Cidades, ruas, hotéis, esplanadas, praias, enchem-se de gente. Portugal continua na moda o ano inteiro. As receitas aumentam e os impactos estalam. Em Sintra, contestam-se os excessos. Novos problemas exigem outras soluções. Como gerir tudo isso? Pede-se sensibilidade e bom senso, um plano e não estratégias avulsas. O Governo prepara um debate nacional de um tema relevante a nível económico, sensível em termos sociais.
Em Sintra, a insatisfação com o turismo excessivo, trânsito caótico, filas intermináveis para palácios, falta de mobilidade para residentes, manifesta-se em cartazes espalhados pelo centro histórico, em janelas e varandas de casas, montras de restaurantes e cafés da vila. “Queremos Sintra viva e habitada, não ao turismo de massas!” e “Património mundial sim, parque de diversões não!” são frases transformadas em palavras de ordem. À vista de quem olha, à vista de quem passa.
“O turismo excessivo acaba por destruir aquilo que quer explorar”, observa Madalena Martins, presidente da Associação QSintra – Em Defesa de um Sítio Único, movimento cívico que dá eco ao descontentamento coletivo de habitantes que não querem aquele pedaço de terra transformado “num mero parque de diversões congestionado.” Madalena Martins pede um olhar cuidado e articulado, lembrando que o turismo, no geral, vive preso a uma “visão segmentária que não protege uma área como um património vivo e habitado.”
A QSintra admite a importância do turismo, o problema é quando se desvirtua a paisagem, se descaracteriza o comércio, há entraves à circulação. “O que esperamos é que as entidades responsáveis pela gestão deste território olhem para esta questão com competência e bom senso – não só a câmara, mas o Turismo de Portugal, a Agência Portuguesa do Ambiente, o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, a Parques de Sintra -, para desenvolverem um modelo verdadeiramente sustentável. O património não são só monumentos, é a paisagem e a vida das pessoas”, diz Madalena Martins.
Meter mais lenha numa fogueira que está a arder não vai resultar, avisa Carlos Costa, professor catedrático da Universidade de Aveiro (UA), presidente da Plataforma Nacional de Turismo (PNT), estrutura única a nível mundial, como espaço de reflexão, diálogo e ação. “Precisamos de um novo paradigma, temos de dar um salto grande e rápido, não podemos aplicar as mesmas soluções a novos problemas, como continuar a abrir hotéis e todos no mesmo sítio”, refere. Em Lisboa, prevê-se a abertura de 36 unidades hoteleiras nos próximos dois anos, é a terceira cidade europeia onde abrirão mais hotéis até 2026.
“Temos de começar a apurar os limites aceitáveis de mudança e a capacidade de carga dos ecossistemas”, aconselha Carlos Costa. “O turismo não é economia, o turismo é combustível para um motor. Temos motor para o combustível (o dinheiro) que está a entrar para dentro das comunidades. Se expulsarmos a boa economia local, o turismo acaba por ser um problema e não um benefício.”
E não é só em terra. Um dos últimos alertas da associação ambientalista Zero é sobre a violação sistemática do limite dos voos noturnos no aeroporto de Lisboa, nas duas últimas semanas foram 115 acima do permitido. Esta é apenas uma face dos efeitos do turismo. Há outras. “O turismo é uma questão de fundo que diz respeito à garantia da qualidade de vida numa cidade, num país. E o que nos parece é que estamos a desviarmo-nos muito daquilo que é a capacidade de carga da atividade turística”, comenta Francisco Ferreira, presidente da Zero.
O professor universitário e ambientalista destaca os efeitos colaterais nos alojamentos locais, na utilização dos transportes, no consumo de água, na produção de resíduos, no número de pessoas nas ruas, no ruído. Mais gente, mais impacto. “A pressão turística vai causar uma ultrapassagem, uma disrupção, dos serviços necessários no dia a dia. Quando excessivo, põe em causa o funcionamento e a estrutura do que se pretende numa cidade, a qualidade de vida de quem a visita e de quem nela vive. O turismo acaba por ser uma monocultura muito frágil face a este tipo de circunstâncias”, sublinha Francisco Ferreira, que defende que é necessário falar de qualidade, de sustentabilidade, de habitação. Que é preciso desenhar uma estratégia firme.
