Tem um novo disco, “reEncanto”, gravado ao vivo numa igreja em Londres, que será lançado a 11 de outubro. A cantora e compositora cabo-verdiana regressa à essência do seu processo de criação e redescobre a sua voz, o seu canto. É um álbum intimista, uma viagem pelo seu trajeto, 18 canções ao som de um violão. Garante que é um fechar de ciclo. Literalmente. Ser mãe teve influência.
A conversa e o calendário colocam-na em novembro de 2023. Dois concertos no Festival de Jazz de Londres, dois dias intensos, duas noites esgotadas, a 16 e a 17. Quando entrou naquela igreja londrina, na Union Chapel, lugar de espetáculos de estilo neogótico, tetos altos, vitrais, acústica fabulosa, sentiu que algo de muito especial iria acontecer. Tudo certo, tudo no lugar, pressentiu que ia ser bem acolhida, generosamente recebida, que o seu público ia ali estar. Não se enganou. “A energia do espaço fazia-se sentir de forma muito forte”, lembra.
A magia aconteceu num lusco-fusco, sob uma abóbada imensa. Mayra Andrade na voz e Djodje Almeida, músico cabo-verdiano, no violão. Assim, simplesmente assim. Sem rede e sem artifícios. Tão somente assim. O tempo a passar devagar, quase suspenso. “reEncanto” é o resultado desse momento gravado ao vivo, um álbum intimista que navega pela sua carreira, revisita os cinco álbuns, com canções da sua autoria. A 11 de outubro, é apresentado ao Mundo.
A cantora e compositora cabo-verdiana confessa que sentiu necessidade de redescobrir a sua voz, o seu canto, nas canções que criou ao longo dos anos, há mais de 20. A maternidade explica essa vontade. Ao ser mãe, percebeu muita coisa, o que não se fala, o que não se diz, os silêncios partilhados por quem fez esse caminho. “Há uma série de nuances difíceis de ser encontradas e que só podem ser partilhadas entre quem passou e quem viveu.” De mãe para mãe. De olhar para olhar. De coração para coração. Mayra Andrade fala num momento de quase morte para um renascer. “Neste mesmo ciclo da morte e do renascimento, há um reencontrar da minha própria voz, da minha própria essência, e há um redescobrimento”, comenta. “Há canções que escrevi quando tinha 18 anos, vou fazer 40, portanto há 22 anos.” Queria encontrar respostas para algumas perguntas. “Quem sou hoje quando canto estas canções? O que é que a minha voz, com tudo o que ela viveu, com tudo o que ela acumulou, diz a mais do que aquilo que as palavras contam?” Provavelmente, muita coisa.
Essas palavras saem-lhe sobretudo em crioulo de Cabo-Verde, além de cantar em português, inglês, francês, espanhol. Não poderia ser de outra maneira. “Muito embora tenha elegido um idioma que 99.9% da população mundial não percebe, acho que as pessoas, mesmo assim, recebem-me de forma mais direta e mais autêntica quando canto no meu idioma.” “Há pessoas que não conseguem perceber o que eu digo, mas sentem-me de uma forma mais crua quando canto em crioulo”, constata. Nasceu em Cuba, sente-se cabo-verdiana. “Nós sentimos as nossas histórias, nós sentimos muito em crioulo.” É a cultura e é a identidade daquele pequeno pedaço de África.
Aos quatro anos, pediu à mãe o seu primeiro violão nesse Cabo Verde onde cresceu. Sempre foi música da cabeça aos pés, jamais uma decisão. “A minha família, quem me conhecia, sempre me viu cantar, sempre me viu procurar instrumentos e tocar.” Também quis ser atriz e bailarina, no sentido de acrescentar mais camadas à música. A música que vê como um dom e como uma missão. “É o meu modo de expressão e é o modo através do qual sinto que venho cumprir com algo aqui. Estou sempre à procura de perceber um bocadinho melhor o que é suposto eu fazer, que não seja apenas cantar bem, ou apenas ter uma carreira com discos, vender bilhetes, estar nas redes sociais.” Um dia de cada vez, sem pressas. Canção a canção. Música a música. “Para mim, o mais importante ainda estou a descobrir.”
Na adolescência, na Cidade da Praia, a sua voz começou a fazer-se notar, a ganhar projeção, a sair da ilha, a mostrar-se em outras latitudes e geografias, a afirmar-se no panorama internacional. Em crioulo, no seu crioulo. Na sua voz doce e quente, cheia de personalidade e identidade. No seu jeito multicultural que absorve o que existe à volta, nas moradas que teve e vai tendo, Lisboa, Paris, Cidade da Praia, e por aí fora.
