Catarina nasceu há duas semanas numa rotunda em Benavente. Maria Inês veio ao mundo há sete anos numa reta em Freixo de Espada à Cinta, a mais de 150 quilómetros da maternidade de Bragança. Zita saiu da barriga da mãe na estrada mais longa do país, na EN2, em Aljustrel. Erica nasceu a dois passos do quartel dos Bombeiros de Sintra. São histórias felizes, apesar dos medos e inseguranças, do risco e da responsabilidade. E quando correr mal, de quem será a responsabilidade? A exceção poderá tornar-se a regra?
Domingo, 11 de agosto de 2024, eram sete da manhã e o telefone tocou nos Bombeiros de Benavente. Uma jovem de 19 anos estava em trabalho de parto desde as cinco da madrugada. Os bombeiros João Costa e Mário Gil saíram imediatamente, 20 minutos depois, estavam em casa da grávida, já lhe tinham rebentado as águas, as contrações eram de minuto a minuto. “Ligámos para o CODU, o 112, passámos os dados, pedimos ajuda diferenciada”, conta João Costa. Não havia esse apoio, não havia VMER, viatura de emergência médica.
As urgências mais próximas, dos hospitais de Vila Franca de Xira e Beatriz Ângelo, em Loures, estavam fechadas. O Hospital de Santarém sobrelotado. Tinham de ir para o Hospital de Abrantes, a 155 quilómetros, previsivelmente duas horas de viagem naquelas circunstâncias. “Começámos a fazer contas, parar várias vezes no caminho, demoraríamos quase três horas.” Entraram na A13, Mário Gil ao volante, João Costa ao lado da jovem que desmaiou momentaneamente. Mais uma chamada para o CODU (Centro de Orientação de Doentes Urgentes) e mudança de planos. Pedido de meios aos Bombeiros de Vila Franca de Xira, saída da A13, paragem na rotunda da A10, em Benavente. Assim que a ambulância parou, João Costa percebeu que o parto iria acontecer. “Depois de uma pequena força, a Catarina nasceu saudável e a chorar”, recorda João Costa que cortou o cordão umbilical. Pouco depois, chegou o socorro pedido. É um dos casos mais recentes de um parto numa viatura dos bombeiros, a caminho do hospital.
Cristina Reis sabe o que é dar à luz numa ambulância, aconteceu-lhe há cinco anos. Algumas contrações na manhã de 9 de junho, véspera de feriado, aquela sensação de que é melhor preparar-se, decidiu pegar no carro e ir até ao posto de combustível para que o seu pai a levasse ao hospital – o marido ficaria em casa com os outros dois filhos. O tempo correu demasiado depressa e Cristina já não saiu das bombas de gasolina. Os Bombeiros de Aljustrel receberam a chamada às 13.04 horas com indicação de uma mulher em trabalho de parto.
Zita nascia 21 minutos depois, na ambulância, na EN2. “As contrações começaram a ser tão rápidas que não houve tempo para pensar. Encostei a ambulância e foi uma questão de segundos”, lembra o bombeiro João Lemos que ia ao volante. Luísa Lala era a socorrista, Rodrigo Rosado o estagiário.
Cristina conhecia-os, sentiu-se segura. A filha via a luz do dia numa viatura dos bombeiros. “É uma experiência única”, garante Cristina Reis. Mãe e filha foram transportadas para o Hospital de Beja, a cerca de 35 minutos, que tinha avisado que o parto teria de ser feito no Hospital de Évora, porque o serviço não estava a funcionar, o que significaria uma viagem mais longa, uma hora e 45 minutos. Zita contornou o que estava programado.
João Lemos é bombeiro desde 2002, Zita não foi o primeiro parto que assistiu. Um nascimento é sempre um nascimento. “É um misto de sensações e de emoções. Por um lado, a preocupação do que pode acontecer. Por outro, uma sensação de alegria, de trazer uma nova vida ao mundo, o que é muito gratificante”, confessa. A ligação mantém-se, Zita sabe quem a ajudou a nascer. “Nestes meios pequenos, onde nos conhecemos e temos contacto, ficamos com ligações.” O último parto dos Bombeiros de Aljustrel foi em maio de 2023. Este ano, ainda não houve nenhuma ocorrência desta natureza. O mesmo não podem dizer os Bombeiros de Portimão, que tiveram nas mãos um dos partos mais recentes numa ambulância. Na madrugada da última segunda-feira, uma grávida de 20 anos deu à luz na Via do Infante, viatura encostada na berma da A22, a caminho de Faro. A maternidade de Portimão estava fechada há quatro dias.
