Valter Hugo Mãe

Nas pedras negras


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

A ilha do Pico é chamada de cinzenta mas a sua pedra é negra. Por toda a parte, o mais impressionante é o modo como o mar lava o irregular das rochas que se espinham pela eternidade, sem mansidão, apenas mais e mais poros na criação de gumes para ferir. A ilha porosa flutua sua imensa montanha que detém as nuvens por anéis gigantes de bruma. A ilha do Pico tem um chão nocturno, uma espécie de noite onde os dias batem sem poder vencer uma permanente escuridão.

Ainda é o lugar de uma monumentalidade natural, mais porque a grande construção humana é, por definição, uma certa ruína, um casario destelhado e rudimentar, as moradias fascinantes das vinhas cuidadíssimas.

Domesticam-se as vinhas com os muros e seus labirintos graciosos e sempre negros. Espiam as folhas verdes sobre as pedras a espanar o vento com temor. A ilha toda sonha com o vinho e sabe que pode arder porque a sua identidade é toda de fogo. A ilha é a mais contundente memória do fogo. Escura na maior luz, o que tem de apagado tem de cicatriz do incêndio primordial.

Pisamos o Pico como quem caminha no rasto sempre deixado pelo fogo. E fazemos o movimento como novas chamas de carne e sonhos. Nada escapa ao sonho, também o assombro, o tremendo de imaginar como foi e como haverá de ser de novo o gesto do vulcão.

É uma ilha como um mundo ameaçando acabar. Ainda que em toda a parte tudo se deite a morrer, no Pico há uma promessa contundente de fim. Uma quase ansiedade por ver o dragão acordado. Quem visita, não pode deixar de suspeitar. Olha a altura da montanha, teme qualquer boca que abra. Espera que fogueie num vozeirão que se ouça daqui até à casa de Deus. Quem por aqui vem sente que a realidade é toda manifesto do ínfimo e, afinal, o tamanho da imaginação é o verdadeiro tamanho da vida.

Não creio que se escolha viver aqui para se ser feliz. Creio que algo maior o justifica. Não é pela felicidade, é pelo conhecimento. Pela impressão de profundidade e sabedoria que parece disponibilizar-se aos que se educam para a espera, para a maturação, para o segredo que se descobre lentamente, debaixo do longo, intenso, mistério.

Aqui, a felicidade é dos que não repararam que, em qualquer direcção, o sublime oferece o divino. Até sofrer se faz perfeito.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)