Margarida Rebelo Pinto

O coração de Gedeão


Em quantas partes se divide o coração? A frase é de António Gedeão, pseudónimo de Rómulo de Carvalho, professor de Liceu em Lisboa, cuja obra literária enriqueceu Portugal para sempre, sobretudo pela poesia que nos deixou. Quem, nascido antes ou pouco depois da Revolução de Abril, não se lembra de alguns versos do maravilhoso poema “Pedra Filosofal” musicado de forma singela por Manuel Freire?

Nos dias que correm, as adolescentes seguem influencers com fanatismo religioso, ambicionam roupas de marca e sabem mais truques de maquilhagem aos 13 anos do que as mães e as avós durante toda a vida. É uma geração refém da tirania da imagem e do virtual, que nunca desceu a rua em carrinhos de esferas, nunca saltou ao elástico no recreio e nunca se sentou à volta de uma fogueira improvisada na praia com guitarras no grupo para cantar, exceto se andar nos escoteiros.

Este poema inspirou várias gerações, desde Silent Generation, passando pelos Baby Boomers e culminando com a Geração X. O poema é longo e complexo, mas todos sabemos ou reconhecemos os últimos versos: Eles não sabem nem sonham/ que o sonho comanda a vida/ Que sempre que um homem sonha/ o mundo pula e avança/ como uma bola colorida/ entre as mãos de uma criança.

Outro dos seus poemas mais conhecidos continua a marcar a vida das mulheres portuguesas, relatando o seu sacrifício quotidiano, decorrente da condição feminina. Falo de “Calçada de Carriche”, que relata a vida de Luísa que sobe a calçada, sempre cansada, que sai de casa de madrugada e só regressa quando é noite fechada. Luísa é nova, os magalas apalpam-lhe as coxas, mas está tão esgotada que nem dá por nada. Luísa é operária numa oficina, a sua existência é uma sequência de atos a que a vida obriga, desde dar de mamar à filha até deixar que o marido se sirva do seu corpo. Sempre que um homem sonha o mundo pula e avança, e as mulheres, podem sonhar? Entre o sonho do homem, vive o pesadelo da mulher. Somos todas Luísas, todos os dias assistimos ou ouvimos histórias tristes de mulheres que sofrem de abusos e de violência: no namoro, em casa, alvo de assédio físico e moral no local de trabalho, negligência, discriminação. Para as mulheres, o mundo avança e recua em direitos e liberdades, qual bola que não segue a trajetória de uma tão desejada e merecida evolução.

Desconheço em quantas partes se dividia o coração do poeta, mas tenho a certeza de que todas as mulheres que habitam a sua poesia também viviam dentro dele.