Adalberto Dias de Carvalho, professor e coordenador do ISCET – Instituto Superior de Ciências Empresariais e do Turismo, no Porto, mede as palavras para falar “de um fenómeno com complexidade, que tem dificuldades, mas que também tem potencialidades.” “A economia portuguesa depende fortemente do turismo.” O país não pode viver sem ele, é necessário olhar para áreas mais vastas para não concentrar turistas nos mesmos sítios, pensar em programas que saiam dos centros das cidades. É por aqui, em sua opinião.
“Tem de haver itinerários que levem os turistas para outros lados, o que significa que tem de haver transportes”, afirma. E tem de existir, em seu entender, imaginação e capacidade criativa das populações hospedeiras. Adalberto Dias de Carvalho apresenta várias possibilidades. O turismo de aventura, de natureza, turistas espalhados pelas paisagens, pelo verde, pelo interior. O turismo do silêncio. “O interior pode atrair turistas por não estar urbanizado.” O astroturismo é outra possibilidade.
As três fases: euforia, apatia, irritação
Se há turistas, a oferta adapta-se, o mercado transforma-se. E há queixas. Alojamentos locais em prédios de habitação comum dão, por vezes, dores de cabeça. Mais barulho, partilha de equipamentos comuns como piscinas e ginásios, mais estragos, mais gastos, mais dinheiro nas faturas do condomínio. As queixas aumentam no verão sobretudo em zonas mais próximas do litoral. Francisco Dias, vice-presidente da Associação Portuguesa de Empresas de Gestão e Administração de Condomínios, conta que assim é.
“Há dois interesses antagónicos: os condóminos e os proprietários que exploram o alojamento local”, adianta o responsável. Uns e outros têm os seus direitos. “A grande dificuldade é na exploração e na convivência.” Os horários são diferentes, partilham-se áreas comuns com estranhos de férias. “Os proprietários, na maioria das vezes, nem sabem o que se passa, porque entregam essa gestão a entidades externas.” Para Francisco Dias, os administradores de condomínio com alojamento local têm de precaver essas situações, de mais gastos, mais reparações, mais manutenções, mais limpezas, na sua forma de gestão.
Carlos Costa, presidente da PNT, recorda a teoria das fases do turismo: euforia, apatia e irritação. Faz sentido. Mas não tem dúvidas. “O turismo é um diamante da economia do país, sem ele, o país colapsava completamente”, diz, recuperando uma analogia que usou, ou seja, o turismo representa sete fábricas Autoeuropa. O seu efeito de arrastamento é evidente, garante. Esse é um lado da história. Há outros.
“O turismo nunca teve uma verdadeira política para o país, existem estratégias avulsas, de promoção, de marketing, de abertura de novos hotéis.” Carlos Costa passa a pente fino os sete pontos da declaração da PNT, apresentada em maio deste ano. Primeiro, criar essa estratégia nacional para o Turismo, o que, em seu entender, pode ser feito no imediato, um plano colaborativo que envolva todo o setor, nomeadamente as comunidades locais. “Não um produto de uma consultora”, avisa. Segundo, criar uma política de rede entre todos os intervenientes, de coordenação horizontal e flexível, para gerar parcerias. Terceiro, um quadro de governança adaptado ao desenvolvimento e complexidade do setor que, em sua perspetiva, não existe. Portugal não tem um ministério do Turismo, área que, adianta, neste momento, “vale 10 vezes mais do que a agricultura.” “O Turismo é tratado de uma forma muito leve”, atira.
Quarto, uma gestão e planeamento a nível regional e local, mais perto dos problemas. Quinto, investimento público com prioridades bem definidas e que não esqueça a qualidade de vida das pessoas, o equilíbrio ambiental, a coesão territorial. “Não se avalia a eficácia do que se gasta no Turismo”, revela, recordando que o último levantamento do género foi feito em 1999.
