Em entrevista à “Notícias Magazine”, David Macklin, médico canadiano que se tem debruçado sobre a doença, frisa o papel primordial da biologia no excesso de peso, alerta para a urgência de pôr fim aos tabus e dá boas notícias a todos os que se debatem com o problema.
Quem nunca ouviu alguém dizer que fulano é obeso porque quer, porque não tem cuidado, porque não tem força de vontade, porque não tem autoestima para se cuidar, porque é demasiado fraco para fazer uma dieta? No limite, quem nunca o disse? A crença está de tal forma inculcada numa parte significativa da população que ela contagia mesmo quem diariamente se debate com o excesso de peso, numa luta hercúlea e tantas vezes frustrante. “Muitas destas pessoas têm a ideia interiorizada de que a culpa é delas, que não estão a tentar o suficiente, que não são fortes o suficiente, que são um fracasso”, alerta David Macklin, médico canadiano que é uma referência mundial no combate à obesidade. O que por si só vai ser mais um obstáculo na luta contra o excesso de peso. O especialista, que é diretor médico do Programa de Controlo de Peso no Hospital Mount Sinai de Toronto (Canadá) e membro do Comité Científico de Obesidade do país, avança com um número aterrador: 81% das pessoas com obesidade ou pré-obesidade considera que a perda de peso “é da sua inteira responsabilidade”. O que necessariamente adia a procura de ajuda. Mesmo que hoje tenhamos à disposição opções médicas válidas e eficazes.
Antes, vale a pena aprofundar a questão biológica que subjaz à obesidade. Ela será a melhor forma de desconstruir de vez um tabu que persiste. A premissa enunciada por Macklin é fácil de entender: o cérebro defende-se contra a perda de peso por estar a seguir um “mapa antigo”. “Os nossos antepassados não perdiam peso para ficarem elegantes para um casamento ou para fazerem boa figura no verão. Na altura, quando perdiam peso, isso devia-se a doença ou a uma interrupção na disponibilidade de alimentos. De forma simplista, defender-se contra a perda de peso era defender-se contra a morte.” Além de que o nosso cérebro foi construído de forma a motivar-nos para “trabalhar no duro para conseguir comida”. “Portanto, tem inerente um forte sistema de motivação. O problema é que hoje ter comida à disposição já não dá trabalho nenhum.”
O resultado é particularmente ingrato para quem tem problemas de peso. “É uma junção injusta entre um cérebro construído para nos motivar a obter comida e um ambiente alimentar que favorece a obesidade: comida ultraprocessada, ultradisponível e em grande quantidade entregue à nossa porta.” O resultado? Uma “epidemia de obesidade”, sublinha Macklin, que se debruça sobre o tema há mais de 20 anos. Os números corroboram em absoluto a tese do médico canadiano, um dos responsáveis pela definição das “Canadian Clinical Practice Guidelines” (as diretrizes clínicas) para o tratamento da obesidade em adultos. Segundo estatísticas da Organização Mundial de Saúde e do Fórum Económico Mundial, a prevalência da doença tem aumentado significativamente em todo o globo, com o número absoluto a superar já os mil milhões (de pessoas obesas). Nos últimos 40 anos, a prevalência da obesidade entre adultos duplicou e entre adolescentes quadruplicou. Mais: em 2022, estimava-se que quase metade da população mundial (43%) tinha excesso de peso. Com todas as consequências que daí advêm – dificuldades ao nível da inserção no mercado de trabalho, isolamento, problemas de saúde mental, sobrecarga dos serviços de saúde, etc.
Voltando à biologia, vale a pena explicar os mecanismos através dos quais o cérebro se defende da perda de peso, induzindo a recuperação dos quilos perdidos: por um lado, há um aumento do apetite, motivado pelo aumento da hormona da fome [grelina] e a redução das hormonas da saciedade; por outro, o metabolismo abranda, nalguns casos durante anos, “um obstáculo duradouro à manutenção de um peso saudável”. David Macklin, que é também professor na Faculdade de Medicina da Universidade de Toronto, enumera ainda outros fatores que dificultam a manutenção do peso após uma dieta bem-sucedida. Vão desde a desmotivação perante as oscilações de peso ao papel da fadiga, do stress ou da falta de sono, passando pela “fraca adesão a terapêuticas farmacológicas”. Uma conjugação de fatores que leva o especialista a repetir esta ideia. “A obesidade é uma doença real e não é culpa de ninguém, nem é uma falha de caráter, tão-pouco uma questão de falta de força de vontade. Ao invés, as pessoas lutam com o peso porque convivem com uma condição real e não tratada.”
Mas sim, também há boas notícias. A melhor é que já há hoje várias soluções médicas tremendamente eficazes para resolver o problema. O médico canadiano, famoso pelo “Método Macklin”, um programa global de formação para o tratamento da obesidade, aponta três níveis de tratamento distintos: a terapia comportamental, que vai trabalhar a questão das crenças instaladas – como a culpa – e a gestão das expectativas; a terapia com recurso a medicamentos (hoje muito em voga); e a cirurgia bariátrica. Sendo que nem todos os casos de obesidade implicam o recurso a estas três linhas de tratamento, admite o especialista. Macklin acrescenta uma observação curiosa: “Quando olha para esta lista, constata que nenhum dos pontos fala de alimentação saudável nem de exercício físico. E a maioria das pessoas questiona-se: ‘Mas então a dieta e o exercício físico não são uma parte do tratamento para quem vive com obesidade? E a resposta é não”. A tese arregala-nos os olhos a princípio, mas quando lhe juntamos a justificação de David Macklin, as peças encaixam. “As mudanças na alimentação e a prática de exercício vão ser um resultado do tratamento. Vou dar um exemplo mais prático: quando recorremos à medicação para tratar a asma, não tratamos a pessoa para que ela tenha menos chiadeira e tosse. Nós tratamos a pessoa, o resultado é que vai ser ela ter menos chiadeira e tosse. Da mesma forma, comer menos e mexer-se mais serão os resultados do tratamento da obesidade.”
Os resultados são animadores, garante Macklin, que, desde que se debruça sobre a obesidade, já acompanhou ou supervisionou a evolução de milhares de doentes. “Com terapia comportamental e medicação adequada, as pessoas perdem entre 15% e 20% do peso corporal, de forma sustentável”, sustenta. Quando o plano traçado inclui a cirurgia, o êxito é ainda mais pronunciado – Macklin assegura que os doentes perdem, em média, 30% a35% do peso. Razões de sobra para insistir em quebrar os tabus que ainda resistem e em vincar que há sempre uma solução médica à espreita de quem quer pôr fim a um problema crónico de excesso de peso.
Ora, partindo dessa premissa, e olhando mais para a frente, será possível, num futuro bem longínquo, sonhar com a erradicação da obesidade? O médico canadiano está otimista. “Se quiser a visão de um futuro potencial daqui a muitos anos, creio que vão existir testes genéticos, capazes de prever o risco de obesidade, numa escala de 1 a 100, logo à nascença. Assim, as crianças poderão ser acompanhadas de perto com base no resultado que for obtido. E logo no princípio da vida, se o aumento de peso começar a ser muito pronunciado, haverá uma indicação para avançar para o tratamento, de forma a que a doença nunca chegue a desenvolver-se.” Mas esses testes já existem? “Já há alguns a serem criados, ainda que mais rudimentares. Creio que dentro de cinco anos estarão disponíveis.”