Dois partos numa ambulância não é um acontecimento comum. Os Bombeiros de Freixo de Espada à Cinta têm pelo menos três situações assim. Lénia Silva é um desses casos. Mãe de Erica, de 22 anos, Maria Inês de sete e Matias de quatro. Os dois mais novos nasceram em ambulâncias dos Bombeiros de Freixo, na vila raiana no Interior Norte do país. Dois partos em viaturas estacionadas na berma da estrada num intervalo de três anos. Duas viagens interrompidas a caminho do Hospital de Bragança, a mais de 150 quilómetros. Teve de ser, não havia outra maneira.
“Nunca frequentei uma sala de partos. Pela minha experiência, em ambulâncias, não me faltou nada, sabia que estava bem acompanhada. Se calhar, faltou a segurança de saber onde estava, nunca sabemos o que pode acontecer. Num hospital, uma pessoa sente-se mais segura”, diz Lénia Silva, lembrando que a primeira filha também quase nascia numa ambulância. Estava no centro de saúde, prestes a entrar numa viatura dos bombeiros para ter o parto em Bragança, a filha deu sinal de querer sair, os médicos levaram-na novamente para o centro de saúde. E Erica nasceu.
Maria Inês, a segunda filha, nasceu na reta de Fornos, a 16 quilómetros de Freixo, numa ambulância, três dias antes do que era suposto. Na véspera, tinha sido a festa de Santo António, Lénia e Erica compraram umas bifanas, foram para casa, ligaram a televisão e os incêndios de Pedrógão estavam em todo o lado nessa madrugada de 18 de junho de 2017. A tragédia mexeu consigo, ficou nervosa, chorava, não conseguiu dormir. Às oito da manhã, Maria Inês não sossegava na barriga da mãe. “Sentia-me um bocado esquisita, às 11 fui ao centro de saúde, já estava um pouco desorientada quando entrei para a ambulância.” Antes da uma da tarde, nascia a segunda filha com 2,7 quilos numa viatura dos bombeiros. A 10 de julho de 2020, nasceu Matias, também numa ambulância, cinco dias antes do tempo. “O terceiro parto foi uma coisa mais soft, chamei o INEM, que veio à porta de casa.” Mais uma vez, Lénia Silva não chegou à maternidade de Bragança.
“Com o coração nas mãos, à procura do hospital mais perto”
O segundo parto de Lénia Silva foi o segundo que Gualter Castro, bombeiro desde 2002, socorrista desde 2007, assistiu numa ambulância. O primeiro foi o de Ana Margarida, em março de 2008, jovem mãe de 22 anos, a primeira a dar à luz numa viatura da corporação de Freixo de Espada à Cinta, após o encerramento da maternidade de Mirandela, no tempo do Governo de José Sócrates.
Os procedimentos com Lénia foram os mesmos de sempre, passar os dados ao CODU, seguir caminho. Só que ela estava em trabalho de parto, uma viatura saiu de Mogadouro com um técnico de emergência hospitalar e um enfermeiro ao encontro da ambulância. “As contrações eram de dois em dois minutos, imobilizámos a ambulância, preparámo-nos para o parto, o enfermeiro disse que podia nascer a qualquer momento”, recorda. Assim foi. E correu bem.
“É tudo muito bonito quando as coisas correm bem. Quando corre mal, o que podemos fazer? É muito melhor um hospital, uma maternidade. Numa ambulância, temos de reposicionar a grávida, ter espaço para nos movimentar”, detalha Gualter Castro. Para Bragança, são cerca de 150 quilómetros, para Vila Real um pouco mais. “Contrações de dois em dois minutos em repouso, numa sala de partos, é uma coisa. Contrações de dois em dois minutos numa ambulância é outra, vai acelerar o parto.” Gualter desabafa: “Temos a batata quente nas mãos. Estamos longe de tudo, o pouco que temos ainda nos é retirado, concentraram tudo em Bragança. E vão centralizar cada vez mais”.
A Liga dos Bombeiros Portugueses (LBP) não tem números sobre partos em ambulâncias. “Não temos porque não era normal que isso acontecesse”, explica António Nunes, presidente da LBP. “Temos uma ideia de que no mês de julho e agora, em agosto, terão sido 13 a 15 partos, à volta disso.” O que não era habitual tornou-se frequente. A LBP tem lembrado que os protocolos celebrados preveem a perspetiva de hospital de proximidade, mas as distâncias aumentam, e a atual situação desregula o normal funcionamento de um corpo de bombeiros.