Um disco que é abraço e colo
O novo disco, o sexto, foi um longo abraço e um colo para Mayra Andrade, fonte de energia num período em que não havia muita disponibilidade para criar coisas novas. Andava na estrada com uma filha de meses. “reEncanto foi conquistando o seu lugar, ganhando uma espécie de aura”, afirma. É o reencontro com o seu repertório, a partilha de histórias que inspiraram músicas, num ambiente despido e simples, sem a complexidade da gravação em estúdio. A voz de Mayra, o violão de Djodje, as palmas da plateia, as falas da cantora entre músicas com breves explicações, emoções à flor da pele. As canções “Afeto” e “Navega” já estão disponíveis nas plataformas de streaming habituais.
Agora há uma outra porta que se abre. “Para mim, é fechar um ciclo, não de uma forma cliché, mas literal.” O início e o encerramento de um ciclo na vida da artista. Ponto. O que se segue? O novo ciclo está pensado, programado? “Não tenho muita pressa em lançar discos, nunca tive”, responde. A arte, em seu entender, tem algo a dizer, coisas a contar, é preciso ouvi-la, saboreá-la. Ela é um canal de transmissão e o processo criativo nunca pára. “É a vida acontecer, é uma gestação constante”, indica.
No seu modo de criar, não há uma linha pré definida. A canção “Vapor di imigrason”, por exemplo, foi escrita antes do primeiro álbum “Navega”, de 2006, e só entrou no seu último disco “Manga”, de 2019. Não era a altura. “Eu sabia que a música ainda não estava pronta, ficou pronta 20 anos depois, não que estivesse 20 anos a trabalhar nela, mas 20 anos depois senti ‘ok agora é o momento daquela música’.”
Neste momento, Mayra tem algumas demos de músicas iniciadas há dois anos, esboços que ainda não terminou. “Os discos são assim, é abrir uma gaveta e ir buscar coisas antigas que precisam de ser revistas e terminadas”, diz. Quando começa a gravar ideias no telemóvel é sinal de que há álbum a caminho. Está num sound check, vem-lhe uma parte de uma melodia à cabeça, ela grava. Está na rua, e há uma música que parece que lhe sopram aos ouvidos, ela grava. “Depois, há aquele momento de pôr tudo em cima da mesa, pegar num papel, pegar na caneta, e aí começa um trabalho mais árduo, mas a inspiração já está a acontecer, o próximo disco já está a acontecer, não de forma organizada, não num discurso, porque não é isso que me interessa neste momento.”
Por enquanto, há “reEncanto” a ser lançado, um título que permite desdobrar várias palavras, canto, encanto, voltar a cantar e a encantar, cantos em cantos. “É um momento da minha carreira que eu gostava que a minha filha, por exemplo, ouvisse”, revela. A digressão que deu origem a este trabalho discográfico, com mais de 40 concertos por diversos países, Cabo Verde, Estados Unidos, Brasil, várias cidades da Europa, continua. Neste domingo, Mayra Andrade e o Djodje Almeida estão no Festival La Mercé, em Barcelona, Espanha. Dois dias depois, a 24, em Madrid no Teatro del Canal, e dia 26 no Staatstheater, em Hannover, na Alemanha.
Em 2001, com apenas 16 anos, ganhou a medalha de ouro com uma canção em crioulo cabo-verdiano nos Jogos da Francofonia, em Otava, Canadá. Nesse mesmo ano, pisava o palco do Coliseu de Lisboa para um concerto de três gerações de artistas cabo-verdianos, ela representou a mais nova. Vinte anos depois, em 2021, Mayra Andrade foi considerada uma das personalidades negras mais influentes da lusofonia pela revista Bantumen. Sabe que tem esse papel, que a sua voz ecoa pelo mundo, que ser influente é ter um propósito. “Não tenho todas as respostas, mas sei que essa talvez seja a maior missão da minha música.” Passar mensagens, mobilizar pessoas, tocar em pontos que dizem alguma coisa a quem escuta. “Há muitas formas de nos ajudarmos.” Na construção de uma sociedade melhor.
Há uma imagem que Mayra Andrade tem na cabeça. Uma impossibilidade, espera-se. “Se não houvesse música nenhuma durante 15 dias, o mundo implodia – e quando falo de música incluo sons da natureza, a música começa aí.” Dito de outra forma. “Se o mundo ficasse em silêncio total dos sons, das melodias, nós morríamos.” Literalmente.