O Natal dos sobreviventes
Há três anos, pela mesma altura do ano, escrevi uma crónica sobre o suicídio, porque o Natal não é igualmente festivo e alegre para toda a gente.
Foi há três anos que o filho mais novo de um casal de amigos muito próximo escolheu partir. Como disse o pai do Gonçalo recentemente no podcast “Páginas Com Graça”, “um filho que perde um pai é um órfão, um homem ou uma mulher que perdem o marido ou a mulher são viúvos, e não há um nome para um pai que perde um filho, mas eu acho que há, chamam-se sobreviventes”. Ouvi o testemunho deste pai, que teve a grandeza e a generosidade de abrir o seu coração, para sempre ferido, em jeito de explanação ao Mundo sobre como se vive depois da morte daqueles que mais amamos e que são parte de nós. O testemunho da mãe será apresentado num dos próximos episódios. Não escutei as suas palavras como um ouvinte anónimo, pois acompanhei de perto o primeiro dia de um calendário novo, imposto por uma tragédia que mudou para sempre uma família.
Três anos depois, o Gonçalo continua vivo no coração dos pais, avós, tios, primos e amigos. A obra artística do Gonçalo esteve em exibição um ano depois da sua partida numa inauguração tocante e emocionante. Quase todas as esculturas e quadros foram vendidos, o catálogo irá preservar no tempo a obra de um artista notável que deixou muito mais do que os pais poderiam ter imaginado, antes de iniciarem o trabalho de a catalogar.
O caminho para o suicídio é um percurso silencioso que deixa sinais, tantas vezes impercetíveis ou irrelevantes para quem não consegue lê-los.
O Gonçalo vivia no seu universo particular, do qual saía sempre que a vida o obrigava, para enfrentar a realidade quotidiana. Existem pessoas para quem o mundo real, com todas as sua contingências, limitações, burocracias, regras impostas e preconceitos é um lugar hostil e pode representar um verdadeiro tormento. O caminho para o suicídio é um percurso silencioso que deixa sinais, tantas vezes impercetíveis ou irrelevantes para quem não consegue lê-los. A interpretação desses sinais a posteriori pode ajudar ao entendimento, mas o vazio fica para sempre.
Vale a pena ouvir o testemunho de um pai que sai da sua zona de conforto para partilhar uma experiência pela qual ninguém sonha passar. “Eu tenho dois filhos e os dois vivem fora, um está no céu e outro está em Madrid. Eu chego a casa e inevitavelmente vejo o meu filho. Eu tenho a bicicleta dele à porta, continua no mesmo sítio, tenho uma fotografia grande (……) o Gonçalo viveu e morreu à maneira dele e eu tenho de respeitar a decisão dele.” Esta reflexão tão inteligente e sincera pode dar-nos uma pista sobre a capacidade humana que se revela sobre-humana perante tão esmagadora inevitabilidade.
Todos sonhamos com uma vida sem percalços, protegida pela sorte e pela temperança, nem todos temos a rara sorte de a atravessar em tal estado de graça. Num período que chama à reflexão, é fundamental, ainda que incómodo, chamar a atenção sobre um flagelo que assombra a nossa sociedade. Das suas palavras emocionadas, retirei algumas mensagens, duas que aqui partilho: tudo o que continua a aprender com o seu filho e o poder apaziguador do colo dado pelos amigos. Nunca a palavra colo me fez tanto sentido, porque todos precisamos de colo até ao fim da vida, independentemente da idade que temos. Brilha no céu uma estrela de mil cores, que escolheu partir mais cedo e que seu pai, sua mãe e seu irmão embalam para sempre dentro do coração.