Filho de dois fundadores do PS - o ex-presidente da República, Mário Soares, e Maria de Jesus Barroso -, cresceu rodeado de pides, visitou centenas de vezes o pai na prisão, andou nas lutas estudantis contra a ditadura e esteve com Salgueiro Maia no 25 de Abril. Viveu sempre num caldeirão cultural, conheceu figuras proeminentes da nossa História, aficionado leitor, também editor. Socialista convicto, foi deputado na Assembleia da República, na Europa, presidente da Câmara de Lisboa, ministro da Cultura. Conhecido por não ter papas na língua, da fama tem o proveito. E o acidente de avião que o deixou entre a vida e a morte não lhe roubou o destemor. João Soares celebra 75 anos a 29 de agosto.
São onze da manhã, João Soares abre as portas da casa de Sintra, que herdou dos pais, a espreitar o Palácio da Pena, onde tem estado por estes dias. É aqui que vai celebrar o aniversário. Annick Burhenne, a mulher, está a preparar sopa na cozinha, vem numa corrida à entrada, queixa-se da ventania, tem sentido de humor, “é para não sentir saudades da Bélgica”. A filha mais nova, 17 anos, Lilah, que “está adoentada”, não se incomoda com as visitas, passeia-se pela casa, onde mora uma biblioteca no andar de cima, como quem está habituada ao protagonismo do pai. A esta hora, o socialista já publicou algumas fotos da paisagem no Facebook, para irritação da filha, que lhe diz que publica demasiado. Às vezes falam em francês. A conversa haveria de ser longa, tantas vezes interrompida por um telefone que nunca pára. Houve apenas uma pausa para um cabrito ao almoço, num restaurante perto, para onde nos conduziu no seu Peugeot 107 vermelho, que comprou a uma vizinha por pouco mais de três mil euros.
Passa várias temporadas nesta casa. Há aqui muitas memórias?
Muitas. Os meus pais passaram aqui grandes temporadas, foi a nossa casa de verão, de fim de semana. É muito próxima de Lisboa. A casa é dos anos 1960, tenho ideia que já passei aqui o verão de 1965. E não há aqui nada novo, tirando aquela mesa que foi a Annick que fez com as mãos dela, usando uma velha porta, tudo o resto já aqui estava.
Deixado pelos seus pais.
Sim. Aquela piscina foi feita num ano em que o meu pai foi preso, em 1967. Foi preso em outubro, passou o Natal e o Ano Novo em Caxias, depois foi libertado por três ou quatro dias, e foi preso outra vez e mandado para S. Tomé. E ele dizia com graça: então agora que fizemos uma piscina é que me vêm prender outra vez? Nessa altura ele era preso quase todos os anos. Curiosamente, nunca houve aqui uma busca da PIDE, houve muitos pides aqui à volta, mas nunca entraram. Na nossa casa no Campo Grande entraram várias vezes, o meu pai chegou a ser preso de manhã em casa, do que eu me lembro. Quando nasci, em 1949, ele já ia na terceira prisão. Foi preso 12 vezes, 13 se contarmos a deportação para S. Tomé.
Habituou-se à presença dos pides. Aprendeu a viver com isso?
Os meus pais convidavam muitas pessoas para aqui e isso inquietava os tipos. O [Salgado] Zenha também tinha uma casa aqui ao lado. Há uma história divertida que acontece a seguir ao 25 de Abril. O meu pai foi o primeiro dos grandes exilados a voltar, chegou a 28 de abril, veio de comboio, o Sud Expresso, que demorava 24 horas de Paris a Lisboa. Mas bem, no primeiro Governo, ele foi logo ministro dos Negócios Estrangeiros, o que aliás fazia todo o sentido, e um jornal perguntou à minha mãe como é que ela se sentia por ter um polícia à porta. A minha mãe deu uma resposta inteligente: “Nós sempre tivemos polícias à porta, só que antes eram pides”. Habituámo-nos àquilo. Eles eram gente má, era uma coisa muito baseada na brutalidade.
Nunca sentiu medo?
