Depois de semanas particularmente difíceis, a campanha democrata renasceu das cinzas e segue agora com uma dinâmica auspiciosa. A recente convenção funcionou como corolário apoteótico de um mês de sonho para o partido, renascido à boleia de Kamala Harris e do aparente desnorte de Donald Trump. Mas a prova de fogo ainda mal começou. E o excesso de confiança tende a ser mau conselheiro.
Passou pouco mais de um mês desde que Donald Trump surgiu com estrondo nas primeiras páginas de todo o globo. De punho erguido, a apregoar suprema resistência, com o sangue a escorrer-lhe pelo rosto, culpa do tiro que lhe acertou de raspão, e uma gigante bandeira americana esvoaçante como pano de fundo, numa combinação semiótica imaculada, o ex-presidente americano, e candidato às eleições de novembro, mostrava-se ao Mundo como herói soberano e imbatível. Tanto mais quanto o rival Joe Biden insistia em tropeçar nos próprios pés, com gaffes, com discursos titubeantes, com uma falta de vigor que roçava o angustiante – e que deixou o Partido Democrata à beira de um ataque de nervos. Num ápice, a ideia de uma suposta invencibilidade de Trump tomou conta das conversas e do espaço mediático, foi defendida em artigos de opinião e programas televisivos, chegou a ser assumida por publicações internacionais. “Trump invencível?”, questionou o francês “Le Parisien”. Já o dinamarquês “Ekstra Bladet” sentenciou: “Trump ganha as eleições aqui”.
E, no entanto, aqui estamos, nem um mês e meio depois desses dias em que a história pareceu escrita por antecipação, com os democratas mergulhados numa dinâmica triunfal, unidos em torno da fénix Kamala Harris, unanimemente aclamada depois da desistência de Joe Biden (a 21 de julho) e de uma convenção que foi o desfecho perfeito de um mês de sonho. “Yes, she can” [sim, ela pode], vaticinou Barack Obama, numa reedição do slogan que o projetou para a vitória nas eleições de 2008 e que tão bem resume aquela que é, por estes dias, a convicção generalizada: Kamala segue em vantagem para arrebatar a presidência dos EUA, nas eleições de 5 de novembro, e tornar-se a primeira mulher presidente da história do país. E logo uma mulher negra. E de origem sul-asiática. “A primeira da história contra o pior da história”, como se apregoa no partido.
Daniela Melo, cientista política formada nos EUA e professora na Universidade de Boston, realça que este foi um “mês incrível” para os democratas, em que “o partido superou fraturas bastante palpáveis” e conseguiu uma impressionante unanimidade em torno de Kamala, uma “lufada de ar fresco”. E sim, a Convenção Nacional Democrata, por onde passaram todos os grandes nomes do partido, várias figuras republicanas e até a superestrela Oprah Winfrey, surgiu no momento certo para reforçar esta metamorfose redentora. “As convenções são eventos altamente coreografados, que costumam ajudar imenso os candidatos, porque são uma oportunidade para mostrar a melhor face. Tradicionalmente, há até uma reação do eleitorado que é percetível nas sondagens, com um incremento de um a três pontos percentuais. E esta correu particularmente bem a Kamala, que teve um discurso final ótimo.”
Germano Almeida, especialista em política americana, concorda em parte. “Um presidente em funções desistir da corrida à reeleição é algo de anormal e esta convenção tinha tudo para correr mal, porque havia o risco de surgir num contexto em que o partido não soubesse quem escolher. Mas não, foi uma celebração e um momento de união. Temos de ter em conta que o Partido Democrata é uma grande tenda, que abarca duas alas muito diferentes. Mal comparando com a política portuguesa, vai quase do CDS ao PCP. Há tanto pessoas de centro-direita como uma ala muito à esquerda. E, para já, Kamala tem conseguido associar as duas coisas bastante bem.” Quanto ao discurso de encerramento da candidata, considerou-o “positivo, mas sem brilho”.
