Joel Neto

Os Terríveis Dois


Há pouco mandei uma mensagem à Adriana: “Deixa-me fazer-te uma pergunta tonta. O Artur bebeu água da tina dos cães que fica na rua. Como há sempre ratos no campo, assusta-me a possibilidade de haver lá vestígios de urina. Devemos preocuparmos?”

Tinha sido uma questão de minutos. A mãe andava a brincar com ele pelo pomar, mas ele acabava sempre por ir parar à casota dos cães – oficialmente, Casa do Melville -, onde se deixava a dar festas ora ao Gauguin, ora à Colette, ora aos dois. Portanto, a Marta acabou por deixá-lo lá um bocadinho com eles, para (como sempre) lhe acrescentar autonomia. Só que dali a pouco olhámos pela janela e já ele estava a matar a sede com a água dos bichos.

A Adriana, que há quase dois anos acumula as funções de pediatra dele com as de minha psicóloga, deve ter-se rido, mas não se descoseu. Que eu não me preocupasse, pois a leptospirose em crianças é uma possibilidade tão académica que nem há casos descritos. Pensei: “Lá estás tu, Joel. É sempre ao fim-de-semana. Quantas vezes não correrá ele riscos durante a semana, longe da tua vista? Descontrai, pá!” Mas ainda não tinha acabado de dizê-lo a mim mesmo e já ele se esgueirava pelo pátio do plátano dentro, correndo, tropeçando e aterrando de mãos à frente no cimento onde os cães costumam fazer cocó (e logo levando as mãos à boca).

São os terrible two. Ainda há dias uma turista que entrou na livraria me alertou para eles, com certo gozo. Não deixo de sentir um calafrio. Em parte porque alguns dos sinais já aí estão: a caminho dos dois anos, o meu filho fala, resiste, embirra e bate tanto quanto é normal num menino da idade dele. E essa ainda não é a vertigem. A vertigem é que todo esse comportamento, segundo os pediatras, tem menos de errático do que de programático (de um modo algo retorcido, mas ainda assim).

Na verdade, o que está em pano de fundo é uma pergunta simples: como é suposto reagir-se em cada uma destas situações que eu – isto é, a criança – consigo agora forjar? Eis a resposta que uma criança procura nesta fase dos dois anos, em que adquire linguagem, descobre emoções e acumula frustrações a um ritmo avassalador. E o problema é que aqueles em quem ela procura essa resposta somos nós, os pais.

Felizmente que o Artur não me tem só a mim: também tem a Marta, a mãe mais dotada, altruísta e formidável que podia ter. Mas como vou eu fazer a minha parte? Como pode um homem que raramente fez as coisas como deve ser – como deviam ser feitas, como se esperava que um adulto as fizesse – ensinar um filho a fazê-las?

Cheguei ao tal momento. Algo me diz que até aqui foi fácil de mais.

*O autor escreve de acordo com a anterior ortografia