Não, o meu avô e o meu pai diziam sempre que eles só sabem o que a gente lhes diz, a regra era não lhes dizer nada. Quer o meu avô, quer o meu pai tinham sido presos bastantes vezes, até chegaram a estar juntos na mesma cela. Tenho amigos da minha geração que foram torturados, o meu próprio pai também o foi.
Ser filho de Mário Soares foi um peso ou uma sorte?
Claro que é uma sorte, uma sorte fantástica. E também foi um peso. Não me escondi, mas também não apareci. Aliás, o momento em que entrei menos vezes em Belém foi quando o meu pai foi presidente da República. E quando foi primeiro-ministro, devo ter ido uma vez à residência oficial do primeiro-ministro.
Começou por dizer que foi uma sorte…
Não me fica mal dizer, até porque ele já morreu, mas o meu pai foi o homem mais importante do Portugal do século XX. Passou por todas aquelas prisões, foi o primeiro primeiro-ministro que resulta de eleições, depois foi o primeiro presidente não militar. A poder bater-se com ele como personalidade histórica, de vários pontos de vista, só talvez o Salazar e noutro plano o [Álvaro] Cunhal, mas com a desvantagem dos dois, porque Soares esteve sempre do lado da liberdade. Essa é a diferença. Mas, atenção, Cunhal era um homem excecional, tenho uma admiração imensa pela memória dele, apertei-lhe a mão duas ou três vezes. Ele merecia um romance.
O imaginário nacional guarda uma imagem forte de Mário Soares. Mas, enquanto filho, que memórias tem dele?
Era um homem muitíssimo corajoso, completamente civilista. Foi muito importante na minha vida, e a minha mãe também.
Tanto que faz questão de dizer os três nomes: João Barroso Soares.
Faço muita questão disso. Abomino o tratamento por doutor, só em Portugal é que tratam as pessoas que têm uma licenciatura ordinária, como é o meu caso, por doutor. Troco o doutor por Barroso no meio, o nome da minha mãe é mais importante. Ela era uma mulher excecional. Os meus pais foram colegas na faculdade, conheceram-se naqueles combates no fim da guerra. Era uma mulher culta, inteligente, pedagoga, sucedeu ao meu avô na direção do Colégio Moderno, agora dirigido pela minha irmã. Ao mesmo tempo, tinha talento como atriz, foi proibida de representar pelo Estado Novo. Sou suspeito, mas era uma mulher bonita. Outra pessoa muito importante na nossa vida, na da minha irmã e na minha, foi o meu avô paterno.
João Soares, de quem herdou o nome. Fundador do Colégio Moderno, ministro das Colónias na Primeira República, viveu sempre com a família.
A minha avó morreu quando eu tinha cinco anos e costumamos dizer que o avô vivia lá em casa, mas não, nós é que vivíamos na casa do avô, no Campo Grande, na rua que tem agora o nome dele, que é o mesmo que o meu. Como fui autarca, pode haver essa confusão, mas espero que, daqui a 30 anos, quando morrer, metam um larguinho com o meu nome. O meu avô começou por ser padre. Creio que foi dos primeiros que conseguiu uma autorização do Vaticano para se despadrar, quando já era pai de um filho. Era um homem excecional. Editou um livro que compro nos alfarrabistas, muitas vezes no Porto, para oferecer, que é o Atlas Escolar de João Soares. Foi um sucesso editorial.
Cresceu num ambiente cultural. Quem é que era visita de casa?
Lembro-me de um homem que hoje é um escritor desconhecido, mas que teve um papel importantíssimo no combate à ditadura, o Manuel Mendes, autor do “Bairro”, do “Roteiro sentimental: Douro”. Ia todas as semanas lá jantar, sobretudo na fase em que o meu pai esteve deportado em S. Tomé, com o meu avô e connosco. Todos os escritores da idade do meu pai ou ligeiramente mais velhos passaram por nossa casa. Alguns deram aulas no Colégio Moderno. O Cunhal, quando saiu da primeira prisão, foi regente de estudos no colégio. Acompanhou os estudos do meu pai em Geografia. Uma vez perguntaram-lhe se ele tinha sido professor do Mário Soares e ele respondeu: “Fui. Ensinei-lhe as coordenadas geográficas e ele aprendeu aquilo muito bem, também lhe ensinei as coordenadas políticas e aí é que ele falhou completamente” (ri).
