Joel Neto

O fora-da-lei


O momento em que mais receio pela viabilidade do meu filho é quando o surpreendo a fazer uma asneira. Porque, entre esse instante e aquele em que lhe tiro o cutelo da mão, ou arranco da tomada o candeeiro que vem de esventrar, ou fecho a janela em que de alguma maneira estrambólica conseguiu pendurar-se, ele vai tentar concretizar a asneira. Vai fazê-lo depressa e atabalhoadamente. Não só é provável que de facto a concretize como, inclusive, que a suplante. E, durante todo esse tempo – às vezes dois ou três segundos, outras uma ínfima fracção disso –, tudo pode acontecer.

Chega a ser divertido, quando mais tarde penso nisso: ele num frenesi total, metade aflição e metade gargalhada, com os dedinhos e as perninhas e olhinhos muito vivos e toscos ainda, a tentar concretizar o disparate para que achava que tinha muito mais tempo. Mas, durante todo esse evento, eu sinto que corre realmente perigo de vida, ou pelo menos que aquilo que o separa de uma tragédia não é assim tão mais fiável do que um fio de cabelo esvoaçando ao vento. E então, dominado o cutelo, ouço-me cantarolar:

Para Jeremias nada se assemelha à magia da dinamite
A não ser talvez o rugir apaixonado das mais profundas entranhas da terra
E só quando as fachadas dos edifícios públicos explodirem numa gargalhada
Será realmente pública a lei que as leis encerram

Tem graça porque toda a vida gostei de canções narrativas. Sempre que me pediram uma playlist para algum programa de rádio, fiz soar a história de Frank, a cujos anos mais selvagens Tom Waits serviu de bardo, ou por exemplo a da fotografia de Fanny Ardant, com que Vincent Delerm, naquela solidão terrível que é a vida em Paris, estabelece a certa altura uma relação quase conjugal. Já quanto ao Jeremias, sobre cujo gosto de brincar com o destino canta Jorge Palma, fui sempre lacónico:
— É um ragtime à portuguesa. Faz-me rir.

Mas nunca foi só isso, não. Havia naquele fora-da-lei, descendente por linha travessa do famigerado Zé do Telhado, uma nobreza que sempre invejei. Ele desarranjava o pesadelo para lá dos limites legais, mas fazia-o como um poeta: por amor ao que é belo e por vocação. Ao pé das dele, as minhas transgressões pareceram-me sempre cobardezinhas, ou convenientes, ou apenas viciosas. Já no Artur, que dali a instantes vou reencontrar a atravessar a sala com o balde do lixo atado a um cordel, ou a comer pizza no chão da cozinha por entre as caixas que conseguiu derrubar do topo do armário, identifico pelo menos a mesma bondade, a mesma beleza e duas vezes a poesia de Jeremias.

Mas, é claro, eu sou o pai. Dêem-me um desconto.