Os túmulos
Desde que faleceu o meu sobrinho não pude visitá-lo. Ainda que em pequeno tenha visitado o meu irmão, sinto que não se visitam crianças no cemitério. Não são para crianças lugares de tanta mesa baixa, arestas afiadas de pedra onde mal se anda, não se corre e tudo tropeça, pode bem cair-se, partir a cabeça, ir em prantos para o hospital.
Ando a proibir os prantos. Não me adiantaram nada. A canção bem pede para chorar um rio e eu não ando a provar amores a ninguém. Quero é sossego e algo estranho que é não dar demasiada conta de mim. Somos todos nosso próprio fardo. Estou a disfarçar-me de algodão.
Quis muito acreditar que agora só choraria com coisas da arte. Estou a escrever sobre isso e disse-o diante de uma plateia para me mostrar seco e insensível. Não estou aberto a sofrer pela realidade. Minha comoção é só pelo deslumbre da arte. Um livro, um só verso, um filme, a Cecilia Bartoli a fazer barrocos tristes e lentos, a imitar sofrer de desamor. Eu só queria chorar por isso. Mas tenho uma tela pequenina que o meu sobrinho me ofereceu numa Páscoa de há anos. Pintou-lhe o meu retrato perfeitinho segurando um ovo na cabeça. Preparado para o truque de Guilherme Tell, o ovo tinha de partir-se para nos rirmos de meus azares e ridículos. Talvez me tenha comovido com a arte do meu sobrinho, mas não estava à espera.
E sei que o túmulo está ali à distância e anda o outono cheio de chuvas a fazer frio e é uma merda pensar em como ficam desarranjadas as crianças no cemitério nesta altura, que não levam botas novas, mochilas para a escola, uma gabardina, a camisola grossa com o homem-aranha, umas luvas sem dedos que os transformam em parentes dos sapos. O outono é uma porcaria e mais ainda porque depois vem o inverno que é uma porcaria muito maior.
Se houvesse de saber visitar o meu sobrinho queria levar-lhe as botas novas e a mochila e ver se anda com juízo para jogar menos e ler mais. Que a vida é toda à espera de profundidade. Mas, depois, percebo também que ele teve oportunidade de aproveitar muito mais a folia de superar um jogo do que a angústia dos poetas. Na verdade, os poetas só lhe teriam feito mal. Todos aprendizes diante do tremendo que experimentou ele.
As crianças, dentro de sua genuinidade, dentro de seu mundo de escolhas claras, encurraladas na simplicidade com que a vida lhes acontece, são todas eruditas. As crianças são todas eruditas. O meu sobrinho era erudito. E a cada passo, eu, também angustiado poeta, aprendo com ele.