A internet, as redes sociais, as plataformas de encontros. O telemóvel é hoje uma extensão do nosso corpo e o ciberespaço abriu uma série de novas possibilidades para se ser infiel. A traição deixou de ser apenas física, às vezes acontece sem sequer ver ou tocar o outro. E os casais não estabelecem limites desde o princípio.
O conceito de traição tem vindo a estender-se à boleia do mundo digital, que criou um sem-fim de possibilidades e tem quebrado uma série de barreiras estabelecidas socialmente noutras eras. Se, no tempo dos nossos avós, a infidelidade pressupunha sempre um envolvimento físico, hoje o termo é muito mais amplo, mais subjetivo também, depende de interpretações pessoais, varia de casal para casal. Um estudo sobre infidelidade levado a cabo no México pela empresa DIVE Marketing para a Gleeden, plataforma de encontros extraconjugais, dividiu a infidelidade em três categorias: física, emocional e digital. E concluiu que os atos de infidelidade digital que mais afetam os mexicanos são receber ou enviar fotos sugestivas ou explícitas, estar em plataformas de encontros como o Tinder, flirtar online, trocar comentários em posts das redes sociais, silenciar as notificações ou colocar o telemóvel em modo voo, usar pornografia ou pôr like em posts.
Luana Cunha Ferreira, psicóloga, terapeuta familiar e professora na Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa, não tem dúvidas de que a traição há muito que deixou de ser apenas física. “A grande questão é que os casais não acordam previamente os limites. Está mais ou menos explícito, é mais óbvio, numa sociedade monogâmica, que herdou a ideia de matrimónio, que o envolvimento físico com outra pessoa está banido – aliás, está até previsto no contrato de casamento legal. Mas tudo o resto, o envolvimento afetivo, emocional ou até erótico é algo mais implícito e são limites muito pouco claros na maioria das relações”, aponta. Atualmente, com o mundo digital, reconhece, uma conversa mais íntima ou a troca de imagens ou vídeos mais ou menos explícitos, mesmo que as pessoas nunca se tenham tocado, pode ser considerado traição. Só que a maioria dos casais, refere Filipa Costa Macedo, também psicóloga e terapeuta familiar, “não se senta à mesa para definir estes limites” e até quando as coisas vão acontecendo e vão sendo faladas, quando um dos elementos mostra que não está confortável com certos comportamentos, “há lacunas na comunicação”. “Com o crescimento das redes sociais, a infidelidade pode ser muito mais do que era antigamente. Mas o que para um elemento do casal é infidelidade, nomeadamente um like numa story ou numa foto, pode não ser necessariamente para o outro.”
Nestes contactos virtuais, o que é considerado traição varia não só de casal para casal, mas de pessoa para pessoa. “Diria que a partir das mensagens e fotos eróticas é mais generalizado, mais consensual, que se trata de uma traição. Porém, e olhando apenas para a troca de mensagens no dia a dia, para a partilha rotineira, numa perspetiva mais emocional, isso também pode ser infidelidade. De repente, o meu parceiro começar a desabafar, a partilhar coisas mais íntimas da nossa vida, a abrir o coração com outra pessoa, quando isso era algo que fazia comigo, pode causar imenso sofrimento”, exemplifica Filipa Costa Macedo. Uma coisa é certa, há um universo de hipóteses que se abre com o digital, onde tanto pode haver traição emocional como erótica e até física. “Pode haver uma relação sexual sem haver encontro. Por videochamada, o que, embora sendo por via digital, já é físico. No fundo, as redes sociais e as aplicações de encontros abriram a possibilidade de estar com uma outra pessoa sem estar sequer.”
Contudo, o que leva à traição pouco mudou com o tempo. Segundo a terapeuta, a infidelidade tem sempre um lado de desejo, de aventura, de imprevisibilidade, de transgressão, de risco, também de querermos fugir da pessoa em que nos tornamos na relação que temos. “Muitas vezes, à medida que as relações se vão estabilizando, o que dá estrutura ao casal, também vai diminuindo este lado do desejo. E a infidelidade é a busca por estas coisas que um dos elementos sente que perdeu.” Luana Cunha Ferreira tende a concordar – “Há uma compensação de uma necessidade que não se está a sentir na relação de casal” -, mas alerta para as diferenças que a traição virtual tem, para a capa que as redes sociais trazem, a efabulação da realidade. “Se estamos a interagir com alguém só digitalmente, é importante percebermos que não só estamos a mostrar apenas o que gostávamos que a outra pessoa visse em nós, como só estamos a ver o lado que a outra pessoa quer mostrar.”
