Contactam as universidades para chegarem à fala com os diretores de curso, acompanham os filhos adultos no primeiro dia de aulas na faculdade. Mais tarde, procuram emprego pelos jovens, elaboram-lhes o currículo, vão com eles às entrevistas, muitas vezes decidem por eles aceitar ou não uma proposta de trabalho. É um estilo de parentalidade superprotetor, num fenómeno que está a ganhar expressão. E há riscos, para o desenvolvimento de competências, para a autonomia, para a gestão de frustrações.
Todos os dias, a primeira coisa que Maria Domingues faz quando se levanta da cama é ir num despacho ao quarto do filho ver se ele lá está. É sagrado, sagradinho. Se dormir fora, há uma regra: tem sempre de mandar mensagem a avisá-la de que está bem. Pode não parecer, mas o filho tem 27 anos, mora com os pais. A mãe, 53 anos, sabe que não o larga, mas não consegue evitar tentar protegê-lo de tudo, mesmo sendo ele já adulto, é mais forte do que ela. E põe-se a pensar em explicações para ser assim. “Na verdade, eu também fui muito protegida pelos meus pais, até aos 30 anos era igual a ele, se a minha mãe pudesse resolver as coisas por mim, tanto melhor. Acho que tem muito a ver com a forma como fui criada, é algo inato, não sei explicar.”
É tamanha a preocupação que, mal João (nome fictício) acabou o 12.º ano e decidiu não continuar a estudar, a mãe lhe escreveu o currículo, em português e em inglês, de uma ponta à outra. Ainda agora, tendo ele ficado desempregado, foi também ela quem pediu às primas de João para a ajudarem a atualizar o documento. E anda numa inquietação em busca de ofertas de emprego, a enviar-lhe constantemente as propostas que encontra para ele se candidatar, quando não é ela própria a submeter o currículo do filho. “E tenho uma irmã muito protetora que também anda sempre aflita à procura de vagas para ele.”
Mas Maria vai mais longe. Sempre que o filho tem uma entrevista agendada, fica num sufoco, e dá-lhe indicações sobre o que dizer, o que responder, que postura deve ter, muitas vezes para irritação dele. A mãe diz que é um “sentimento protetor” que não é capaz de controlar. “É de tal forma que, por exemplo, neste último trabalho do João, onde esteve seis meses, se chegava a casa chateado, a minha vontade era ir lá ao local de trabalho dele incomodar quem o chateou. Ele reclama comigo por ser assim. Depois, claro, respiro fundo e penso duas vezes.”
O relato, por saber ser desproporcional, dá-lhe para voltar a refletir sobre os motivos que a levam a querer ser escudo para tudo de mal que possa acontecer na vida do filho. “Tenho muito medo de o deixar voar, sei disso. E, pensando bem, levei tempo a ser mãe porque sempre tive medo de trazer filhos a este Mundo. Depois, adorei estar grávida, foi a melhor coisa que me aconteceu na vida.” Há ainda outro fator que acredita poder ter sido um motor. Recua a 1998, ao mediático desaparecimento de Rui Pedro, então com 12 anos. “Convivi com a mãe dele e fiquei com um medo gigante que me acontecesse o mesmo com o meu filho. Sofria muito com essa hipótese, pensava naquilo obsessivamente.”
Põe os pés no presente, quer muito ajudar o filho a encontrar trabalho e ao mesmo tempo tem a noção clara de que está na altura de ele se tornar mais autónomo e independente. Chega a ser paradoxal, Maria reconhece isso. Este ano, conta, quando João fez 27 anos, a mãe garantiu-lhe que ele estava por sua conta, sabendo perfeitamente que isso não é verdade. “Ainda ontem ele foi a uma entrevista de emprego sem me dizer nada, provavelmente para não o chatear com dicas. Mas era uma proposta indecente, oito horas por dia para receber 500 euros, não o deixava aceitar”, comenta entre risos.