A LBP já pediu uma reunião ao Governo para analisar o impacto do fecho das urgências nas corporações. O Ministério da Saúde não respondeu, ainda não avançou com data. “Pedimos uma reunião para nos sentarmos à mesa, não empurrem para cima dos bombeiros uma dificuldade que não é nossa”, assinala. “Nitidamente, agora, somos o fim da linha, a ambulância serve de sala de partos, e parece que há uma vontade de um certo acomodamento a uma situação. Até ao momento em que um parto corra mal numa ambulância, aí quero saber de quem é a responsabilidade”, avisa.
O que está a acontecer não é novo, aconteceu no ano passado, agrava-se no verão, tempo de férias, menos profissionais ao serviço nos hospitais, mais urgências fechadas. No ano passado, a anterior direção executiva mobilizou profissionais do norte para as urgências do sul. “Este ano, não houve tanto essa iniciativa”, repara Diogo Ayres de Campos, presidente da Federação das Sociedades Portuguesas de Obstetrícia e Ginecologia, ex-diretor do serviço de Obstetrícia do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, que tem vindo a dizer que é preciso ouvir as equipas, quem está no terreno, profissionais que sabem o que acontece, que conhecem o sistema. “Uma conversa sincera com os sindicatos e os médicos para o que é importante”, defende. É necessário, em sua opinião, procurar uma estratégia convincente, até porque o que se passa, não é admissível. “Encerrar maternidades, envergonha-nos a nível internacional, não é compatível com um país europeu.”
O atual contexto não tem sido fácil. “Com esta situação, não se torna fácil para nós, bombeiros, andamos mais com o coração nas mãos, sempre à procura do hospital mais perto”, salienta João Costa, de Benavente, bombeiro desde 2003, profissional desde 2007, aos cinco anos era a mascote da fanfarra da corporação. Já fez três partos, o último de Catarina, um minuto depois das oito da manhã do dia 11 de agosto de 2024. “Não é fácil explicar a uma jovem que lhe vou fazer o parto numa ambulância.” O que, nota, não é o melhor dos cenários, as condições não são ideais, por muito higienizada que a viatura esteja, há sempre o risco de contaminação. “Espero que toda esta situação se resolva rapidamente, isto não está para brincadeiras, a saúde está a ficar mais complicada, e já estamos habituados à esmola ser pequena.”
Catarina e a mãe foram levadas para o Hospital de Vila Franca de Xira, já não era preciso uma sala de partos, apenas um quarto. Nessa unidade hospitalar, nos primeiros cinco dias de agosto, foram feitos 38 partos, o número mais elevado, em períodos homólogos, nos últimos cinco anos.
“Tinha de fazer força, a minha filha ia nascer ali”
Naquela noite, pelas 23 horas, Bruna Vicente sentiu contrações, estava em casa, pressentiu que não daria tempo para chegar ao hospital naquele estado, a hipótese era recorrer aos Bombeiros de Sintra, ali perto, a 800 metros. Foi tudo tão célere, as águas rebentaram logo que se deitou na maca da ambulância, a viatura saiu e parou logo na EN247. Era 2 de dezembro de 2013, quase dia 3. Erica nascia com 2,450 quilos em frente ao quartel dos bombeiros.
“Foi tudo muito rápido, ainda tentaram chamar uma viatura médica que não estava disponível”, lembra Bruna Vicente. A viagem até ao Hospital de Cascais não seria longa, 15 minutos. Marta Pereira e Mara Vicente, bombeiras de serviço, fizeram o parto, chamaram o pai para cortar o cordão umbilical.
Foi o segundo parto de Bruna Vicente que, quando se viu naquelas circunstâncias, numa ambulância transformada em sala de partos, percebeu o que tinha de fazer com algum medo à mistura. “Tinha de fazer força, não podia ficar a meio, a minha filha ia mesmo nascer ali”, recorda. “Tive algum receio, as condições não são as melhores, não tinha conhecimento da formação das bombeiras.” Soube depois que Mara Vicente era enfermeira. “Felizmente, correu tudo bem. Mas é um risco e uma grande responsabilidade.”