Sexto, educação, formação e investigação. A PNT considera que “a resposta é insuficiente e descoordenada” entre os três ministérios com responsabilidades no setor (Economia, Educação e Trabalho) e que não há uma área de investigação específica para o Turismo na Fundação para a Ciência e Tecnologia. Sétimo, olhar para os recursos humanos, melhorar salários na hotelaria e restauração, reter talento. “Formamos quadros altamente qualificados para trabalhar no turismo, muitos desses jovens vão para o desemprego ou para outros países. É preciso fazer uma revolução a nível dos recursos humanos”, defende Carlos Costa.
Seja como for, 2023 foi o melhor ano de sempre para o turismo nacional. Receitas a rondar os 25 mil milhões de euros, mais de 30 milhões de hóspedes, 77 milhões de dormidas. Máximos nacionais. As expectativas continuam a subir. Só em junho deste ano, contam-se já 7,8 milhões de dormidas, 698 milhões de proveitos totais, antevendo-se uma receita total e final em 2024 superior ao ano passado, na ordem dos 27 mil milhões. Há outras previsões que estimam mais de 56 mil milhões de euros de receitas, mais de 1,2 milhões de pessoas empregadas no setor, e uma fatia generosa de cerca de 20% do PIB, em 2033. Números anunciados pelo atual secretário de Estado do Turismo, Pedro Machado, que faz questão de lembrar outro detalhe com a sua importância: Portugal é o 12.º país mais competitivo do Mundo em turismo. “O turismo não é uma ameaça”, assegura o governante.
O secretário de Estado sabe o que o setor enfrenta. “O grande desafio é a capacidade de distribuir os fluxos”, comenta. Os centros históricos e urbanos não mudaram muito ao longo dos anos, não estão preparados para a sobrecarga de turistas, e não se pode colocar toda a gente nos mesmos sítios ao mesmo tempo. “Uma gestão mais inteligente destes fluxos não só melhora a qualidade de vida de quem vive nos territórios, como de quem nos visita.” Há outros aspetos além dessa redistribuição. “Há hoje um potencial, não apenas de crescimento, mas da diversificação da oferta turística.” Há ainda, acrescenta, “o grau de satisfação das comunidades que recebem turistas.” Só, aqui, há muito a dizer. E a fazer.
Taxa turística? Aveiro fala em injustiça
Em 2023, mais um recorde para o turismo: os municípios que cobram taxa turística, valor por pernoita pedido a todos os hóspedes alojados em empreendimentos turísticos, alcançaram uma receita de 69 milhões de euros, com Lisboa à cabeça com 40 milhões. São 18 autarquias a taxar essas noites, seja a quem for. Porto, Braga, Cascais, Faro, Óbidos, Sintra, Vila Nova de Gaia, Coimbra, Figueira da Foz, Póvoa de Varzim, Amarante, Portimão, são alguns deles. Aveiro foi o primeiro e único município do país a ter essa taxa e a deixar de a ter, por decisão do executivo de Ribau Esteves. O autarca explica as razões, ressalvando o absoluto respeito pelos colegas e pela autonomia do poder local.
“Entendo que não há uma justificação na aplicação da taxa, não estamos a prestar diretamente um serviço específico para cobrar essa taxa.” Ponto um. Ponto dois. “As injustiças provocadas por essa taxa.” Não lhe parece justo ir em trabalho a Lisboa, para reuniões ou apanhar um voo, e ter de pagar essa taxa. Em Berlim, conta por experiência, isso não acontece, perguntam ao hóspede se está alojado em trabalho ou em lazer. No primeiro caso, a taxa não é aplicada. “O que me parece algo civilizado”, comenta.
Terceiro ponto: o IVA turístico. Ribau Esteves defende o aumento dos 7,5% da taxa turística para os municípios, taxa que tem uma relação direta com a atividade turística, realça, seja no maior consumo de água, seja no aumento da produção de resíduos, pelo fluxo extraordinário de pessoas. “Essa taxa turística está na lei das Finanças Locais com uma percentagem muito baixa, devia ser uma percentagem relevante”, defende.
Aveiro, Capital Portuguesa da Cultura em 2024, atingiu o número recorde de quase 500 mil dormidas em 2023 e mais 70 mil visitas a museus, galerias e lojas turísticas no ano passado, em relação a 2022. Apesar disso, por razões de filosofia fiscal e social, Aveiro não quer essa taxa turística que entra no bolo geral do orçamento das autarquias. Não há regras para aplicar essa receita que provém do turismo.
