Margarida Rebelo Pinto

O bicho-da-madeira


Já fui, como quase todos os seres humanos, dada a esses achaques de amor súbitos e destruidores que nos roubam a fome, o sono, e por vezes a alegria de viver. Enveredei cedo pelos caminhos tortuosos da paixão, possuída por essa febre triste e castradora que reduz um ser humano a um décimo das suas capacidades. A primeira memória de tal estado de desvario interno sucedeu-me por volta dos oito anos, por causa de um certo jovem da sala ao lado da minha durante a antiga 3.ª classe, num tempo em que o mapa de Portugal ainda era ultramarino e o retrato do professor Marcello Caetano emoldurado nos espiava pelo canto dos seus óculos de massa iguais aos do meu pai.

O jovem em questão era dotado de uma melancolia endémica e de belos olhos azuis. Não me dava conversa, não sei até hoje se por timidez ou por desinteresse, de modo que a paixão nasceu do equívoco mais comum a este tipo de patologia amorosa, a idealização voluntária do ser amado que só existe na nossa cabeça. O disparate durou dois anos, durante os quais mal troquei uma palavra com o dito. Aos dez anos, eu já passava os dias com o coração enfiado nos livros e a cabeça no éter, ou vice-versa, como é comum aos espíritos criativos.

Durante décadas acreditei que o meu príncipe encantado andava por aí e esperei, às vezes com o GPS ligado, outras, sentada à soleira como nos ensina a sabedoria oriental, caindo sempre na armadilha do amor romântico. O resultado foi clássico: acabei algumas vezes estendida no tapete, levantei-me e segui em frente, perdi o ideal e ganhei juízo. E foi doendo sempre menos, comparando com os trambolhões anteriores, até porque, depois dos 50, uma pessoa já não cai, só se atira ao chão, e é se quiser.

O grande problema dos amores romantizados é que as almas envolvidas em tão doce armadilha ganham saudades de memórias nunca vividas, condenando o estado emocional a um fogo quase permanente. Citando Carlos Drummond de Andrade, que iniciou a sua vida de poeta para preencher pequenos espaços no jornal que sobravam depois de feita a paginação, também temos saudades do que não existiu, e dói bastante.

Doem o vazio, a ausência, dói na imaginação tudo o que poderia ter sido e não foi. Instala-se aquela mágoa miudinha dos sonhos perdidos, quase sempre para sempre, que vai minando o ânimo com que se encara o presente e o otimismo em relação ao futuro. Tal como o bicho-da-madeira, que vai abrindo caminho até chegar a todos os cantos da casa, é fundamental criar mecanismos para se ver livre de tal maleita.

Em caso de praga, mais vale chamar uma empresa da especialidade. Ou abrir o coração a um novo amor, já agora construído na realidade. Afinal, não ser amado é falta de sorte, mas não amar é a própria infelicidade.