Valter Hugo Mãe

O Cildo Meireles de Inhotim


Foi numa revista francesa que vi pela primeira vez, ali pelo fim dos anos de 1980, imagens da instalação de Cildo Meireles, “Desvio para o vermelho”. Fascinado com a força sanguínea, a coisa quase insuportável de tudo parecer incandescer, eu adorei com medo. Senti um respeito estranho. A um tempo feito de beleza e ferida. Para mim, todos os objectos vermelhos eram como corpos sem pele, talvez eternamente nesse estado de fogo já por dentro, sem labareda, apenas o consumo da própria carne.

Julguei, sem remédio, que jamais veria tal obra de Cildo Meireles. Que ela seria mais imaginada do que experimentada, e por isso julguei que nunca poderia ser misturado naquele cenário para que também eu fosse denunciado num inferno só meu, numa maravilha assustadora só minha, de mais ninguém.

O projecto de Inhotim, criado pelo visionário Bernardo Paz, não tem paralelo no Mundo e faz a coisa inacreditável de conservar mais de duas dezenas de galerias sobretudo dedicadas a exposições de carácter permanente. Visitar Inhotim significa encontrar uma série de edifícios concebidos para cada um dos artistas onde se encontram, cristalizadas, as obras que ali se quiseram mostrar. A exposição eterna é um modo de conservar a visão e o gesto do criador. É um modo de permitir que, todos nós, mesmo depois do desaparecimento do autor, possamos estar numa montagem sua, num espaço seu, intacto, chegado a nós como uma obra inteira, sem adulteração, sem fim.

Quando entrei pela primeira vez no espaço vermelho de Cildo Meireles tive a impressão de visitar uma entidade e não um lugar. Há uma ironia violenta ali, uma denúncia da ditadura, o protesto claro contra a prepotência do antigo regime do Brasil. Não senti estar numa exposição, numa instalação, lidando com arte. Senti que me envolvia uma multidão de gente ferida, abatida, impedida, censurada e morta. Uma multidão de pessoas do Brasil que se disfarçavam no educado dos móveis, no educado da casa, mesmo depois de tanta agressão e dor. Para mim, por mais bela, a sala de Meireles é uma capela descarnada, uma sala solene onde a graça de tudo ser vermelho afunda pelo sarcasmo e pela tragédia.

Poder regressar a Inhotim e ao “Desvio para o vermelho” é reencontrar essa multidão que um dia perscrutei numa revista e que, subitamente, tem seu memorial levantado para sempre, como uma memória inesgotável de sua dignidade que nenhum sangue alguma vez saberá acabar. Bravo Cildo Meireles, bravo Inhotim, melhor instituição de arte contemporânea do Mundo.