Na verdade, Maria Domingues não é caso único. Os pais-helicóptero já com filhos adultos parecem ser uma realidade a ganhar expressão. Como define Teresa Freire, psicóloga e docente universitária, “estes pais caracterizam-se por estarem num controlo permanente, são chamados helicóptero por estarem sempre a sobrevoar os filhos”. E há estudos a documentar o fenómeno, que se tem tornado particularmente visível no processo de acesso ao mercado de trabalho. Em dezembro do ano passado, já a revista americana “Intelligent”, numa investigação que pretendia olhar para comportamentos dos jovens da Geração Z e que contou com 800 recrutadores e diretores de recursos humanos de grandes empresas americanas, concluía que 20% dos jovens levaram pelo menos um dois pais consigo a entrevistas de emprego. Mais recentemente, em abril, a plataforma de recrutamento ResumesTemplates.com, que inquiriu quase 1500 jovens entre os 18 e os 27 anos envolvidos em processos de recrutamento de abril de 2023 a abril de 2024, aprofundava ainda mais a tendência. Entre os jovens ouvidos, 70% admitiram que pedem ajuda aos pais no processo de procura e candidatura a um emprego, 55% recorreram aos progenitores para a elaboração do currículo, 16% disseram que os pais já submeteram candidaturas por eles, 13% pediram-lhes para responderem a entrevistas telefónicas de triagem em seu nome.
O retrato é bastante familiar a Vânia Borges, diretora de recursos humanos da Adecco, que lida diariamente com a área de recrutamento. “Percebemos que há candidatos que vêm acompanhados pelos pais, que ficam na receção à espera. E também sentimos que antes de uma resposta final a uma proposta existe muito a necessidade de confirmar em casa com os pais.” Neste contexto, há um dado curioso, é que os jovens não têm problemas em assumir que conversaram com o pai e com a mãe e que eles acham que determinado trabalho não é uma boa opção. “Há uns anos, teríamos vergonha de mencionar os pais numa entrevista de emprego. Agora não, normalizou-se e já o fazem de forma muito natural.” Vânia viveu também, por uma vez apenas, uma situação mais inusitada, em que uma mãe entrou com o filho para a entrevista. “Pedimos-lhe se podia sair. Mas o filho estava tranquilo, como se fizesse parte.” Acresce que a diretora de recursos humanos sente que, muitas vezes, a decisão final é dos pais, que “a gestão de carreira não é feita de forma autónoma”. O que levanta muitas questões, defende, até porque quando os jovens entrarem no mundo do trabalho não vão estar lá os pais e podem surgir dificuldades em tomar decisões.
Ainda assim, garante, a Adecco, que faz serviços na área de recrutamento, contratação ou gestão de pessoal para clientes como a Sonae, Leroy Merlin ou o grupo Inditex, não deixa de contratar uma pessoa por esse motivo. “Já sentimos em alguns casos que, começando a trabalhar, desmotivam rapidamente, ficam frustrados, que não estão habituados a contrariedades. Mas estes ainda são uma minoria, talvez uns 5% dos jovens que contratamos.” Há ainda outro ponto para o qual Vânia Borges chama a atenção, o das expectativas erradas que a nova geração traz sobre o mercado de trabalho. “Chegam, muitas vezes, com a ideia de que as empresas vão ter de lutar por eles, querem logo um emprego que lhes dê muito dinheiro e têm exigências. Uma mensagem que trazem das faculdades e de casa, dos pais. Mas isso constrói-se com o tempo, é preciso fazer caminho, mostrar o que valem para que a evolução exista.”
A superproteção que limita o desenvolvimento
Há uma certeza para a diretora de recursos humanos da Adecco, a de que no futuro “esta será uma realidade ainda mais expressiva”. E di-lo até por experiência própria, num mea culpa antecipado. “Sou mãe e muitas das minhas ações vão no sentido de não querer que eles sejam expostos a nada. Ainda no regresso das férias, fui levar a minha filha mais velha à escola, tem sete anos, e percebi que me esqueci que havia uma festa havaiana e que ela tinha de levar um adereço. Voltei a casa de propósito para ir buscar o adereço e levar-lhe só para ela não ter de lidar com a frustração de não ter. E é claro que está tudo errado aqui.”
O desabafo de Vânia vem a propósito, já que a superproteção destes pais, segundo a psicóloga Teresa Freire, começa a revelar-se cedo. Porém, o problema está nos momentos de transição para a idade adulta, na adolescência, “em que a autonomia deveria ser crescente, para os jovens se desenvolverem” e o que se verifica é que “os pais dão uma continuidade ao papel que tinham na infância dos filhos”. “Levam-nos todos os dias à escola, eles nem aprendem a andar de transportes públicos na sua cidade. Contactam os professores, estão sempre em cima dos acontecimentos, têm de saber tudo o que se passa com os filhos. Não os deixam crescer nem desenvolver um conjunto de competências para a vida. E a autonomia não emerge.” A psicóloga acompanha muitos adolescentes em consulta e é membro do Centro de Investigação em Psicologia da Universidade do Minho, o seu foco de estudo é a população jovem, os adultos emergentes. E explica que estamos perante um círculo vicioso: os pais não dão a oportunidade aos filhos de fazerem sozinhos, de perceberem se são capazes ou não, de lidarem com as adversidades, mais tarde, já os filhos são adultos, percebem que eles não são autónomos e continuam a alimentar esta superproteção. “E os filhos, por não terem desenvolvido competências, sentem que não são capazes de fazer sozinhos e mantêm-se numa situação passiva à espera da proteção dos pais.”