Nuno Gouveia, também especialista em política americana, reforça a questão da unanimidade. Se é inegável que Harris tem superado expectativas e conseguido uma mobilização exemplar – os mais de 500 milhões de dólares de donativos angariados até ao momento, um absoluto recorde, e o facto de vários repórteres americanos jurarem que não viam comícios com tanta gente e energia desde Barack Obama são dois exemplos vivos disso -, a convenção teve pois esse papel primordial de “mostrar o partido unido”. “O que é bem diferente do que aconteceu na convenção do Partido Republicano”, assinala. “Figuras como George W. Bush, Mitt Romney ou Mike Pence não estiveram presentes, porque não estão com o atual líder. De todos os candidatos vivos que fizeram parte dos tickets [as duplas – presidente e vice – que se candidatam às eleições] republicanos nos últimos anos, a única que ainda apoia Trump é Sarah Palin. Há uma parte considerável do antigo partido republicano que não se revê no atual líder. Já Kamala tem conseguido acalmar ou pelo menos suavizar as críticas internas.”
Trump à deriva e o que aí vem
Para ajudar, Trump parece algo desnorteado desde que Biden abdicou da corrida. “Não tem conseguido sair dos ataques pessoais e mesquinhos que o prejudicam em certos segmentos do eleitorado”, destaca Nuno Gouveia. Ora vai a uma associação de jornalistas negros criticar Kamala por ter “decidido ser negra”, ora a acusa de ser comunista, ora diz, a propósito de uma capa da “Time” com uma bela ilustração da candidata, que é mais bonito do que ela. Um chorrilho de desvarios, até para uma figura como Trump. “Faria mais sentido focar-se nas diferenças políticas, na economia, na imigração, porque a América média tenderá mais a concordar com os republicanos nesses temas. Aliás, os seus estrategas até já terão delineado um plano para apostar em colocar o ticket democrata com uma dupla demasiado à esquerda, por políticas que defenderam no passado, mas Trump tem sido impossível de disciplinar.”
Daniela Melo não tem dúvidas: “A desistência de Biden desestabilizou-o. Puxaram-lhe o tapete e ele tem-se mostrado errático, ansioso, irritado, tem tentado várias linhas de ataque, mas todas bastante ad hominem. Tanto que já são os próprios financiadores e líderes do Partido Republicano a pedir-lhe para recalibrar.” A docente alerta para uma outra nuance, particularmente sensível. “Já se nota algum desconforto, mesmo entre republicanos, face ao discurso de Trump de que a desistência de Biden foi um golpe e é ilegal. Porque soa a eco do discurso que teve há quatro anos para descredibilizar a corrida à presidência [e que culminou com a invasão do Capitólio, a 6 de janeiro de 2021]. Parece que está a preparar terreno para uma narrativa de rejeição do resultado e está a deixar as pessoas em sentido.” Ressalva, no entanto, que isto “não quer dizer que Trump não venha a conseguir encontrar uma linha de ataque eficaz”. Mesmo que não seja, por definição, “um candidato que se consiga moldar ao momento”.
Germano Almeida também não o vê a fugir muito dos ataques pessoais. Por uma razão simples: “É como a história da rã e do escorpião, está na natureza dele.” O especialista entende até que o Partido Republicano foi tomado por uma certa Síndrome de Estocolmo. “A verdade é que em 2016 vence as eleições, mas com menos três milhões de votos. Em 2018, os republicanos perdem as intercalares. Em 2020, é o primeiro presidente a falhar a reeleição. E nas intercalares de 2022, os candidatos trumpistas tiveram um desempenho bastante aquém. O partido parece estar refém de Trump e com isso pode desaproveitar uma boa oportunidade de voltar a liderar o país. Convém lembrar que, nos últimos 16 anos, os democratas passaram 12 na Casa Branca.”