Conviveu com muitas personalidades.
Cheguei a conhecer num almoço, na praia da Foz do Arelho, onde tínhamos uma casa alugada, o Jaime Cortesão, que tinha vindo do exílio. Nesse dia, a minha mãe disse que tínhamos de ir a Peniche comprar uma lagosta para o almoço, e não havia estradas naquela altura, está a ver o que era ir das Caldas até Peniche. É uma grande figura da história portuguesa, da luta contra a ditadura, é o grande historiador dos Descobrimentos. Conheci o Aquilino Ribeiro também. A minha mãe, às vezes, levava-nos ao Chiado para ver as lojas e passávamos à frente da Sá da Costa ou da Bertrand e lá estavam as grandes figuras da intelectualidade, todas da Oposição, à porta.
O Estado Novo esteve muito presente na sua infância. Que marcas é que isso deixa?
Pode parecer surpreendente, mas o saldo é positivo do ponto de vista da formação cívica e intelectual. Quando comecei a envolver-me na vida política, uma das coisas que mais prazer me deu foi estar na Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE). Cheguei a ser presidente da Assembleia Parlamentar da OSCE. Que, se não estivesse em decadência, podia ter tido um papel importante nisto da Ucrânia. Conheci aqueles países todos. Muitas vezes, em missões de observação eleitoral, eu dizia-lhes que fomos a mais longa ditadura de Direita da Europa ocidental, sabemos o que são eleições fraudulentas. Sei o que é meter um voto na urna que não vale nada, votei pela primeira vez em 1969, as primeiras eleições de Marcello Caetano. Isto deu-me uma experiência profundamente enriquecedora, só me faltou ser preso e hoje sinto que é uma lacuna (ri). O Zenha, quando fui expulso pela terceira vez da universidade, dizia-me que já estava na altura de eu ser preso.
Mas visitou muitas vezes o seu pai na prisão.
Centenas de vezes. Costumo dizer que nasci prematuro, os meus pais casaram quando o meu pai estava na cadeia, no dia 22 de fevereiro de 1949, e eu nasci em 29 de agosto (ri). Ela já estava grávida evidentemente. Nessa altura, o meu pai estava preso no Aljube, uma cadeia horrível. O Parlatório era uma coisa sórdida, suja, nojenta. Fui lá muitas vezes. As visitas na fase em que o preso estava em interrogatórios eram uma vez por semana, um quarto de hora. O preso estava por detrás das grades, havia um espaço no meio com um pide, e depois uma segunda grade onde nós estávamos. Comecei a visitar o meu pai em miúdo e quando ele foi preso a última vez, em 1967, eu já tinha 18 anos. Claro que isto marca, mas formou-me, deu-me firmeza de caráter, algum destemor.
Foi expulso mais do que uma vez da Faculdade de Direito de Lisboa por razões políticas. As associações académicas foram uma escola de liberdade e democracia?
Uma grande escola. A maior parte da minha geração formou-se do ponto de vista democrático no movimento estudantil. Eu comecei na escola, no Colégio Moderno e no Liceu Francês. Depois fui da Associação Académica de Direito. E fui aluno do Marcello Caetano, ao lado de Marcelo Rebelo de Sousa, da Leonor Beleza, fomos todos alunos dele, que era aliás um belíssimo professor.
No 25 de Abril foi para o Largo do Carmo, contra todas as recomendações para ficar em casa. Diz ter sido o dia mais feliz da sua vida.