Um ano depois deste nascimento, Bruna Vicente tornou-se bombeira voluntária da corporação de Sintra por cinco anos, até já não lhe ser possível conciliar com a atividade profissional. Esteve quase, mas nunca assistiu a um parto.
A crise nas urgências hospitalares, fala-se num aumento de 40% de serviços encerrados em relação ao ano passado, tem ocupado a agenda noticiosa nacional. Todos os dias, há urgências fechadas, chegam a ser aos quatro serviços de obstetrícia e ginecologia encerrados. Em Lei ria, o bloco de partos esteve encerrado 17 dias consecutivos, por não haver médicos para garantir as escalas. Nesse tempo, a Unidade Local de Saúde de Coimbra realizou 75 partos a grávidas da região de Leiria.
A 12 de agosto, dia em que cinco urgências de obstetrícia e ginecologia estiveram encerradas, a Maternidade Alfredo da Costa (MAC), em Lisboa, realizou 25 partos, o número mais elevado desde 2013. Uma semana depois, a ministra da Saúde, Ana Paula Martins, revelava que, naquele momento, estavam apenas 40% dos obstetras do SNS ao serviço, menos de metade, admitindo que nada pode ficar como está, que é preciso tomar medidas, reorganizar a obstetrícia, que a solução não passará apenas por encerramentos ou concentrações. Pouco depois, há quatro dias, quarta-feira passada, houve uma baixa de peso que soou a alerta. O coordenador-geral do serviço de Ginecologia e Obstetrícia da MAC apresentou a demissão. Carlos Marques terá justificado a decisão com a elevada sobrecarga de trabalho no serviço que nunca encerrou. Sai da chefia, mantém-se como médico. Nesse dia, a ministra, que falava do plano de inverno para o SNS, não comentou essa saída.
O número de especialistas de obstetrícia e ginecologia no SNS tem vindo a diminuir, são menos de 800 neste momento, há uns anos eram cerca de 850, uma situação que é mais flagrante na região de Lisboa e Vale do Tejo. A falta de recursos é um problema, mas há outros, segundo Diogo Ayres de Campos, como condições salariais e ofertas noutros destinos. “Ganha-se mal na medicina pública em Portugal e as equipas estão bastante reduzidas”, refere. E não só. “Na região de Lisboa, a maioria dos partos são na medicina privada. De facto, há alguma assimetria no país em relação à ‘competição’ da medicina privada”, constata. E se a confiança dos cidadãos na saúde pública falha, o privado ganha com isso.
O que fazer? António Nunes, presidente da LBP, responde que não conhece o estado da arte da saúde, desconhece razões e motivos do outro lado, considera que a tutela, os médicos, os enfermeiros, têm de conversar. Há, porém, coisas que não são admissíveis no século XXI, em seu entender. “Não faz sentido pedir a uma corporação de bombeiros que ande 80, 100, 200 quilómetros com uma grávida. Não faz sentido que um corpo de bombeiros fique meia hora à porta de casa de uma grávida a aguardar que digam qual a maternidade para onde deve ir.” Não percebe por que razão não há uma base de dados comum, em tempo real, com as vagas das maternidades, por exemplo. “Para situações que são de crise, temos de tomar medidas de combate e mitigação de crise”, sustenta.
Organização e recursos humanos, a solução passa por estes dois níveis, para Diogo Ayres de Campos, que lembra que países, como Inglaterra, França, e alguns nórdicos, optaram por ter uma pré-triagem telefónica nas urgências de obstetrícia e ginecologia, com especialistas da área, de forma a rentabilizar tempo, meios, recursos. “Só se dirige à urgência quem tem mesmo de ser vista naquele dia, reduz-se o número de atendimentos. Tem de ser por aí.” Não bastaria formar um milhão de médicos todos os anos, se depois não se consegue retê-los no SNS, realça. Esse é outro assunto que não é de agora.
Lénia Silva, mãe de três filhos, dois nascidos em ambulâncias, lamenta o atual estado da saúde e o panorama ao pé da sua porta, em Freixo de Espada à Cinta. “Aqui está uma miséria, não temos médico de família há muito tempo, para termos uma consulta aberta é quase preciso meter um requerimento para sermos atendidos”, sublinha.
Enquanto isso, os bombeiros fazem o que podem, desdobram-se em serviços, sempre com o kit de parto nas ambulâncias, não vá a maternidade mais próxima ficar a mais de 100 quilómetros de estrada. Sempre a apagar fogos. Sempre com o coração nas mãos.