O telemóvel, o controlo, a privacidade
Já há muitos casos de traições virtuais a chegar aos consultórios dos terapeutas. E não, não é uma coisa só de gerações mais novas, embora aí seja mais intenso. Procura-se ajuda em casal ou individualmente, porque a pessoa que foi infiel assume ou é apanhada, outras vezes por uma desconfiança. “O acesso que temos à vida privada dos outros é atualmente muito maior. Antigamente quase era preciso contratar um detetive para espiar o marido no escritório, ou ter uma vizinha a contar quando é que a mulher saía de casa. Hoje não, temos uma janela aberta, pelo tempo que o outro passa ao telemóvel, pelas expressões que faz quando recebe uma mensagem. Se as mensagens que o outro recebe lhe põem um sorriso na cara e eu estar a jantar com ele não, isso pode ser um grande termómetro da relação”, sublinha Luana Cunha Ferreira.
Segundo José Pacheco, psicólogo e sexólogo, se é verdade que a infidelidade tem hoje um espetro mais amplo na forma como é encarada pelas pessoas, também é certo que “a traição ou infidelidade virtual não se afasta muito das fantasias sexuais que uma pessoa casada pode ter com outros, fora do casamento”. Contudo, tal como Luana referia, ela agora está mais visível, é mais facilmente detetada. “Ao longo da história, tudo foi mudando com o registo das traições, virtuais ou reais, através da escrita, do telefone e mais recentemente da Internet. Ou seja, das cartas amorosas, passando pelos telefonemas cruzados, evoluiu-se para as traições virtuais.”
Sendo mais visível, há que considerar outro fenómeno, o da invasão da privacidade, também do controlo. Quando há uma dúvida a pairar, uma insegurança, “com as redes sociais é muito fácil cair no controlo”, assegura Filipa Costa Macedo. “Por exemplo, o WhatsApp permite ver quando o outro leu uma mensagem ou quando está online. E ora porque viu a mensagem e não respondeu, ora porque estava online e não disse nada. Também porque nunca publica fotos da família. Isto é um discurso que existe.” E, de acordo com a psicóloga, perante uma desconfiança, é “difícil resistir à tentação de ir ver o telefone do outro, mesmo sabendo que não o deve fazer e reconhecendo que não está no seu direito”. “Para ver as mensagens no WhatsApp, no Instagram, ver se há um Tinder ou um Bumble instalado. Acontece elementos de um casal terem estas plataformas de encontros instaladas.”
No meio de tudo, o que é que hoje pesa mais? Embora a narrativa clássica, olhando a casais heterossexuais, tenda a diferenciar homens e mulheres – no sentido de que os homens parecem levar mais a peito uma traição física e as mulheres a ficar mais magoadas com uma traição emocional -, e apesar de ainda haver questões culturais enraizadas, a realidade hoje é bem mais rica. “No geral, creio que nos aproximamos mais da ideia de que uma traição emocional que se estende no tempo pesa mais do que uma traição física de uma noite. Dito isto, apesar de as pessoas eventualmente se sentirem mais magoadas com a traição emocional, é quando chega a traição física que se sentem mais empoderadas para dizer ‘agora chega’”, explica Luana Cunha Ferreira.
Ainda assim, isso pode não significar o fim. Filipa Costa Macedo defende que é “possível ultrapassar, regenerar a confiança e continuar a viver bem em casal”. “Depois de uma infidelidade, mais do que uma será difícil”, ressalva. Sendo certo que vivemos uma nova era. O “contrato” que os casais vão estabelecendo está cada vez menos claro e o leque de possibilidades do que pode magoar o outro aumentou muito. “Também pela importância que o Mundo dá às redes sociais, a um like, a um post. É hoje muito mais difícil antecipar tudo o que nos magoa.”