Estava em Paris, com o meu pai, quando foi o 16 de março, depois vim porque tinha a faculdade, a minha mãe ficou lá. Sabia-se que aquilo estava iminente, houve sinais. Um foi o 16 de março, o outro foi a saída do livro do Spínola, “Portugal e o futuro”, que foi uma espécie de certidão de óbito do regime. Uma tia nossa, às seis ou sete da manhã, telefonou para nossa casa a dizer-nos para ligarmos o rádio. Apesar de dizerem para não sairmos, eu e a minha irmã metemo-nos no carro da nossa mãe e fomos para o jornal “República”. Assisti a uma coisa fantástica, às dez ou onze da manhã, que foi a discussão sobre se se mandava o jornal à censura ou não. Era vespertino, tinha de estar impresso o mais tardar às três da tarde. Os coronéis da censura estavam em frente, era só atravessar a rua. Se não mandassem as provas da primeira página e a revolução falhasse, podiam ir presos. E eles não só decidem que não mandam, como metem na capa do dia 25 de abril de 1974 a frase “Este jornal não foi submetido à censura”. À tarde, eu e o meu primo fomos distribuir o jornal e fomos para o Largo do Carmo.
Conheceu aí Salgueiro Maia.
Foi a minha grande alegria. Tive a sorte de conhecer o Maia na tarde do 25 de Abril. Chegámos lá com um braçado de jornais, fomos cumprimentá-lo, e ele passou o megafone ao Pedro Coelho, o meu primo, para ele falar. Aquilo foi uma coisa verdadeiramente popular. Uma revolução pela liberdade e pela paz, feita por militares. Eles estavam com 30 anos e já iam para a terceira comissão em combate nas colónias. Eu só fui chamado depois do 25 de Abril, se não tem havido 25 de Abril estava tramado.
É um país diferente, 50 anos depois.
A diferença é do dia para a noite. As pessoas já não se lembram que antes disto éramos o país da Europa com a maior taxa de analfabetismo, com a pior taxa de mortalidade infantil. Em Leiria, onde o meu avô tinha uma casa, não havia luz elétrica, os miúdos do lado tinham fome, não tinham sapatos. Vi isso, não me contaram.
Tornou-se militante do PS logo a seguir ao 25 de Abril, embora a maioria da sua geração fosse comunista.
Éramos uma minoria, mas ser socialista é uma coisa que devo muito ao meu pai e aos amigos dele. Tivemos sempre uma belíssima biblioteca em casa, os meus pais eram apaixonados por livros, quando cheguei a adulto já tinha lido George Orwell, “A quinta dos animais”, “O triunfo dos porcos”, a biografia do Trótski, assassinado nos anos 1940. Nunca tive nenhuma simpatia com o comunismo, embora me desse bem com as várias famílias comunistas.
Foi deputado, autarca, foi até candidato à liderança do partido, que perdeu para José Sócrates.
Mas não ocupei lugar nenhum, nem no PS, nem na Câmara, nem no aparelho de Estado, enquanto o meu pai foi líder do partido. Trabalhei como editor. Só comecei a disputar coisas dentro do PS quando o meu pai saiu, em 1986.
Gostou de ser presidente da Câmara de Lisboa?
Fui cinco anos vereador do [Jorge] Sampaio e sete anos presidente. Gostei imenso de ser autarca. Assumi sempre que o meu objetivo era ser presidente da Câmara de Lisboa.
Porquê? É a proximidade?
Exatamente. Não há nenhum cargo que tenha uma proximidade tão grande. As pessoas vão à porta de sua casa dizer que há um buraco na rua ou que se zangaram com o marido e que precisam de uma casa. Depois, a máquina de Lisboa é uma coisa gigantesca. E tem de se decidir rápido, é preciso coragem e capacidade para decidir. É fascinante.
Como é que olha para a transformação que Lisboa sofreu, para o volume de turistas, para a gentrificação?
Primeiro, o fenómeno que aconteceu em termos quantitativos é menor do que na generalidade das grandes capitais europeias. Aqui, houve o aparecimento de investidores estrangeiros, há dez ou 15 anos, que começaram a comprar tudo o que podiam. E depois houve outra coisa, que não condeno, que foi o Alojamento Local. O AL permitiu que boa parte das zonas centrais da cidade fossem recuperadas. Quando fui autarca, a maior parte dos prédios da baixa estavam abandonados. E ainda há muitos lisboetas a viver no centro, há vida, há restaurantes, cafés, casas. As cidades vivem do movimento, transformam-se.
