicas do cérebro ligadas à atenção, à empatia e à regulação emocional, como a amígdala e o córtex pré-frontal.
Clementina elenca outras razões relevantes que agravam o problema. “Por um lado, temos muitos pais – por este suposto mundo moderno fora – em privação de sono. E, portanto, há sons do bebé que deveriam ser normais e aceitáveis que acabam por funcionar como um gatilho em pais que vivem em privação de sono, que sofrem de ansiedade, que têm excesso de trabalho.” Depois, há o facto de o choro das crias despertar em nós memórias da nossa infância. E, se, no caso de situações absolutamente traumáticas, a ligação é óbvia, o mais curioso é que a irritação pode resultar dos chamados “tiny traumas” (ou traumas menores). “Às vezes, o simples facto de não nos terem deixado chorar quando éramos crianças, de termos ouvido vezes sem conta aquelas frases ‘se choras, ainda levas por cima’ ou ‘um homem não chora’ deixam feridas que acabam por passar para uma geração futura. E, portanto, muitas vezes, o choro do bebé desperta raiva nos pais, uma raiva interna por não terem sido ouvidos ou não terem podido chorar.”
O que também ajuda a explicar que os homens sejam mais comummente afetados por esta incapacidade de suportar o choro. “Não posso dizer que já tenha visto algum estudo que diga que é mais propício isto acontecer no pai do que na mãe, mas o que vejo em consulta é que são os pais que mais têm essa dificuldade, não tanto as mães”, salienta Paulo Dias. Clementina Almeida concorda. “Pelo que vejo, é mais comum nos homens. Regra geral, as mães passam mais tempo com o bebé e acabam por se regular melhor. Mas também há casos, sobretudo quando há alguma patologia associada.”
Voltando às causas, a psicóloga de bebés aponta uma outra explicação. “A maior parte das pessoas não está preparada para ter filhos, para fazer sacrifícios. Vivemos numa época muito narcísica, é comum vermos pais dizerem que o bebé tem de se habituar à vida que eles levam, não interiorizam a ideia de que ter um bebé implica fazer sacrifícios. Diria que há hoje, culturalmente, uma menor resistência ao choro.” Sendo que ela pode ir do bufar a mandar o bebé calar, passando pelos gritos e, no limite, por pôr a vida da cria em risco – como sucede na síndrome do bebé abanado.
E quando devemos pedir ajuda? Paulo Dias responde. “O primeiro aspeto que devemos considerar é se é ou não uma exceção. Se numa dada fase dormimos mal e andamos stressados, isso faz com que possamos ter um indicador de tolerância mais baixo. Se é algo persistente e que acontece com muita frequência, se começamos a ter um comportamento repetido de intolerância, deve procurar-se ajuda [designadamente através da psicoterapia]. Muitas vezes, esse comportamento também é reflexo de uma má gestão do cuidado que temos connosco, empurramos as situações com a barriga e não resolvemos, não estamos felizes, realizados e acabamos por descarregar. Sendo frequente a própria pessoa não conseguir ter essa perceção. E aí é importante termos ao nosso lado alguém que nos ajude a reconhecer os sinais.”