Kura. Um fenómeno na música eletrónica

(Foto: Maria João Gala)

É um dos DJ mais populares do Mundo, além de produtor. Faz tournées pela Ásia, já atuou em festivais icónicos como o Rock in Rio Brasil ou o Tomorrowland, tem grandes nomes internacionais a tocar as suas músicas, desde David Guetta a Steve Aoki. Lançou êxitos gigantes, numa fusão entre o fado e o techno, que acumulam milhões de visualizações no YouTube e que estiveram no top do Spotify. É português, autodidata, chama-se Kura.

O nome, na verdade, é Rúben de Almeida Barbeiro, mas Kura colou-se à pele ainda ele era um miúdo, no tempo dos graffitis, quando escolheu a assinatura curta, de quatro letras apenas, que haveria de lhe batizar a carreira. Mal ele imaginava. Um brinco na orelha, o cabelo num despenteado propositado, t-shirt preta, não está prestes a entrar em palco, mas o outfit não mudaria muito se assim fosse. Está em casa, na Margem Sul, onde mora com a namorada e o cão Dobby, homenagem ao mítico elfo da saga Harry Potter, cujos filmes só viu numa maratona na pandemia. O nome até pode ser desconhecido para muitos, mas Kura é um artista feito. Está classificado entre os 100 DJ mais populares do Mundo, de acordo com o ranking da prestigiada revista DJ Mag – e integra essa lista há dez anos consecutivos. O caminho na música eletrónica já vai longo.

“Quando entrei na lista pela primeira vez nem queria acreditar. E, obviamente, nos primeiros anos, isso teve um grande peso para mim”, lembra. Até porque Kura foi autodidata, fez-se DJ e produtor por carolice. Esta história começa ainda em catraio. Nascido em Leiria, cedo se mudou para Carcavelos. Passava horas a ouvir Carl Cox, o britânico que se tornou num dos principais DJs da cena eletrónica nos anos 1980, e o acaso aconteceu quando, na adolescência, estava a trabalhar numa loja que vendia material de surf. “Sempre arranjei pequenos trabalhos, para ter algum dinheiro extra para mim, já não peço dinheiro aos meus pais desde os 13 anos. E o dono dessa loja tinha lá material onde comecei a brincar, de forma muito rudimentar.” Um dia, Kura encheu-se de coragem, pediu emprestada a mesa de mistura para a levar para casa e poder treinar. Ainda não existia o mar de vídeos que abunda hoje pela Internet para aprender, nem sequer havia YouTube quando deu os primeiros passos, foi por tentativa e erro. O atrevimento da juventude ajudou em tudo o resto. Começou a bater à porta de bares, a oferecer-se para “pôr música de graça”, a oportunidade chegou na Praia das Maçãs, um restaurante de comida africana que à noite virava bar. “Eu e um amigo começámos a tocar ali o que sabíamos, que era nada. E gostei tanto daquilo que só queria continuar.” Com o tempo, foi lendo o pouco que encontrava em fóruns de música, onde fazia perguntas a produtores, mais tarde a ver tutoriais no YouTube, “que eram muito poucos na altura”.

O plano nunca foi este, nunca se imaginou a fazer da música vida, mas foi-se apaixonando cada vez mais, começou a tocar em mais bares e discotecas. E, quando estava a estudar na Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril, viu-se forçado a escolher. “Nessa altura já era DJ residente numa discoteca, nada muito sério. Mas a minha carreira começou a dar o salto, surgiram mais oportunidades, percebi que podia viver disto e não conseguia conciliar os dois.” Deixou a hotelaria para outras núpcias, tinha 20 anos e o que veio depois é um fenómeno que nem ele sabe explicar. Ou melhor, sabe. “Comecei a produzir as minhas próprias músicas, as primeiras são muito arcaicas, claro”, conta ele a rir. De cada vez que fazia uma música, enviava-a para o email de artistas de que era fã, na esperança de que a tocassem um dia. A resposta nunca vinha, mas Kura continuava a insistir e a insistir. Até que o inesperado aconteceu. “O Roger Sanchez foi dos primeiros a passar uma música minha. Ele tinha um programa de rádio, que passava na Mix FM, uma rádio portuguesa que já não existe, e os meus amigos ouviam muito o programa dele. Um dia ele apresenta uma nova música, de um produtor português chamado Kura. Ele nem me tinha respondido ao email, foi um êxtase.”

De David Guetta a Tiësto

As portas começaram a abrir-se, Kura entrou na cena eletrónica internacional para nunca mais sair. David Guetta, Tiësto, Timmy Trumpet, Hardwell, nomes maiores da indústria, já todos tocaram músicas do português. “As primeiras vezes são um marco, mas ainda continuo a ficar orgulhoso quando alguma coisa que crio é apresentada num palco grande por artistas de renome.” Com alguns deles já fez colaborações, músicas a quatro mãos, com o holandês Hardwell, também com o norte-americano Steve Aoki. Trabalham à distância para fazer acontecer, cada um produz uma parte.

Conquistou o seu lugar, começou a subir a palcos maiores, nos Estados Unidos, no Brasil, no México, no Canadá. Já fez mais de dez tournées pela Ásia. “A primeira vez que fui à Ásia foi em 2013 e não estava nada à espera. Como é que tiveram interesse em mim? Já tinha percebido, nas redes sociais, que tinha fãs asiáticos, mas não sabia que era algo tão grande para poder ir lá atuar.” Tanto era que já correu China, Japão, Vietname, Tailândia, Filipinas, perde-lhes a conta. Atua em festivais e em clubes enormes, discotecas onde cabem quatro mil pessoas. Em outubro vai voltar ao leste, Taiwan, Japão, Malásia. No currículo ainda traz palcos como o Tomorrowland, o mítico festival que acontece em Boom, na Bélgica, onde já atuou mais do que uma vez em palcos secundários (e o público português lá presente nunca falhou no apoio). O grande sonho é atuar aí no palco principal e no do Rock in Rio Lisboa, onde se estreou este ano no palco Galp. Já em 2019 tinha passado pelo icónico Rock in Rio Brasil, por um palco dedicado à eletrónica. Não pára, tornou-se num fenómeno sem fronteiras, num sucesso inabalável.