Durou quatro meses e meio como ministro da Cultura no primeiro Governo de António Costa. Estava no lugar que queria?
Estava apostado em contribuir para a solução política que foi encontrada a seguir às eleições legislativas de 2015. Sempre fui favorável ao entendimento à esquerda, como já tinha sido na Câmara de Lisboa, com o Sampaio como candidato e eu como número dois. O PS é um partido de Esquerda. Se fui para o lugar que queria? Não. Tinha estado muitos anos no Parlamento sempre na área da Defesa, e o Costa perguntou-me o que me interessava, disse-lhe que era obviamente a Defesa. Ele convidou-me para a Cultura. Fazia sentido, tinha sido vereador responsável pela Cultura na Câmara de Lisboa e já não havia ministros na Cultura há muitos anos. Costumo fazer a comparação com o meu avô, que foi ministro das Colónias num Governo de Esquerda da Primeira República durante três meses (ri).
Saiu quando, em 2016, ameaçou dar um par de bofetadas a dois cronistas. Pediu a demissão.
Nunca ameacei ninguém.
Nega que o fez?
Não nego nada. Quando estava na Câmara, aí em 2001, o senhor Augusto M. Seabra escreveu uma coisa a fazer-me acusações quanto à minha seriedade pessoal, que é das poucas coisas que não aceito. Nessa altura, escrevo um artigo num jornal a dizer que ele pode fazer críticas à minha política, agora dizer que promovo amigalhaços não, caso contrário tenho de lhe dar um par de bofetadas. Mais tarde, quando fui para o Governo, ele faz-me outro ataque. Levanto-me cedo, era uma quinta-feira, e às seis da manhã li o artigo dele que tinha sido publicado na véspera no “Público”. Fiquei irritado. Escrevi no Facebook que fiz uma promessa que não cumpri, que era dar-lhe duas bofetadas. E já agora, talvez fizesse sentido meter na lista o Vasco Pulido Valente, que tinha escrito algo parecido.
Era ministro, não estava obrigado a algum decoro?
O meu primo Mário [Barroso], cineasta, telefonou-me cedo de Paris, mal viu o post, a dizer-me para o apagar. Ainda abri outra vez o Facebook e vi uma partilha do Joaquim Vieira a dizer “Leiam, leiam, que isto vai desaparecer da net”. Aí decidi não apagar. Por princípio não tirei. O Zuckerberg devia ter-me dado uma medalha de mérito. Que saiba, sou a única pessoa que saiu de um Governo com o qual estava de acordo por causa de três linhas no Facebook.
Convive mal com a crítica?
Convivo bem. Só não aceito críticas de honradez pessoal.
Nunca se arrependeu de entrar na política?
Nunca. Tudo o que fiz na vida fiz por gosto. Não me lembro de nada que me tenha custado muito fazer.
Foi há 35 anos que sofreu um acidente de avião na Jamba, base de atuação da UNITA em Angola.
Lembro-me que eu, o Nogueira de Brito, do CDS, o Rui Gomes da Silva, do PSD, e mais um austríaco de uma fundação que apoiava a UNITA aceitámos uma boleia para Pretória de um português que vivia na Namíbia e que era um péssimo piloto. Como tive um brevê, convidou-me a sentar ao lado dele, os outros iam atrás. Ele fez uma asneira logo a levantar voo, o avião entrou em perda e caiu. A cadeira do Rui Gomes da Silva foi projetada por cima de mim, fiquei esmigalhado contra o tabliê do avião. O meu problema não foi o acidente, foi o PSD passar-me por cima (ri). Graças a um hospital da África do Sul, para onde fui, e ao meu primo Eduardo Barroso, que foi para lá com a minha mãe e a minha primeira mulher, e que deu grandes indicações à equipa médica, lá me safei. Tive muita sorte.
Quando estava inconsciente, levavam-lhe gravações da voz dos seus filhos.
Sim, e falavam comigo permanentemente. É um dos métodos que se usa. Estive em coma induzido, entrei muito mal. A minha mãe e a minha ex-mulher passaram por mim, estava eu internado, e não me reconheceram. Um ano depois, voltei a Angola e fui ao sítio onde estava o resto do avião, que caiu a uns 500 metros da pista.