Há algumas razões que podem justificar esta superproteção, numa quase asfixia, a que assistimos hoje. O facto de vivermos num mundo mais complexo, com mais ameaças, mais informação sobre os perigos. E o atual prolongamento dos estudos, a saída tardia de casa dos pais, a demora na emancipação financeira. “Mas não é porque vivem em casa dos pais até mais tarde que os filhos devem estar eternamente sob a proteção deles.” Até porque os riscos, numa sociedade que apela cada vez mais à proatividade, a competências transversais como “saber resolver problemas, tomar decisões, ter espírito crítico”, são muitos. “Estamos a gerar adultos inseguros, com falta de iniciativa, que vão ficar sempre à espera que alguém os mande fazer.” Aliás, o estudo da ResumesTemplates.com revelava que 48% dos jovens que recorreram aos pais em etapas do processo de recrutamento para um emprego fizeram-no por acreditarem que os progenitores estão mais habilitados do que eles e 38% admitiam mesmo não saber como interagir num processo de recrutamento.
Mas o fenómeno dos pais-helicóptero torna-se percetível ainda antes da procura por um emprego, também na universidade há sinais óbvios. “Que sempre foi considerado um contexto de adultos. Os estudantes do Ensino Superior já são adultos, não precisam que os pais assinem papéis ou tomem decisões. E o que vemos são os pais a levarem-nos à universidade de carro, a irem com eles matricular-se, a questionarem docentes. Muitos pais gostariam de ter uma câmara de vigilância para verem os movimentos constantes dos seus filhos”, afirma Teresa Freire.
Ligar aos diretores de curso e às empresas
Pedro Portela, professor universitário e diretor da licenciatura de Ciências da Comunicação na Universidade do Minho, vai sentindo isso. Os pais ligam para a universidade para fazerem estudo de campo, para falarem com os diretores de cursos e saberem as saídas profissionais que existem, “porque estão eles a escolher o curso dos filhos”. Muitas vezes ligam também por desconfiarem que os filhos não estão a fazer as cadeiras. “Isso é recorrente. Mas não lhes posso dar essa informação, trata-se de uma pessoa adulta.” Já chegaram inclusive a abordá-lo assim: “‘O que é que a minha filha tem de fazer para passar à cadeira?’ Respondi que tem de estudar”. Ainda assim, Pedro Portela ressalva que “são casos pontuais”, embora, nos últimos anos, se estejam a tornar mais frequentes.
O docente lembra-se também de uma história peculiar, que aconteceu durante uma defesa de mestrado. “Quando acabou a arguição da candidata, a mãe levantou-se da assistência e perguntou quando é que era a vez dela de intervir. Insistiu várias vezes com o presidente do júri, foi até engraçado.” No campo da adivinhação, Portela arrisca que o facto de a universidade se ter aproximado ao modelo de funcionamento das escolas, nomeadamente com o controlo de faltas, com planos de recuperação, pode dificultar o “salto mental de que no Ensino Superior a autonomia é o principal fator”. A par disso, o contexto atual mudou muito as dinâmicas, há muitos mais estudantes que não ficam a viver na cidade universitária e que vão e vêm, até pelo custo de vida e da habitação, “e portanto não há essa quebra do cordão umbilical com os pais”. E depois também há o fator pandemia, cujas consequências se fizeram sentir nos últimos anos, “com alunos que não têm ferramentas de debate, que não intervêm nas aulas”. “Mas não sou daqueles que defende que estes alunos são piores do que os de antigamente. São diferentes. Todos os anos há alunos muito bons, muito capazes e autónomos e outros que não.”
