Novas formas de construção: o futuro da habitação mora aqui

Moradia 3D impressa pela Havelar, em Vila do Conde

Casas modulares, pré-fabricadas, impressões 3D, ICF. Há novas soluções a ganhar peso no mercado da habitação, para atender a uma mão-cheia de problemas.

A crise da habitação aperta, a oferta deixa a desejar, os preços são incomportáveis, pedem-se respostas rápidas para uma questão que, sendo global, se tem intensificado em Portugal nos últimos anos. Entretanto, há uma nova estratégia para a habitação, que passa por uma aposta redobrada na construção e pelo lançamento de novas linhas de crédito. Mas o plano não é tão simples de executar quanto possa parecer. Desde logo pela urgência. Mas também pela falta de mão de obra. No início do ano, Albano Ribeiro, presidente do Sindicato da Construção de Portugal, garantia que eram precisos cerca de 90 mil trabalhadores qualificados. E ainda recentemente Pedro Dominguinhos, presidente da Comissão Nacional de Acompanhamento do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), admitia que as dificuldades de contratação no setor são uma ameaça ao cumprimento das metas previstas para a execução das verbas do PRR até 2026. Acresce que a emergência climática é incontornável e que encontrar soluções para construir com o menor impacto ambiental possível é imperativo.

E então a construção vai-se reinventando, o processo não é novo, mas está a ganhar fôlego, mesmo que Portugal ainda esteja uns passos atrás de uma boa parte dos países europeus. A industrialização da construção ou construção off-site (fora do local) – que passa por transferir uma boa parte do processo para o contexto de fábrica, reservando para o espaço de obra pouco mais do que a montagem – e a aposta em casas mais eficientes, tanto do ponto de vista da construção como da utilização, são tendências incontornáveis, que prometem exponenciar-se.

André Fontes, professor da Escola de Arquitetura, Arte e Design da Universidade do Minho e investigador do Lab2PT (Laboratório de Paisagens, Património e Território), lembra, a propósito, que, além de novos projetos que vão surgindo, exclusivamente dedicados às novas tendências, também as grandes empresas de construção estão a investir na mudança. “O PRR prevê muito financiamento para esta reestruturação. E a tendência é que cada vez mais empresas migrem para a construção off-site. Noutros países, é algo que está mais avançado. Em Portugal, como durante muito tempo tivemos mão de obra disponível e económica, demorou mais. Mas agora começamos a ter os mesmos problemas.”

O docente enumera outras vantagens dos novos tipos de construção. “Além da questão da falta de mão de obra, há que considerar que o impacto nas zonas de construção vai ser menor, porque a obra no local vai ser muito mais curta. Isto é particularmente relevante se pensarmos, por exemplo, em obras que se realizam em centros históricos e que acabam por provocar grandes constrangimentos.” Além da tal questão ambiental. “Há uma aposta cada vez maior numa construção mais sustentável”, frisa. Para isso, muito contribuiu também a Agenda 2030. “O recurso crescente à tecnologia permite tornar a construção mais eficiente, menos onerosa, com modelos que mitigam os custos de construção, sobretudo ao nível dos consumos e da energia despendida.” Acresce que há também um recurso crescente a matéria-prima mais sustentável. “Seja o betão verde, a construção em madeira, a construção mista, há uma aposta maior em elementos naturais.” O investigador não tem dúvidas de que este é um caminho sem volta. “Cada vez vemos mais países com a preocupação de limitar a utilização de materiais provenientes da indústria extrativa, como o betão ou o ferro. Em Portugal, o betão armado continua a ser a solução mais relevante, mas será uma mudança que vai acontecer também no nosso país.”

