Nem todos os brinquedos são nossos amigos

Uma roda de um carrinho que se solta, um olho de uma boneca que não está bem preso, uma pilha ao alcance dos mais pequenos. Engasgamentos, asfixias, intoxicações. Há perigos escondidos até nos brinquedos mais inocentes, a que os adultos devem estar atentos, para que os risos não se transformem em lágrimas.

Peças pequenas que se podem soltar e, se engolidas, provocar engasgamento. Arestas que cortam. Fios compridos que as crianças podem meter à volta do pescoço e levar a estrangulamento. Bolas que dilatam com líquidos e que, se colocadas na boca, causam asfixia. Pilhas, ímanes e peças magnéticas que podem provocar lesões internas se engolidas. Há brinquedos e brinquedos, e nem todos são seguros.

“Era comum nos anos de 1990 e início do século encontrarem-se brinquedos dos quais se podiam soltar peças pequenas que podiam provocar asfixia ou engasgamento, brinquedos com arestas, produtos feitos com materiais inflamáveis. Depois identificaram-se riscos de químicos nos materiais, alguns dos quais usados para tornar a borracha dos bonecos mais mole. Hoje, as pilhas, sobretudo as pequenas, são uma das preocupações, ainda que a lei seja clara e indique que a zona onde estão as pilhas deve estar isolada”, recorda Graça Cabral, responsável pela comunicação da associação de defesa do consumidor DECO.

Mas há outros riscos identificados ao longo dos tempos. Há anos, conta Graça Cabral, uma boneca robotizada que fazia perguntas e registava respostas mereceu preocupação da federação europeia que representa os consumidores porque, ao gravar as respostas, “podia estar a guardar dados pessoais” sem autorização.

Quando se olha para o que encontra nas prateleiras das lojas, é preciso perceber que há “artigos que parecem brinquedos mas não são” e que, por isso, não estão sujeitos às regras específicas de segurança desenvolvidas especificamente para os brinquedos. É o caso de “decorações de árvores de natal, cosméticos, joias e adereços para as bonecas”, exemplifica a responsável da DECO.

Nos últimos anos, a malha da regulamentação e fiscalização tem apertado, mas continua a haver perigos que se escondem por detrás até dos brinquedos que parecem mais inocentes. Segundo Sandra Nascimento, diretora técnica da APSI, a Associação para a Promoção da Segurança Infantil, tem havido uma evolução grande neste domínio das normas e legislação, a nível nacional e europeu. São “bastante exigentes e exaustivas”, cobrindo requisitos que vão desde o design e dimensões a substâncias tóxicas. E prevê-se que continuem a ser alargadas. No início do ano, os eurodeputados apoiaram a intenção de melhorar as regras da União Europeia sobre segurança de brinquedos, no sentido de responder a desafios como os brinquedos digitais e compras online. Entre outras coisas, defende-se que os brinquedos que utilizam inteligência artificial devem cumprir o novo Regulamento da Inteligência Artificial e obedecer às normas de segurança, proteção de dados pessoais e privacidade desde a conceção.

Cuidado com contrafação

Mas o mercado “nem sempre é fácil de fiscalizar, porque existem muitos brinquedos novos a surgir e contrafação”, diz Sandra Nascimento. Os brinquedos, aliás, estão entre os produtos que são mais vezes notificados no Safetygate, um sistema online de alerta rápido europeu de produtos não alimentares considerados perigosos.

Também os relatórios do Instituto da Propriedade Intelectual da União Europeia (EUIPO) apontam que os brinquedos são dos produtos mais contrafeitos. Em Portugal, só nos primeiros quatro meses do ano, a ASAE – Autoridade da Segurança Alimentar e Económica realizou diversas ações de fiscalização, tendo apreendido 682 brinquedos inseguros e de “potencial risco” um pouco por todo o país. Os artigos em causa violavam as regras e condições de aposição da marcação CE e não tinham indicação do nome, designação comercial ou marca registada por parte dos importadores. Entre as principais infrações detetadas, destacaram-se a falta de indicação, no produto ou na respetiva embalagem, da identidade e do endereço do produtor, bem como do responsável pela colocação do produto no mercado e respetivas instruções de uso.

Certo é que, no momento da compra, as famílias devem estar atentas e olhar para os rótulos. Estes devem ter indicações com as limitações de idade, as regras de uso devem estar na língua do país, os contactos do fabricante têm de estar claros. A existência de marcação CE, que comprova que os produtos respeitam os requisitos essenciais em matéria de segurança e proteção da saúde, é outro aspeto ao qual se deve prestar atenção. Esta marca, defende a DECO, “deveria ser colocada por uma entidade independente” e não pelo fabricante ou distribuído, para garantir que estão, efetivamente, conforme as regras.

Se houver problemas, deve-se contactar as autoridades, que podem avaliar queixas e dirimir conflitos ou lançar alertas. As famílias devem ser “inspetores” e, se desconfiarem de produtos que não são seguros, alertar as autoridades, diz Sandra Nascimento. Também devem estar vigilantes, porque, para uma criança, tudo pode ser um brinquedo, e os outros produtos não estão sujeitos às mesmas normas de segurança porque têm outras finalidades.

