Joel Neto

O urso trapalhão


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

Sábado à noite e estamos os dois a ver televisão. É o dia em que passamos mais tempo um com o outro, porque de manhã a mamã dá treinos de ginástica e à noite também é ela quem fecha a livraria. De maneira que andamos ali, para trás e para a frente, a percorrer os canais infantis, com um ou outro lapso de polegar que nos leva à Sport TV e me permite conferir o resultado do Holanda-Turquia.

Passamos pel’Os Banhitos, a Patrulha Pata e uma coisa com garotos de verdade cujo nome não chego a descortinar. No ecrã desfilam girafas e hipopótamos, tigres e jacarés, e a todos o Artur vai chamando:

– Cão.

Até que passamos por uns bonecos que o menu do Meo intitula Grizzy & Os Lemmings e, ao aparecer o urso cor-de-laranja, a correr todo mandão atrás dos pequenos “lemmings”, ele já não diz:

– Cão.

Mas sim:

– Pai.

Estaco por instantes. Tento perceber melhor. Arqueio uma sobrancelha:

– Como assim, “Pai”?

Como ele não responde, retomo o zapping. Passam zebras e rinocerontes, suricatas e gambás, e a todos o meu filho aponta o dedo:

– Cão.

Passa o “Grizzi” de novo, perseguindo os seus “lemmings”, e ele:

– Pai.

Engulo em seco, porque a primeira coisa que me parece é que o dito “Grizzi” é o vilão da história. E de certo modo é, mas menos ainda do que o “Tom”, o “Coyote” ou o “Sylvester”, eles próprios vítimas de uma combinação especialmente inconveniente de natureza individual, circunstâncias cósmicas e um certo sadismo do realizador. Na verdade, aquilo que o “Grizzi” é é um brutamontes desastrado, mais ansioso por passar uns minutinhos estendido no sofá do que o mundo por deixá-lo estender-se em silêncio. Mas, ao mesmo tempo, eu pergunto-me se é realmente assim que o meu filho me vê, o grandalhão de ardor até certo ponto curioso, mas incapaz de levar uma tarefa até ao fim sem partir alguma coisa, quase sempre em si mesmo, e principalmente sem se stressar.

Toda a vida tive propensão para o stress, o que me leva toda a imagem que eu alguma vez pudesse ter de um escritor. Sou muito mais ambicioso do que inteligente, sempre quis fazer demasiadas coisas do meu dia – e da minha semana, e do meu mês, e da minha vida -, e todas as resistências que o mundo articula para me meter algum juízo na cabeça reforçam a minha ansiedade. Ainda por cima fui educado como protestante, calvinista até à medula, de modo que desistir não é uma alternativa – em suma, é o diabo.

Portanto vou deitar o garoto e volto para ver mais uns episódios, em busca de um lampejo de dignidade no pobre do “Grizzi”. Não chego a encontrá-lo. E, quando se acabam os episódios, suspiro:

– Bem, ao menos é cómico.

Desligo o televisor e vou dormir.