Joel Neto

Nome de gente


De todas as minhas compulsões, nenhuma outra é tão grande como a das listas. Desde criança que faço listas – de jogadores, de livros, de tarefas – e, quando há meses o excesso de trabalho me forçou a mandar às malvas todas as que tinha em curso, para não enlouquecer, o que na verdade fiz foi desactivar aquelas listas e começar outras.

Mas a pior é a lista de contactos. Abro os contactos do telemóvel e lá estão eles, como cápsulas do tempo: A Bola (o jornal onde trabalhavam vários amigos), Åase Langasaeter (uma rapariga que conheci na Noruega), Abbhay Kotecha (um senhor indiano que apanhei como adversário num campeonato de snooker), Adrenalina Fitness (o ginásio em que andava nos tempos do Seixal – beijinhos à Susana). Reler a minha lista de contactos, em elaboração há 30 anos, é percorrer idades, lugares, rotinas e – principalmente – pessoas que em algum momento me povoaram, o que tem o seu préstimo para quem faz da memória uma profissão.

Entretanto, se eu não me lembro da pessoa, da entidade ou da repartição surgida no ecrã, é bem possível que, abrindo a ficha, apareça um parêntesis, um endereço de e-mail ou uma nota a acrescentar coordenadas. E, tratando-se de pessoas, a regra foi sempre: nome e sobrenome, além de indicativo do país (o que me deixou três passos à frente quando nasceu o WhatsApp) e, se possível, foto, endereço de e-mail e até morada física (o que se revelou essencial quando mudei para a ilha e deixei de me lembrar de quem era de Lisboa e quem era da Terceira).
Sobretudo, nome e apelido: isso nunca falhava. Os Nunos nunca eram Nunos, eram, “Nuno do Ó”, “Nuno França”, às vezes “Nuno Gonçalves (director do Palmares)”, em cujo campo eu – e lá vinha a memória – bati um dia um tee shot inesquecível, que me deu o título de Longest Drive do torneio e, como prémio, um driver Cobra cheínho de perdão que me acompanhou durante anos. Daí que há dias – e toda esta conversa para contar isto – me tenha surpreendido ao dar por mim a registar no telefone um número com a singela identificação: “Carlos”. E depois a ir lá melhorar a entrada mas, em vez de um sobrenome, acrescentar: “da Adelaide”.

Daí que há dias – e toda esta conversa para contar isto – me tenha surpreendido ao dar por mim a registar no telefone um número com a singela identificação: “Carlos”.

Foi desconcertante. Porque, de repente, pus-me a pensar e ocorreu-me que talvez também já tivesse registado uma “Sofia”, no máximo “Sofia Super Bock”. E, quando fui ao Shortcuts, à procura dos últimos números que registara, o que percebi foi que, dos dez contactos mais recentemente adicionados, quatro tinham apenas um nome, dois um nome e uma coordenada familiar e só os restantes quatro, nome e sobrenome – sem referências adicionais.

Estávamos os três a fechar o expediente na livraria, a Marta, o Artur e eu, e por um instante pareceu-me que fazia tudo sentido. Olhei os livros pelas estantes, a minha mulher contando as moedas da caixa, o meu filho brincando com o autocarro do Sporting e achei que toda a minha vida, até àquele momento, tinha de certo modo sido uma ficção. Seja como for, é esse o meu presente de Natal: uma família, um monte de livros à volta e cada vez mais pessoas que não precisam de sobrenome.