
Mariana Jones recebeu mensagens de ódio nas redes sociais, foi interrompida em apresentações, apresentou queixa. Ana Rita Almeida teve de ser retirada de uma sala, foi insultada, continua a escrever. Lúcia Vicente está disponível para debater ideias diferentes das suas, desde que haja respeito. O Ergue-te, partido de extrema-direita, acusa-as de “crime hediondo contra crianças”. Três ministras já foram abordadas sobre o assunto.
Em outubro do ano passado, Mariana Jones preparava-se para entrar no circuito habitual de apresentações do seu livro “O Pedro gosta do Afonso”, história aberta, “há essa liberdade do leitor encontrar-se em qualquer espaço”, como explica. Uma semana antes da primeira, começou a receber mensagens de ódio pelas redes sociais. Ameaças e intimidações. A sessão aconteceu à porta fechada, em Braga. A 1 de junho, na Feira do Livro de Lisboa, na apresentação do livro “O avô Rui, o senhor do café”, sobre Rui Nabeiro, na sessão de autógrafos, apareceu-lhe à frente um homem ligado à associação de extrema-direita Habeas Corpus, filmou-a a um palmo da cara, chamou-lhe de “promotora da homossexualidade infantil e pedofilia”. A editora D. Quixote colocou-se entre os dois, o homem foi levado até à porta pelos seguranças. O vídeo foi amplamente partilhado. Não dormiu nessa noite, não fazia ideia das proporções do ódio, sentiu-as na pele, apresentou queixa na PSP.
Três semanas depois, na Fnac do Norteshopping, em Matosinhos, foi interrompida por elementos da mesma associação e do partido de extrema-direita “Ergue-te”, foi retirada da sala por seguranças. Dias antes, havia avisos nos meios digitais dessas presenças. Mariana Jones tem dificuldade em colocar-se no papel de vítima, que uma queixa confere. “Não consigo demitir-me da minha responsabilidade cívica”. “Fui criada e educada sob o signo da liberdade, foi sempre um valor muito lembrado em minha casa.”
Em maio, Ana Rita Almeida publicou o seu primeiro livro “Mamã, quero ser um menino”, a história de Benedita. A 10 de junho, sessão marcada para a Feira do Livro de Lisboa, dias antes, publicações nas redes sociais. “Chamavam-me pedófila, que doutrinava as crianças à homossexualidade, e que a Habeas Corpus ia impedir qualquer sessão de acontecer”, recorda. Esperava comentários menos positivos acerca do seu livro, sobretudo de pessoas mais velhas, mas nada assim. Não recuou, policiamento garantido, nada aconteceu. No dia seguinte, soube que tinham estado debaixo do seu nariz através da partilha de fotografias, de frases que disse, chamavam-na de infantil, que tinha uma maneira estranha de andar, que se calhar era um homem. “Não foi uma crítica ao meu livro, foi um ataque pessoal.” A intimidação não parou. “Recebi ameaças de que se fosse às escolas seria agredida, que andava a perseguir as crianças, que era um cancro na sociedade, que promovia a mutilação infantil.”

Ana Rita é bombeira voluntária na corporação de Castelo Branco, recebeu todo o apoio dos dirigentes e colegas da instituição, apesar de terem sido obrigados a fechar a caixa de comentários nas redes sociais devido às ofensas, apesar da partilha da fotografia de Ana Rita fardada com a frase “bombeira gorda que é pedófila”, apesar dos telefonemas recebidos a perguntar se ela ainda trabalhava ali.
A 3 de agosto, mais uma apresentação, dias antes, mais movimentações nas redes sociais da Habeas Corpus. Ana Rita avançou. “Estou no meu direito de apresentar o livro”, pensou. A Câmara de Idanha-a-Nova garantiu a segurança, a organização da Feira Raiana também, dispositivo policial, agentes fardados, polícias à paisana, mudou-se o local à última hora, de um sítio ao ar livre para o Centro Cultural Raiano. Quase no fim, Ana Rita ia ler um poema, antes da sessão de autógrafos, pessoas levantam-se, começam a filmar, um homem da Habeas Corpus caminhou em sua direção. “Dizia ‘esta escritora tem de pagar, esta pedófila que doutrina as crianças’”. O plano de evacuação estava preparado, a escritora e o presidente da câmara foram retirados da sala. Ana Rita apresentou queixa à PSP. No último fim de semana de agosto, apresentou o livro na aldeia dos pais, não publicou nada nas redes sociais, a câmara assumiu a divulgação sem condicionamentos. Mais de 100 pessoas na apresentação, nenhuma interrupção.
Lúcia Vicente, escritora, ativista e feminista, foi interrompida em setembro do ano passado, por gente de megafone na mão. Dias depois, manifestação à porta da Fundação José Saramago, na apresentação do seu livro “No meu bairro”, sobre a diversidade e a inclusão, em linguagem neutra. Não entende o primeiro protesto e não estava preparada, apesar, como admite, do discurso ultra católico e nacionalista não ser uma novidade para si. “As pessoas devem ter liberdade para expor aquilo que pensam, se o fizerem de forma ordeira.” Não foi o que aconteceu na primeira sessão, classificou o momento como “pura censura”. “É violentíssima a forma como interrompem, com um discurso altamente agressivo, sempre a gritar.” Lúcia Vicente não se deixa intimidar. “Nada disso me vai impedir de continuar a escrever, é impossível que isso aconteça, e podem interromper as vezes que quiserem”. Antes da segunda apresentação, encontrou-se com a escritora e jornalista Maria Teresa Horta, perseguida pelo regime fascista. “Comparado com o que ela passou, é uma brincadeira de meninos.”