Há, ainda, cuidados a ter no correto manuseamento dos brinquedos. Os pais devem estar atentos a brinquedos que têm regras especificas de utilização, como acontece com os de cariz científico, que podem requerer o uso de luvas ou óculos; ou com baloiços e trampolins, que devem estar bem fixos, por exemplo. As famílias com filhos de diferentes idades devem ter cuidados redobrados, já que os mais pequenos podem ter acesso às peças pequeninas dos brinquedos dos irmãos dos mais velhos.

Presença genuína

O pediatra Hugo Rodrigues, criador do site Pediatria para Todos, considera que “não devemos retirar todos os riscos da vida da criança, mas devemos estar atentos àqueles que comportam perigo”. Quando se compram brinquedos, os adultos devem estar atentos e, se não comportarem riscos significativos, devem deixar as crianças “explorar”.

Não podemos ter um “risco zero”, por isso, os pais devem “supervisionar muito e intervir pouco”, refere Hugo Rodrigues. Ou seja, “criar condições para que as crianças explorem, vão conhecendo o risco”. A fronteira nem sempre é clara e depende de cada criança, da sua idade, grau de desenvolvimento e outros fatores.

O ideal, diz o pediatra, é que os momentos de brincadeira das crianças, sobretudo se forem pequenas, envolvam os adultos. “Devem ser as crianças a comandar, mas os momentos de brincadeira devem envolver a presença genuína dos adultos, uma presença em que estão a participar na brincadeira, o que já permite que haja alguma supervisão”, adianta.

Para os mais pequenos, qualquer objeto pode ser visto como um brinquedo e nem sempre se deve limitar o acesso, mas é preciso confirmar primeiro se estes objetos são inofensivos ou não. As crianças pequenas podem querer brincar com caixas, colheres de pau e outros utensílios que não parecem constituir problema, “mas os pais devem, por antecipação, tentar prevenir e ver se os objetos a que as crianças têm acesso comportam algum risco significativo ou não. Por vezes, pode ser interessante, até para brincar ao faz de conta, para lhes dar funções imaginárias”, mas têm de ser objetos que “não comportem grande risco”, adianta o pediatra. Não é o caso dos sacos plásticos, fios, eletrónicos como comandos de televisão e telemóveis, por exemplo, que, “para além de não serem interessantes do ponto de vista do desenvolvimento, vão comportar riscos”, pelo que não é aconselhável que fiquem ao alcance dos mais pequenos.

Os dispositivos eletrónicos, em particular, devem merecer uma análise cuidada pelo seu impacto a outros níveis. Os bebés e as crianças pequenas são “seres muito sensoriais”, portanto, vão explorar e conhecer o meio ambiente através dos cinco sentidos, por isso, é “bom que os estímulos a que estão sujeitos sejam o mais diversificado possível”. Os dispositivos eletrónicos e ecrãs em geral, explica Hugo Rodrigues, “são muito atrativos mas estimulam áreas pouco diversificadas do cérebro – por muitos conteúdos diferentes que um telemóvel tenha, o estimulo para o cérebro é o dispositivo”. O que faz sentido é entregar aos mais pequenos brinquedos que estimulem o máximo de sentidos, para que “o seu conhecimento e desenvolvimento sejam cada vez maiores”.

Agir depressa

Ao pediatra não têm chegado muitos casos de lesões provocadas por brinquedos, até porque as pessoas, hoje em dia, estão “mais alerta para os riscos e vão atuando de forma preventiva”. Mas em caso de acidente, é preciso agir.

Há situações que comportam riscos mais significativos e exigem uma observação médica urgente, “nomeadamente se a criança engolir objetos pontiagudos, de vidro, pilhas, ímanes, com potencial de lesão de órgãos grande”. Se forem “outros objetos, considerados pequenos para a dimensão da criança, que não tenham arestas e não sejam de um material que provoque danos e a criança não ficar com falta de ar, tosse ou outras queixas, à partida não haverá tanta urgência. Ela, em princípio, terá capacidade de eliminar”.

É preciso, portanto, ter em conta a dimensão, formato e material dos objetos e as queixas e sintomas que as crianças evidenciarem. “Se a criança tiver falta de ar ou tosse irritativa, pode querer dizer que o objeto, em vez de entrar para o estômago, foi para os pulmões. E, aí, tem de ser vista. Se tiver outras queixas, como dores ou vómitos, também tem de se ver, porque pode haver alguma lesão”. No caso específico de houver intoxicação com algum produto, deve-se ligar para o CIAV, o centro de informação antivenenos do INEM (800 250 250) e seguir as recomendações.

Nesta altura em que se aproxima o Natal, é preciso assegurar que os brinquedos que chegam às mãos dos mais pequenos são seguros e adequados. Mas também é preciso ver para além disso, apontam os especialistas. Gestos como reparar os que estão estragados e doar os que já não se usam, podem ser, no entender de Graça Cabral, lições de “solidariedade e sustentabilidade” importantes. Outro ensinamento a reter, mas agora pelos pais, é perceber que o “tempo e a atenção genuína são sempre muito mais importantes que qualquer brinquedo”, finaliza o pediatra Hugo Rodrigues.