Ao contrário de si, que é ateu, a sua mãe converteu-se aí ao catolicismo.
É verdade. Um dos sul-africanos que me tratou era muito beato, pedia à minha mãe e ao Eduardo para rezarem. E ela rezou. Um sinal de que gostava do filho, eu também gostava muito dela. Mais tarde, quando íamos jantar ao domingo, ela costumava atrasar-se porque antes ia à missa.
Talvez em jeito de homenagem à sua mãe, que foi atriz, testou a representação.
Isso foi engraçado. O Jorge Paixão da Costa estava a filmar “A Ferreirinha” e disse-me que tinha um papel que gostava que fosse eu a fazer, uma coisa de um minuto. Fiz de juiz que julgou o Camilo [Castelo Branco] e a Ana Plácido pelo crime de infidelidade conjugal. Nem sabia que esse juiz tinha sido na realidade o pai do Eça de Queiroz. Meteram-me uma barba, fiquei 15 dias com uma alergia por causa da cola. A minha mãe e o meu pai viam a série e nem um nem outro me reconheceram. A única pessoa que me reconheceu foi a mãe do António Costa.
Durante boa parte da sua vida foi editor literário. Ainda edita?
Sim, adoro. Tenho feito coisas como editor comercial.
É casado com Annick Burhenne, mulher belga. Apaixonou-se.
Ela trabalhava numa organização, com sede em Bruxelas, que coordenava o trabalho de várias cidades europeias. Chamava-se Eurocidades. Conheci-a quando passei a ser presidente da Câmara e nasceu aí um namorico.
Ela mudou-se para cá.
E já cá está há 21 anos.
Pai de cinco filhos, três do primeiro casamento e dois do segundo. Como é que é enquanto pai?
Costumo dizer que são duas edições, como sou editor. Acho que sou bom pai. Gosto imenso deles. A Annick diz que lhes faço as vontadinhas todas. Tenho aqui guardada uma mensagem da Lilah, do Dia do Pai. Vou ler: “Gosto muito de ti, pai. Obrigada por tudo o que fazes por nós (apesar de seres chatinho às vezes)”.
Está quase com 75 anos.
Sou da colheita do secretário-geral das Nações Unidas. Como ele disse uma vez, façam as contas.
Costuma celebrar?
Sim. Este ano vou fazer aqui em Sintra um lanche ajantarado. A minha mulher e a minha filha andavam a chatear-me para fazer uma lista, que faço cheio de boas intenções, além da família, meia dúzia de pessoas chegadas. Mas depois aparece mais este e aquele, descarrila sempre. Quando fiz 69 anos, festejei num restaurante no Jardim do Campo Grande. Eram 50 pessoas e foram 150 ou 200. Não havia comida que chegasse, a Lilah foi comer ao McDonald’s.
Tem-se dedicado ao comentário político. Ainda tem ambições na política?
Nunca tive grandes ambições. Tenho objetivos, tive sempre o objetivo de ir para a Câmara de Lisboa. Agora, se houver outra oportunidade, não descarto. Há uma frase da Helena Roseta que diz que na política e no amor não se pode dizer nunca. A primeira coisa que vou fazer depois desta entrevista, independentemente de tentar convencer a minha filha a irmos dar um mergulho à praia, é saber o que se passou no Mundo. Todos os dias percorro os jornais, o “Le Monde”, o “Libération”, os nossos portugueses.
Numa entrevista de 1998, disse que nada na sua vida política lhe foi dado e que fez o seu próprio caminho. Conseguiu deixar de ser filho de?
Nunca quis deixar de ser filho dos meus pais, nem nunca deixei de dizer de quem era filho. Quase tudo o que sei aprendi com eles e com o meu avô. Mas fiz o meu caminho. E sei que uma coisa é ter o cartão do partido no bolso, outra coisa é ser fiel do ponto de vista eleitoral. Há algo de inexplicável na paixão que leva alguém a votar sempre no mesmo sítio, mas reconheço que teria muita dificuldade em não votar na mãozinha. Até por razões genéticas.