Joel Neto

Olha o Natal


Este ano fomos os últimos da freguesia a enfeitar a árvore. Parece um paradoxo, porque agora há um menino cá em casa – é um paradoxo. Mas a livraria tem-nos levado o sangue, e com a livraria as férias do pessoal da livraria, e com as férias do pessoal da livraria o tempo que levámos a substituir a Inês, e com o tempo que levámos a substituir a Inês a baixa que a Sónia teve de tirar por causa da boca-pés-e-mãos do Pedro: julgávamos poder procrastinar. Seja como for, já há uma árvore na loja, onde todos os três passamos cada vez mais tempo e aliás o Artur se sente em casa, ali a brincar com as bengalas da árvore como se fossem de facto os seus brinquedos. Talvez pudéssemos até deixar para o ano.

Mas ele não o permitiu. Primeiro, andou uma semana a cantar o “É Natal, é Natal/ Tudo bate o pé”, quase se esquecendo do velho “Parabéns a Você/ Pró Menino Tutu”. Depois, e como se isso não nos metesse juízo na cabeça, começou a apontar o dedo para sítios anódinos da casa, pequenas cintilações, reflexos ocasionais, um anjinho esculpido na madeira do louceiro: “Olha o Natal!” Não pudemos resistir, e foi já corroídos pelo sentimento de culpa que demos um salto à garagem a apanhar a velha árvore. O papá espalhou as luzes, a mamã aprimorou com as fitas, mas ele próprio pendurou as bolas, e foi um delírio. Esta manhã, regressado da creche, tornou a olhar a árvore ligada e abriu o mesmo sorriso: “Olha o Natal!” Comovemo-nos todos outra vez.

A verdade é que somos totalmente natalícios, a Marta como eu (mesmo sendo ateu). No Natal celebra-se tudo o que é bom, a paz e a concórdia, a música e o silêncio, a família e o amor, e a circunstância de escassear tanto a paz neste Mundo, e de a concórdia entre os povos parecer tão difícil de lograr como sempre, e de a música ser cada vez mais bimba ou repetida, e de o silêncio permanecer uma miragem, e de as famílias passarem a quadra a insultar-se em surdina (quando se juntam), e de o amor verdadeiro andar mais procurado do que nunca é só mais uma razão para se celebrar com tanto entusiasmo o que existe, funciona e cá estará para o ano outra vez.

De qualquer modo, é o tempo das coisas fáceis, o Natal. Da música fácil, e da luz evidente, e da cor sem limites, e da bebida à vontade, e da comida em excesso. Uma pessoa pode sentir-se tão feliz que nem chega a perguntar-se porque haveria bengalas penduradas numa árvore natalícia ou alguém cantaria “É Natal, é Natal/ Tudo bate o pé” a não ser pela necessidade de rimar com “Vamos pôr o sapatinho/ Lá na chaminé”. E isso é realmente um grande bem, sermos felizes só porque sim – haver um tempo que nos manda sermos felizes e tantos de nós chegarem a obedecer.