Manuel Reis Campos, presidente da Confederação Portuguesa da Construção e do Imobiliário e da Associação dos Industriais da Construção Civil e Obras Públicas, fala mesmo numa “revolução” em curso. Com desafios incontornáveis. “O aparecimento de novos processos construtivos, de novos materiais e de novas tecnologias, além de constituir um passo evolutivo natural e positivo, em face do ritmo acelerado que tem de ser impresso, constitui um desafio para as empresas do setor da construção e do imobiliário, pela exigência de um elevado investimento em inovação e na capacitação dos seus recursos humanos. Esta ‘revolução’ rumo à construção 4.0, que está em curso, veio transformar a forma como as empresas viabilizam e concretizam os seus projetos.” Também ele reconhece vantagens inegáveis neste processo. “Os novos métodos estão a emergir como a forma mais eficiente e económica de construir estruturas complexas, uma vez que permitem uma otimização dos prazos, uma redução do desperdício, têm menores exigências de mão de obra, além de potenciar a eficiência energética dos edifícios.”

Um princípio comum

E então, dentro deste novo paradigma da habitação, que opções há? Casas modulares, pré-fabricadas, 3D, aqui e ali os conceitos sobrepõem-se e nem na literatura especializada há consenso quanto a definições estanques. Mas há, pelo menos, um princípio comum, que é a redução brutal do tempo de trabalho em obra, com tudo o que isso acarreta. Comecemos então pelas casas modulares, também designadas de pré-fabricadas (na prática, os módulos são construídos previamente numa fábrica certificada, sendo depois transportados para o terreno, onde vão ser montados), e, em particular, por um estúdio de arquitetura fundado no Porto em 2015, já com os olhos postos no desenvolvimento destas soluções. “Considerámos que este tipo de construção reunia um conjunto de vantagens que hoje são ainda mais preponderantes”, começa por explicar o arquiteto Samuel Gonçalves, fundador do Summary. “Por um lado, a rapidez, sobretudo tendo em conta que atravessamos uma crise da habitação. Por outro, a monitorização, dado que trabalhamos em fábrica e não em estaleiros, o que permite tornar os sistemas mais eficientes, desde o consumo de água, energia e materiais à aposta em métodos construtivos mais amigos do ambiente.” Além, claro, da tal questão da falta de mão de obra. “A pré-fabricação responde à falta de recursos humanos, porque permite construir com menos dependência do trabalho braçal.”

Habitação pré-fabricada, em Arouca, projetada pelo estúdio de arquitetura Summary

Samuel vinca um outro ponto, mais premente num contexto de aumento de temperaturas extremas. “É um passo à frente nas condições laborais dos trabalhadores. A construção tradicional implica laborar com temperaturas negativas ou demasiado elevadas. Já a pré-fabricação permite ultrapassar isso, porque os trabalhadores passam a ser operários fabris e o trabalho em obra é reduzido ao mínimo.” Já em relação ao custo, frequentemente apontado como uma das vantagens deste tipo de construção, o arquiteto fala na existência de alguns “mitos”. “Há a ideia de que estas casas têm de ser mais baratas por serem pré-fabricadas. Na verdade, podem tornar-se mais económicas se trabalharmos em grande escala. Caso contrário, é equivalente.” Já os blocos podem ser unidimensionais, bidimensionais ou tridimensionais e feitos de betão, madeira ou metal. Tudo depende do tipo de obra. Certo é que há uma “procura cada vez maior” por este tipo de soluções, sobretudo “pela rapidez”, garante o fundador deste estúdio, que se dedica sobretudo a projetos de habitação a custo controlado e equipamentos sociais. “Conseguimos uma redução no tempo de construção entre os 20 e os 50%”, aponta.

Uma de quatro creches modulares, todas localizadas em Lisboa, concebidas pelo estúdio Summary

Também Nélia Saraiva, administradora da Vigobloco, empresa que aposta na pré-fabricação, tem notado um aumento da procura. A principal atividade da empresa continua a ser na área dos edifícios logísticos e nas indústrias, mas também a parte habitacional “tem vindo a crescer, por uma questão de mudança de paradigma”. “Antes, a pré-fabricação não era muito bem vista na área da habitação porque era imediatamente associada à habitação social, mas isso está a mudar.” Também no caso da Vigobloco a premissa é a “industrialização da construção”, sendo que tudo funciona por peças. “Cada uma tem um número, para que quem faz a montagem em obra saiba que elas se ligam por uma dada ordem.” E também neste caso, o prazo é “a grande vantagem”. “É possível reduzir para mais de metade do tempo”, garante a administradora. Até porque o trabalho em fábrica pode avançar enquanto se fazem as fundações. E limitações, há? Nélia admite que sim. “Para que não tenham valores insuportáveis, as habitações devem ter linhas mais direitas e poucas consolas.”

