O mundo das primeiras-damas americanas

O cargo não existe oficialmente, mas há décadas que as esposas dos presidentes americanos têm gabinete e staff próprios. Já a agenda tem variado largamente ao longo das décadas, consoante os interesses de cada uma. Algumas tornaram-se figuras incontornáveis de causas maiores, outras desfraldaram importantes bandeiras contra-normativas. E sim, Melania Trump também foi "revolucionária" (de uma forma muito própria).

Corria o ano de 1776 quando Abigail Adams, esposa de John Adams, um dos pais fundadores dos EUA, primeiro vice-presidente do país, segundo presidente americano, escreveu ao marido uma carta que havia de se eternizar. Aproveitando a proclamação da independência face ao domínio britânico, Abigail apelava a que, no novo código legal, também as mulheres fossem tidas em conta. “Remember the ladies” [lembrem-se das mulheres], dizia, numa tirada que se eternizou. O apelo de Abigail não foi ouvido na altura, na verdade havia de tardar a sê-lo (foi preciso esperar quase 150 anos para que fosse ratificada a 19.ª emenda à Constituição americana, que veio consagrar o direito das mulheres a votar), mas a história ajuda a ilustrar o papel relevante e “contra-normativo” que várias esposas de presidentes americanos desempenharam ao longo da História. “Muitas primeiras-damas, de forma mais ou menos subtil, quebraram regras normativas e sociais e contribuíram para pôr na agenda alguns grandes temas que foram contra-normativos”, entende Daniela Melo, cientista política formada nos EUA e professora na Universidade de Boston.

Se Abigail Adams é um dos exemplos mais remotos, muitas outras lhe seguiram os passos, sobretudo a partir do século XX. Uma delas foi Eleanor Roosevelt, esposa de Franklin D. Roosevelt, histórico presidente e o famoso pai do “New Deal”. “Há um antes e um depois de Eleanor Roosevelt”, considera a professora universitária. “Por ser uma ativista pelos direitos humanos e os direitos civis, por ter sido uma primeira-dama que foi o braço-direito do marido e influenciou a visão dele, pelo respeito mútuo sobejamente conhecido que havia entre ambos.” Além de ter lutado para melhorar a situação das mulheres trabalhadoras, apoiou a criação da Organização das Nações Unidas, tendo-se tornado sua diplomata e embaixadora por nomeação do presidente Harry Truman. Durante esse período, presidiu anda à comissão que elaborou e aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos. As batalhas que travou neste campo foram de tal ordem que Truman haveria de lhe chamar a “primeira-dama do Mundo”.

Depois dela, muitas outras abraçaram importantes causas e lutas, rasgaram convenções sociais, impactaram de sobremaneira a sociedade americana. Foi o caso de Jacqueline Kennedy, esposa de John F. Kennedy, que não só se tornou um ícone do estilo e do bom gosto, como mereceu ampla admiração pela forma corajosa com que lidou com o assassinato do marido. Já Betty Ford, esposa de Gerald Ford, foi “a primeira mulher influente a assumir abertamente que tinha cancro da mama”. Mais tarde, pôs também o tema das dependências na agenda, ao assumir a batalha contra o alcoolismo. Ganhou até o rótulo de uma das primeiras-damas mais sinceras da História, dado que não se escusava a comentar nenhum dos temas polémicos da época: fosse o feminismo, o aborto (liderou o movimento pró-escolha), as drogas, o sexo. Fundou até o Betty Ford Center, que se dedica ao tratamento de dependências.

Já Rosalynn Carter, mulher de Jimmy Carter, ficou conhecida por ir a todas as reuniões de gabinete. “E foi muito criticada por querer ter esse papel”, acrescenta Daniela Melo. Como lembra Nuno Gouveia, especialista em política americana, “o mais comum, na era moderna, tem sido ver primeiras-damas a envolverem-se nas causas sociais”. Refere, a propósito, o exemplo de Nancy Reagan, mulher de Ronald Reagan, uma ex-atriz de Hollywood que se destacou por liderar uma campanha de grande envergadura contra o consumo de droga. “Just Say No” foi o mote. “Muitas delas tiveram este condão de quebrar certas barreiras e abrir o discurso público em temas importantes”, resume Daniela Melo.