“Não deixar falar, não querer ouvir”
Mariana Jones, Ana Rita e Lúcia Vicente entraram na lista das terroristas LGBTQIA+ da Habeas Corpus publicada nas redes sociais com o aviso: “Enquanto terroristas LGBTQIA+ não deixarem as crianças em paz, nós não os deixaremos em paz.” Há vários nomes na lista. “Consigo conversar com pessoas que têm visões diferentes das minhas, não tenho problemas em debater, desde que exista respeito”, comenta Lúcia Vicente. “Mas não deixam falar, não existe vontade de ouvir, mas de impor o medo.” Os insultos não a perturbam, mesmo quando lhe é, como diz, “roubada a palavra e a liberdade na literatura”. “Os insultos são mais sobre as pessoas que os escrevem e a forma como vivem.”

O que aconteceu interferiu na vida das três autoras. Ana Rita pensou sair dos bombeiros, publicou menos do que queria sobre o seu livro nas redes sociais, ocultou informações que antes tinha como públicas, deixou de atender números privados, de sair sozinha. Mariana Jones reformulou as redes sociais, retirou fotografias e textos, reforçou as regras de segurança na escola das filhas pequenas, deixou de ir sozinha a eventos públicos. O livro “No meu bairro”, histórias que abordam temas como o capacitismo, racismo, bullying, religião, foi adaptado a uma peça de teatro. Lúcia Vicente conta que há menos pedidos de escolas e bibliotecas.
José Pinto Coelho, presidente do partido Ergue-te, revela que a presença nas sessões das escritoras “é uma posição firme e inequívoca” de “interromper uma atuação criminosa”. E explica os seus pontos de vista. “As crianças são os seres mais puros e mais inocentes que temos e o seu desenvolvimento físico, mental, psíquico e emocional, obedece a etapas que a natureza tem ditado ao longo de milénios.” “Não é legítimo, não é saudável, e até é criminoso, estar a impingir às crianças assuntos que não são adequados à sua idade. Do meu ponto de vista, é uma violência e configura pedofilia, é estar a erotizar crianças.”
Para Pinto Coelho, esses livros baseiam-se “numa autêntica mentira e numa engenharia social que visa mudar mentalidades e comportamentos sociais.” Interromper é uma forma, justifica, de interpelar e de tentar travar “um autêntico crime contra as crianças”. Garante que não ameaçou, nem intimidou, e fala em “vitimização” das autoras. “Quem está nas redes sociais está exposto a isto. Nunca ofendo as pessoas, ataco ferozmente ideias e agendas, não as pessoas.”
Rui Fonseca e Castro, líder da Habeas Corpus, diz apenas o seguinte: “Remeto para aquilo que divulguei publicamente, não tenho muito mais a acrescentar sobre isso. Já disse o que queria dizer.”
Em julho, cerca de 20 associações, editoras, livrarias, enviaram o comunicado “Pela liberdade de escrever, de publicar, de ler” às ministras da Administração Interna e da Justiça, com conhecimento da ministra da Cultura, com mais de 2100 assinaturas. Pedia-se medidas urgentes para impedir “repetidos ataques de elementos da Habeas Corpus e do partido de extrema-direita ‘Ergue-te’ a escritoras de livros infantojuvenis e a bibliotecários, à leitura tranquila numa biblioteca pública e apresentações de livros e debates.” No texto, fala-se em invasão e desrespeito pela privacidade das autoras, pede-se urgência nas queixas apresentadas. “Procuram criar um clima de medo e insegurança, intimidam com berros e insultos, calúnias e mentiras. (…) Muitos destes ataques e ameaças são feitos publicamente, gravados pelos próprios e, depois, orgulhosamente partilhados nas redes sociais”, lê-se.
Em agosto, novo email às mesmas ministras, recordando novos episódios. “A opção da polícia é retirar do local não quem causa os distúrbios, mas sim as autoras dos livros”, escreveu-se.
Para Pinto Coelho, presidente do Ergue-te, a liberdade é muita coisa. “A liberdade é uma palavra que serve para tudo e mais alguma coisa.” “A promoção de ideologias está sujeita a um contraditório que tem de ser musculado”, afirma. Se houver oportunidade e meios humanos, promete interromper o que acha que tem de ser interrompido.
Ana Rita tem mais um livro para publicar “Mamã, quero ser um bombeiro”. “Para educar uma criança, tem-se de educar na informação e não educar pelo medo.” Mariana Jones acaba de publicar “A tirar macacos do nariz. O cancro pediátrico de pernas para o ar”, com o apoio do serviço de oncologia pediátrica do Hospital de São João. Lúcia Vicente continuará a fazer o que tem feito. “A liberdade tem de ser um campo aberto para todas as pessoas.”