De facto, Artur Moura Queirós, psicólogo do trabalho e das organizações, mentor, formador e consultor de carreira, além de responsável pela empresa Alento, que faz gestão pessoal de carreiras, formação e consultoria na área da gestão de pessoas, sublinha isso mesmo, a de que há duas realidades paralelas a conviver. “Há um fenómeno de pais-helicóptero, que existe e não me parece saudável para o desenvolvimento de competências de empregabilidade, de inserção no mercado de trabalho. Mas também existe o contraponto, jovens mais resolutos e mais capazes.” Afinal, há sempre muitos países dentro do mesmo país.
Olhemos novamente para o mercado de trabalho. Os casos de pais-helicóptero são crescentes, não há dúvidas, só que o fenómeno não é de agora. “Às vezes nem são os pais, são outros familiares com um grau de influência grande na vida do jovem. Já em 2013 tive um caso bastante sintomático num processo de recrutamento e seleção para um estágio. A certa altura, recebemos uma chamada da receção a dizer que a Polícia queria falar connosco. Era o tio de uma das candidatas selecionadas para a fase final de entrevistas, que tinha ido lá, e estava fardado, certificar-se de que a empresa era um lugar seguro. Basicamente, o tio quis entrevistar a empresa antes de a candidata ser entrevistada.”
Curiosamente, essa foi mesmo a candidata escolhida e o psicólogo conta que dedicou duas horas a explicar-lhe “que esta abordagem podia ser prejudicial para o percurso dela, porque no mercado de trabalho qualquer manifestação de dependência de outrem não é bem vista”. Se pensar em casos mais recentes, Artur Moura Queirós nem precisa de vasculhar os ficheiros da memória. Ainda há cerca de uma semana, estava a gerir um processo de seleção numa empresa, quando chegou uma chamada de uma mãe “a dizer que o filho já tinha mandado o currículo duas vezes e a tentar demonstrar o quanto ele era o candidato ideal para a vaga”. “Não foi o filho, adulto e licenciado, que ligou. Foi a mãe.”
Da experiência de Artur, estas interferências partem essencialmente dos pais, “que querem ver um retorno do investimento que fizeram no percurso académico dos filhos e, por isso, querem ajudar, ligando, mandando currículos”. Enquanto isso, “os jovens não sentem desconforto, mas sentem necessidade de explicar, de dizer que os pais estão preocupados”. Às tantas, são os próprios progenitores que contratam sessões que servem para ajudar os filhos na gestão pessoal de carreira e a ingressar no mercado de trabalho. “Numa primeira sessão, quando pergunto como posso ajudar, acontece alguns dizerem-me ‘não sei, foi a minha mãe que me disse para vir’.” O consultor salienta, contudo, um detalhe relevante. “Quando começam a ter espaço para o seu discurso, devo dizer que vejo até cabeças bem mais organizadas do que quando me lembro de mim na idade deles. Não me parece que não saibam o que querem, há é um confronto de expectativas com as dos pais. E muitas vezes os pais têm a sensação de que os filhos não são capazes.”
Artur Moura Queirós volta ao princípio da sua análise. Se, por um lado, vê, hoje, jovens mais resolutos digitalmente, conscientes de causas relevantes para o Mundo, “uma geração muito preparada”, por outro, “no que toca à inteligência emocional, à resiliência, à capacidade de lidar com frustrações no dia a dia”, não está “tão certo disso”. O gestor de carreiras sente, inclusivamente, que têm menos competências na área da sociabilidade. Há muito que participa em feiras de empregabilidade em universidades e, nos últimos cinco ou seis anos, “a diferença é brutal”. “Antes, os jovens iam às feiras em grande número, apresentavam-se, deixavam currículo. Nos últimos anos, percebi que não só houve uma diminuição da participação nestes eventos, como muitas vezes aproximam-se de um expositor e não cumprimentam, deixam o currículo em cima da mesa e viram costas, não têm um discurso de apresentação. O que é interessante, porque nunca se falou tanto em fazer um bom ‘pitch’, no bom marketing pessoal e profissional.”
Voltemos a Maria Domingues. A própria mãe percebe que o filho “sabe que tem este conforto”. “Sabe que nos tem a nós para fazer por ele, embora às vezes se zangue quando é em excesso. Mas, muitas vezes, nem tenho consciência de que estou a interferir demasiado, está tão enraizado em mim…” Definir a linha que desenha a fronteira entre ajudá-los a voar ou cortar-lhes as asas é um desafio eterno. E Maria vai já fazendo contas à vida. “Não perspetivo que o João saia de nossa casa em breve. E talvez eu tenha contribuído para adiar a emancipação dele, protejo-o sempre.”