Se olharmos para os exemplos mais recentes, a tendência para advogar causas sociais está também fortemente vincada. Antes, vale a pena tentar perceber que figura é esta. Germano Almeida, também especialista em política americana, aponta um paradoxo curioso. “É interessante porque o cargo não existe oficialmente [nem há qualquer referência à primeira-dama na Constituição americana], mas é de tal forma importante que têm um espaço próprio, uma equipa própria, uma agenda própria.” Por não se tratar de um cargo eletivo, a primeira-dama não exerce funções oficiais nem recebe salário. No entanto, é presença regular em muitas cerimónias oficiais, acompanhando o presidente em funções ou mesmo apresentando-se no seu lugar. Supostamente – e supostamente, porque, lá está, as funções não estão estipuladas em qualquer documento -, a primeira-dama tem também a cargo os eventos sociais e cerimoniais que decorrem na Casa Branca. Além de ter o seu próprio quadro de funcionários. Nuno Gouveia não tem dúvidas de que são “figuras importantes do imaginário americano, muitas vezes usadas pelos líderes como trunfos políticos, tanto nas campanhas como no próprio exercício da função”. Quanto aos temas a que se dedicam, dependerá sempre dos interesses e convicções de cada uma.

Michelle Obama, mulher de Barack Obama, foi a primeira primeira-dama negra. Anos mais tarde, Jill Biden, mulher de Joe Biden, foi primeira a manter um emprego remunerado, fora da Casa Branca (Jewel Samad/AFP)

Olhando às últimas décadas, tivemos, por exemplo, o caso de Barbara Bush, esposa de George H. W. Bush, que criou uma fundação para a alfabetização familiar, de Laura Bush (mulher de George W. Bush), que abraçou as bandeiras da educação e da alfabetização e apostou na sensibilização em relação à sida e à malária, ou de Michelle Obama, mulher de Barack Obama e primeira afrodescendente a ocupar o posto, que abraçou causas como a luta contra a obesidade infantil, a luta pela igualdade de género e o apoio às famílias militares. Destacando-se pelo estilo e a aura carismática, chegou a ser considerada uma das mulheres mais influentes do Mundo. Quanto a Hillary Clinton (esposa de Bill Clinton), Melania Trump (parceira de Donald Trump) e Jill Biden (mulher de Joe Biden), todas marcaram a diferença, ainda que por razões sobejamente diferentes.

Revolucionárias, por razões distintas

No caso de Hillary, Germano Almeida, não hesita em considerá-la, a par de Eleanor Roosevelt, “uma das duas primeiras-damas mais relevantes da história”. “Foi a primeira a ter um peso político mais pronunciado, tendo liderado a reforma da saúde, embora tenha sido, na verdade, uma reforma falhada, porque acabou por não passar no Congresso. Mais tarde, foi a terceira mulher a assumir o cargo de secretária de Estado dos EUA, depois de Madeleine Albright e de Condoleezza Rice.” Depois, em 2016, acabaria por liderar ela própria as hostes democratas na corrida à Casa Branca, sendo que, como é sabido, perdeu para Donald Trump, apesar de ter conseguido um número de votos superior.

Melania Trump também foi “revolucionária”, mas por “quebrar a ilusão de que uma primeira-dama tem de fazer seja o que for”. Aqui, surge ao lado do marido, Donald Trump, na Convenção do Partido Republicano, em julho (Nick Oxford / AFP)

Já o caso de Melania Trump – que agora está de volta à Casa Branca – não podia ser mais distinto. “Não foi particularmente ativa, não teve grande participação em causas sociais, inclusive no primeiro ano da presidência de Trump manteve-se em Nova Iorque”, assinala Nuno Gouveia. E assim abriu também ela um precedente. “Na verdade, a Melania também é revolucionária como primeira-dama, na medida em que foi a primeira a quebrar a ilusão de que a primeira-dama tem de fazer seja o que for”, acrescenta Daniela Melo. Germano Almeida considera mesmo que foi uma “não existência”. E sim, Jill Biden também entra nesta lista das mulheres dos presidentes que, de uma forma ou de outra, fizeram História. “É curioso porque embora tenha um perfil muito discreto, sendo que claramente não tem um perfil político, também ela é uma ‘first’. Se Hillary foi a primeira primeira-dama que se tornou candidata a presidente, se Michelle Obama foi a primeira negra naquelas funções, a mulher de Joe Biden foi a primeira a ter um emprego remunerado fora da Casa Branca. Sempre foi professora e nunca deixou de o fazer, continuou sempre a sair para ir dar as aulas dela à universidade [é professora de Inglês na Faculdade Comunitária da Virgínia do Norte]”, sublinha Germano Almeida. Agora, resta saber se a segunda passagem de Melania pela Casa Branca será semelhante à primeira ou se vai voltar a “inovar”. Por boas ou más razões.

[Artigo publicado originalmente na edição de 3 de novembro da “Notícias Magazine” e atualizado na versão online, após ser anunciada a vitória de Donald Trump]