Edifícios habitacionais na Venezuela, com a chancela da Vigobloco

Impressoras gigantes e blocos como legos

Distinto é o paradigma proposto pela Havelar, empresa fundada há cerca de um ano e sediada em Vilar do Pinheiro (Vila do Conde), que aposta na impressão de casas 3D. “Além da questão da mão de obra e do savoir faire, temos um outro problema, que se prende com sistemas construtivos obsoletos. A nossa empresa também surge como uma tentativa de ajudar a sociedade a ter sistemas de construção tecnológicos. Assenta num sistema por impressão, só que, em vez de ser com tinta, é com uma mistura de materiais [areia, pedra, argila etc.], que depende do sítio onde se vai construir a casa”, pormenoriza José Maria Ferreira, um dos sócios fundadores da empresa. De forma ultrarresumida e simplista, o processo é este. “Vou para o local, monto a impressora, imprimo a casa, venho embora.” Claro que falamos de uma impressora gigante, montada no local, e capaz de imprimir numa área de 12 por 12 metros, sempre por camadas. A tecnologia é dinamarquesa e está já disponível em cerca de 35 países. Na prática, assegura a Havelar, passa a ser possível construir uma casa com um processo oito vezes mais rápido, com metade da mão de obra necessária na construção tradicional e menos 80% de resíduos. Além de poder ficar três vezes mais barata. Há ainda uma redução do cimento utilizado na ordem dos 50% e uma redução das emissões de CO2 de 60%. O primeiro protótipo está já à vista em Vila do Conde e o primeiro complexo, de 120 moradias, deverá avançar no terreno em breve.

Moradia 3D impressa pela Havelar, em Vila do Conde

Para lá das soluções já referidas, há outros métodos inovadores a surgir. A construção em LSF (Light Steel Frame ou aço leve), por exemplo. Quase sempre aplicada a casas pré-fabricadas, usa aço para criar a estrutura principal de uma casa, em vez do betão e do ferro de uma estrutura convencional. A rapidez, a eficiência energética e a durabilidade são vantagens referidas amiúde. Outro modelo que está a ganhar relevância é o drywall, sistema de construção a seco. Neste caso, o material é pré-fabricado e já vai pronto para a obra, permitindo uma construção mais limpa, rápida e económica, já que não exige a utilização de outros materiais como a argamassa, por exemplo. Para lá da pré-fabricação, também há outras opções a ter em conta. É o caso da construção em ICF (Insulated Concrete Forms), assente em blocos isolantes que se empilham ao jeito de legos, para depois serem preenchidos com betão armado. O isolamento térmico, a filtragem do ar e a rapidez de construção são algumas das vantagens apontadas por António Alves, CEO da Ecoconcept, empresa portuguesa que aposta tudo neste sistema. “São casas com desempenho térmico elevado e baixo consumo energético porque as paredes vão garantir que a perda de energia é baixa e o ganho também. Além de haver menos desperdício e de o material ser reciclado.”

Exemplo de construção em ICF, uma aposta da Ecoconcept

Pequenos passos rumo a um futuro distinto, como augura Manuel Reis Campos, que também destaca a aposta crescente no BIM (Modelagem de Informação da Construção), “para um planeamento e execução mais precisos”, nos edifícios inteligentes e na Internet das coisas. “A tendência será um mercado da construção em Portugal mais digitalizado e sustentável, com a plena adoção da metodologia associada à construção 4.0, o que irá potenciar um setor mais eficiente, resiliente e capaz de responder rapidamente às exigências e desafios do mercado.”