O silêncio dos monstros
São mais de 50 homens sentados na cadeira do réu, à vez, num tribunal em França, que dispõe apenas de alguns lugares para o efeito, com idades entre os e os 22 e os 72 anos. As profissões são diversas: bombeiro, empregado bancário, padre, administrativo, jornalista, eletricista, camionista, militar, reformado. Alguns viviam perto, outros, percorriam centenas de quilómetros até a casa da família Pelicot. Estes homens não se conhecem entre si e não correspondem a nenhum estereótipo. Têm todos, aparentemente, uma vida normal.
Gisèle, casada com Dominique, também tinha uma vida normal. Segundo a sua filha Caroline, eram uma família feliz. Nunca viu o pai tratar de forma desrespeitosa nem a mãe, nem outras mulheres. Durante a fase de inquérito, fica chocada quando se confronta com a realidade: o progenitor tirou-lhe fotografias quando tinha 27 anos, enquanto dormia, bem como a uma das suas sobrinhas, de 9 anos, durante o banho. Anteriormente acusado de violação e presumível homicídio da agente imobiliária Sophie Narne em 1991, e de tentativa de violação de outra agente imobiliária, que consegue fugir em 1999, trazendo nas sua roupas restos de sangue cujo ADN corresponde a Dominique, está há quatro anos em prisão preventiva. Numa carta recente à família escreve: “Não me abandonem. sei que estou aqui para pagar o que fiz ao amor da minha vida, mas agora é demasiado tarde, não sei como tudo vai acabar”.
Estes são apenas alguns contornos de um caso que irá ficar para a história: um marido que se serve do corpo da mulher para o oferecer a desconhecidos. Os homens, recrutados pela Internet, seguiam as ordens de Dominique. Deviam estacionar o carro longe e despir-se na cozinha. Não podiam usar perfume nem cheirar a tabaco, para não despertar a mulher, drogada e totalmente inconsciente, para fazerem do seu corpo inerte o seu objeto de prazer, enquanto o marido filmava. A barbaridade dura uma década. Gisèle sente-se exausta e confusa, carrega no corpo infeções ginecológicas, mas nenhum psicólogo, psiquiatra ou ginecologista consegue apanhar o fio à meada. O marido, num nível e cinismo impensável, põe em questão a sua fidelidade, perguntando-lhe o que anda a fazer durante os dias em que está só.
Neste quadro de horror, existem vários aspetos que me deixam perplexa, entre os quais destaco dois: a cumplicidade ativa e consciente de um conjunto de homens que praticaram estes atos de forma impune, e a capacidade de dissimulação de um monstro que, aos dias de hoje e depois de ter sido desmascarado, se refere à sua mulher como o amor da sua vida. O gelo afetivo, a total ausência de empatia e o grau de crueldade são traços inequívocos de um monstro gigante a abominável. Contudo, este monstro não está só. Foi ajudado e corroborado por outros monstros. A maldade nunca vinga sozinha, precisa sempre de cúmplices.