O calor
Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.
Uma senhora diz-me que lhe parece horrendo que o meu cão me mordisque os pés. Tem mau gosto, adora ver-me descalço, na Internet explicam que é uma prova de afecto. A senhora diz que é descabido deixar que um cão nos meta a boca nos pés. Para ela, os cães são todos uma porcaria que deve ser metida em quintais e fundos de terrenos a ladrarem a quem vai ao longe. Pôs-se um calor insuportável. Adoro ficar de chinelos e, esticado numa boa cadeira, o meu cão apanha-me os pés como cornetos de morango. Fica feliz. Eu adoro que me façam cócegas aos pés. Alegra-me a pele toda. Não me parece nada horrendo. Muito ao contrário. Sinto afecto.
Deve ser de ter ficado calor de um dia para o outro que muita gente desvairou. Encheram-se as praias aqui à frente de casa e quem vem à praia tem cada vez mais ar de gás nas canalizações. Chegam furibundos de pressa, carregados dos filhos e dos amigos dos filhos. Protestam contra tudo. Querem a praia toda, julgo que comem a areia para não deixarem nada para ninguém. Vêm às nossas janelas debater a vida e nunca dizem nada positivo. Têm férias zangadas e só prevejo que se zanguem ainda mais.
Acredito que quem vai à praia em Maiorca deva ter outra paciência para as férias e para a felicidade. As férias nas Caxinas, contudo, estão um baralho assinalável. Ninguém lê livros, ninguém conversa, há bolos e gelados, há quem se deite ao sol a torrar e são essas as pessoas que me revelam maior juízo. As caladas a dormir.
Como não gosto de fazer praia, sou antipático. Um tipo feio e mau que quase dança à chuva para que venha. Não aguento o calor acima dos 25, e não sei que fazer à preguiça e ao cansaço. Detesto o sol nos olhos, na cabeça. Tenho enxaquecas e não lido bem com a luz. Já disse, estou fotofóbico. Eu bem quero não ser daqueles velhos ranhosos que se dão mal com tudo, mas estou cada vez mais velho e cada vez muito mais ranhoso e quero que chova e que isto fique tudo calminho sem barulho e sem mulheres que me venham dizer que o meu cão devia viver no fundo de um terreno, sozinho, sem um abraço, sem uma mantinha linda, sem me roubar meias e chinelos.
As pessoas que não amam cães nunca deviam ter férias nem nunca deviam ir à praia nem nunca deviam passar na minha varanda. Estou demasiado antipático para ser um bom cidadão com elas.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)