Kura já passou por grandes festivais lá fora, desde o Rock in Rio, no Brasil, ao Tomorrowland, na Bélgica (foto em cima). E em outubro vai começar uma nova tournée na Ásia, onde tem um público fiel. Vai passar por Taiwan, Japão, Malásia (Foto: Hugo Krash Pereira)

A pandemia foi ponto de viragem, sem o público a vibrar à sua frente foi-se abaixo, quis pensar diferente, começar a produzir músicas que fundissem a eletrónica com as raízes da cultura portuguesa. Foi assim que juntou o fado ao techno, duas entidades musicais. “Foi um processo demorado, porque estamos a falar de um género que o país respeita muito, tinha de ter muito cuidado.” E desde que o fado invadiu as pistas de dança, com o êxito gigante, lançado no ano passado, que pergunta: será que toda a gente é livre para sentir saudade? “Sentir saudade”, com a jovem fadista madeirense Bia Caboz, acumula milhões de visualizações no YouTube, esteve largos meses no top do Spotify e do Shazam. “Foi uma surpresa. Podes pensar que estás perante um hit, mas isto é sempre uma roleta. A verdade é que foi das músicas mais tocadas no ano passado, foi número 1 no Shazam, foi das mais utilizadas no TikTok e no Instagram. Não só em Portugal, também na Ucrânia, Suíça, Luxemburgo, Turquia”, revela em jeito de orgulho. Logo a seguir, ganhou fôlego, lançou “O vento”, com Jessica Cipriano, ajudou até na escrita da canção que levou mais tempo a entranhar-se, mas que acabou por se tornar na música mais pedida em espetáculos.

Mariza, Ana Moura, Carminho, os sonhos voam alto, Kura não lhes põe um teto. “Sei que será mais difícil, mas gostava muito de vir a colaborar com grandes artistas como elas. Antes destas duas músicas, estou certo, seria praticamente impossível, porque os artistas têm medo que a música eletrónica seja algo muito pesado. E, de facto, tem uma característica que mais nenhum estilo tem. Posso juntar todos os estilos dentro da música eletrónica, que ela nunca deixa de ser eletrónica, de ser música de dança. É essa a beleza.”

O piano, a guitarra, o futebol

No meio da correria dos espetáculos e das horas que passa em estúdio, ainda sobra tempo para se aventurar noutras andanças. Aprendeu a tocar piano sozinho, isso ajuda-o na produção musical. Também teve meia dúzia de aulas de guitarra. É viciado em podcasts, ouve quando está a cozinhar, a comer, a tomar banho. Alguns sobre geopolítica, outros sobre musculação, treino, alimentação. Não é de admirar, vai cinco a seis vezes por semana ao ginásio, mais por saúde mental do que por saúde física. “Faz-me bem esta rotina, sinto-me bem.” Chegou a jogar futsal em pequeno, ainda gosta de jogar à bola com amigos. “Mas já não o faço há algum tempo, de cada vez que vou jogar futebol lesiono-me. Estou a ficar velho”, brinca.

Tem 36 anos, nunca fez contas ao tempo de carreira, não é bom com datas. Tem seis pessoas a trabalhar consigo, desde a fotografia ao vídeo, criação de conteúdos visuais para espetáculos, redes sociais, não deixa nada ao acaso. “É, por exemplo, o trabalho que fazemos nas redes sociais que faz com que a minha música chegue mais longe, a pessoas que nunca me viram ao vivo, com que eu seja capaz de mobilizar massas. E as novas músicas também vieram ajudar muito a trazer pessoas novas aos meus espetáculos.”Ainda tem uma produtora de eventos, a Dark Room, que organiza festas underground e que tem uma linha de roupa associada.

Foto: Maria João Gala

Sente que tem reconhecimento, mas sabe que a eletrónica nunca tem lugar nos prémios, como os Play, talvez seja o parente pobre da música em Portugal. “Nunca somos considerados, mas não penso muito sobre isso.” E, curiosamente, hoje, figurar no famoso Top 100 DJ da DJ Mag já não o faz pular de alegria. É o público que vota, o que é um sinal positivo, mas percebeu que “isso não determina o valor de um artista”. “Já houve anos em que fiquei à frente de DJ que considero ícones e percebi que isso não significa que seja melhor. É certo que, há uns anos, alguns mercados contratavam artistas pela posição que ocupavam na lista, mas agora as redes sociais são uma ferramenta muito mais poderosa. O mais importante é lançar músicas que sejam um sucesso.”

No final de junho, Kura lançou mais um single, desta vez com Nuno Ribeiro, “Eu prometo”, que caminha para uma sonoridade mais pop (também já o tinha feito com Diogo Piçarra). “Enviei uma mensagem no Instagram ao Nuno e ele alinhou logo. Fomos no dia seguinte para estúdio”, recorda. Quer continuar a seguir este caminho, a unir a eletrónica a outros géneros, mais do que músicas quer criar canções que contem uma história. Está a correr o país neste momento. Depois do verão há de embarcar para a Ásia. Enquanto houver estrada para andar, ele vai continuar. E talvez um dia esteja mesmo no palco principal do Rock in Rio Lisboa ou do Tomorrowland.