“Em tese, o produto das taxas turísticas devia ser aplicado na qualificação da experiência turística: mobilidade, acessibilidade, estacionamento, iluminação pública, urbanismo, espaços verdes”, alerta Pedro Machado, secretário de Estado do Turismo. Mas cada município decide o que fazer.
Sintra é um dos casos mais recentes de debate sobre o turismo de massas. Há outros na Europa. Barcelona saiu à rua em julho com cartazes que pediam aos turistas que voltassem para casa, avisavam que a cidade não está à venda, até houve pistolas de água apontadas a turistas em esplanadas. Moradores nas oito ilhas Canárias também ocuparam as ruas em abril, pedindo uma política equilibrada e um modelo turístico sustentável.
Em Barcelona, proibiu-se o alojamento local até 2028. Este ano, Veneza proibiu os guias turísticos de usarem altifalantes e limitou os grupos a 25 pessoas. Em 2021, havia decretado a proibição de navios de grande porte atracarem no centro da cidade. Amesterdão pondera avançar com a mesma medida a partir de 2026 e já proibiu a construção de novos hotéis.
Adalberto Dias de Carvalho conhece as críticas e conhece as medidas. “O turismo também é encarado a favor ou com reserva consoante as vantagens que são retiradas. É preciso fazer o balanço entre o que ganha e o que se pode perder.” O professor recorda, a propósito, como era o Porto há 15 anos: “uma cidade extremamente maltratada com edifícios velhos e o turismo teve um papel transformador. “Seria um erro ignorar as dificuldades que o turismo pode levantar, como em qualquer outra atividade.” De qualquer forma, em sua perspetiva, é preciso atenção. O país continua de braços abertos num planeta cada vez mais globalizado. “Portugal é um dos 30 países mais desenvolvidos do Mundo, dos 10 mais seguros do Mundo. Obviamente que Portugal tem um futuro turístico promissor”, conclui Adalberto Dias de Carvalho.
Apesar dos alertas, da atenção mediática nacional e internacional que dura há semanas, tudo parece na mesma em Sintra. “Por enquanto, não se nota qualquer diferença, o trânsito continua caótico, entre as 9h30 e as 16h, os residentes não podem sair de casa de carro, está tudo bloqueado”, descreve Madalena Martins. Até a redução do número de visitas no Palácio da Pena, garante, “não tem reflexo visível no caos do trânsito.” Já este mês, a câmara vai reduzir para metade o número diário de visitas, na ordem das nove mil, na Quinta da Regaleira.
A QSintra avançou com o manifesto “Sintra é de todos e precisa de todos” com várias reivindicações, entre elas, um turismo de qualidade e não de quantidade, o combate à “excessiva dependência” deste setor, a revitalização da comunidade e qualidade de vida dos residentes. A QSintra pede ainda um levantamento sistemático de novos hotéis, empreendimentos imobiliários e superfícies comerciais para que seja feita a avaliação do impacto a vários níveis, tanto no ecossistema como na mobilidade e vida das pessoas. “A mobilidade é o que mais preocupa as pessoas”, reforça Madalena Martins. “Há todo um modelo que tem de ser repensado. Não é fácil, mas é possível”, defende.
Há dias, o secretário de Estado esteve na inauguração de um equipamento turístico numa praia fluvial de Oliveira de Frades. É um exemplo do que está a ser feito em sítios menos urbanos. Pedro Machado acredita que a balança do turismo equilibra-se. “A atividade é essencialmente privada, o próprio mercado tem instrumentos de autorregulação entre a oferta e a procura. Cinquenta e seis por cento dos turistas globais que viajam estão preocupados com a pegada e a descarbonização.” E há uma maior regulação das associações e estruturas profissionais. Este mês, apresentará a Estratégia 2035, seguindo-se um grande e amplo debate em torno do turismo com todos os intervenientes e estruturas da área, com fóruns em várias regiões do continente e ilhas. A discussão vai andar por aí.