O Eduardo educou a morte
Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.
A minha criança morreu. O menino, meu sobrinho, meu afilhado, que tanto me comoveu e permitiu inventar o livro “O filho de mil homens”, congeminou uma baralhice nas células nunca vista. Alguns cancros, como raríssimas anomalias, são aquilo que sabemos dos super-heróis, como quando alguém é mordido por um insecto e vira um mutante. Os super-heróis têm todos uma baralhice nas células, de algum modo, inventam todos o seu próprio cancro. O Eduardo inventou o dele e passou mais de dois anos a ensinar a mais limpa e generosa arte de morrer. Os génios, como ele se tornou, educam até a morte, educam até Deus, deixam pistas ao Mundo e à humanidade de como ser melhor, muito melhor.
Morreu a criança mas jamais sua memória. Ao meu irmão, Marco, à minha cunhada, Assunção, aos meus sobrinhos e irmãos do Eduardo, o Marco Jorge e o Miguel, dizia eu que deve sobrar uma saudade limpa, uma saudade gloriosa, porque o Eduardo alcançou a lucidez. Viu a grandeza maior da vida, entendeu o sentido, deitou mão do sarcasmo e da ironia, colocou-se triunfante sobre seu próprio corpo definhando. O corpo, afinal, é um animal quando comparado com o esplendor da consciência. O Eduardo jamais desceria ao tamanho de um animal. Passou breve mas profundo. Sábio. Sem assombro, apenas a inteligência grave e sem trégua.
Os super-heróis, como as pessoas que inventam uma doença nunca vista, uma anomalia mutante e sem se deter, aceleram todas as visões. Cada instante lhes pode trazer o esclarecimento, e todos aparecem com o mesmo milagre com que aparece a Virgem Maria. As pessoas, e até as coisas, milagram a toda hora. São vertigens fulgurantes, ensinamentos que qualquer outra pessoa, ao contrário dos super-heróis, leva anos e anos para aprender.
O Eduardo virou um super-herói, o que lutou foi maior do que um Dragon Ball zangado, mais do que dois King Kongs, muito mais do que dez manadas de rinocerontes. E lutou de olhos abertos, como disse, lúcido, a ver seu predador chegar sem deixar nunca que lhe levasse o essencial, a decisão de questionar e responder a tudo. Como quem dialoga. Como quem conversa com Deus. Ou joga. No tabuleiro da vida, onde se busca o sentido, ele não perdeu. Ele entendeu. Afortunados aqueles que, com dezasseis ou cem anos de idade, chegam a entender. São os salvos. O Eduardo, na verdade, esteve sempre salvo. Até a morte se terá depurado. Até Deus se terá depurado.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)