Mas qualquer anúncio de vitória democrata é manifestamente exagerado. Até porque apesar de as sondagens darem vantagem a Kamala a nível nacional – um volte-face importante perante os números de Biden -, as especificidades do sistema eleitoral americano ditam que a disputa se decide sobretudo nos “swing states” (estados em que a vitória oscila entre democratas e republicanos). E aí, por muito que Harris tenha conseguido uma recuperação importante, a corrida continua renhida. Ainda esta semana, o britânico “The Guardian” noticiava que os estrategas da campanha democrata se têm desdobrado em apelos internos para conter uma certa euforia reinante. E não terá sido à toa que, em plena convenção, Obama fez questão de lembrar que vai ser uma “corrida renhida”.
Ora, face a tudo isto, o que esperar dos próximos dois meses e meio? Germano Almeida arrisca um prognóstico. “Os democratas vão querer levar a discussão para a defesa da democracia, para o empoderamento das minorias, para a questão da decência. Os republicanos vão querer centrar-se na economia, no crime, na imigração .” É que, apesar de os resultados macroeconómicos serem bons, com uma criação de emprego invejável e a descida da inflação em tempo recorde, a classe média sente que o poder de compra diminuiu (e 56% dos americanos ainda acreditam que Trump faria melhor em termos económicos). Quanto à imigração, vale a pena lembrar que os anos da presidência de Biden foram aqueles em que houve uma maior entrada de imigrantes ilegais no país. E que Trump promete uma deportação em massa. Estão portanto reunidos os ingredientes para que este seja um tema quente. Além da questão do aborto. E das alterações climáticas. E da crónica discussão sobre as armas de fogo. E sim, também haverá fake news e desinformação em barda, agora com a ajuda da inteligência artificial – ainda recentemente, Trump “pôs” Taylor Swift a manifestar-lhe um apoio que nunca existiu.
Daniela Melo recorda ainda que em breve haverá o regresso às aulas e com ele o ressurgimento de movimentos estudantis de protesto em relação à ação de Israel na faixa de Gaza (há já mais de 40 mil mortes a registar). “Se estes movimentos forem amplificados, se alastrarem para as ruas, a resposta que Kamala tiver perante isso pode ter um impacto forte nas eleições. Porque uma das linhas de ataque dos republicanos é que a Esquerda não tem pulso forte contra os radicais e que os estados liderados por democratas são uma espécie de distopias de crime. Por outro lado, se houver uma reação musculada, isso também poderá levar uma parte do eleitorado a afastar-se.”
Olhando para momentos decisivos, a cientista política aponta para a importância dos debates que aí vêm. “Não é só o debate entre Kamala e Trump, que, com certeza, o país parará para ver. Também o debate vice-presidencial vai ser mais importante. Habitualmente, os vice-presidentes não lideram a conversa mediática, mas nestas eleições tem sido diferente. E nesse aspeto, ao contrário de Tim Walz [vice de Kamala], que parece estar a contribuir para captar eleitorado, J. D. Vance [vice de Trump] não tem ajudado o ticket. Está até a desmobilizar o voto feminino e afro-americano.”
Com Kamala, é o oposto. “Vejo-a muito consistente a liderar nos jovens, nos negros, nas mulheres”, sublinha Germano Almeida, admitindo que “as coisas estão a correr demasiado bem aos democratas”. “Kamala parece ter aqui um caminho vencedor que é esta narrativa de que os democratas oferecem decência na governação e respeito pela lei, e que Trump é um criminoso, um aldrabão e um predador de mulheres que se voltar à presidência vai tirar ainda mais direitos às minorias. Se se mantiver neste caminho, os democratas podem vencer. Mas claro que há coisas que podem mudar.” Designadamente, aponta o especialista, pode surgir algum “acontecimento ‘major’” que vire a corrida do avesso. Seja uma interferência externa brutal, uma evolução inesperada no Médio Oriente, um atentado, ou outro qualquer evento que ainda nem conseguimos projetar. E se em pouco mais de um mês tudo mudou, dois meses e meio são uma eternidade.