Valter Hugo Mãe

James Baldwin: herói de 100 anos


No passado dia 2 de Agosto completaram-se 100 anos do nascimento de um dos homens mais fascinantes da literatura do século XX, James Baldwin, o pensador de expressão cortante, perturbadora, perfeita. Se a sua ficção é a maravilha que lhe sabemos, a minha preferência, ainda assim, vai para o modo como explicou seu lugar no Mundo, erguido como uma multidão, a criar eloquência a partir do extremo exercício da inteligência e humanidade. “Da próxima vez, o fogo” (em Portugal editado agora pela Alfaguara) devia ser lido por cada pessoa na mais elementar escola. Não deveria ser possível chegar a adulto sem passar por este livro, não deveria ser reconhecida a adultez de ninguém, seu direito ao voto ou à felicidade.

O homem que chegou a achar que “Deus e segurança eram sinónimos”, entra no mundo dos livros como uma das denúncias mais bravas que conheço, criando algo impossível de ignorar. Diz: “As próprias condições em que o negro vive são a prova esmagadora de que os brancos não vivem de acordo com os seus princípios”. A hipocrisia desmontada sem retorno, o jeito simples de formular a derrota do branco que se via como dominador e, portanto, vencedor. Tudo no branco, afinal, era podre, porque tudo falhava cumprir os princípios básicos segundo os quais pretendia viver. Era como verificar que a sociedade existia à distância de suas aparentes convicções e, portanto, tudo nela propendia para ser ilegítimo. A desobediência tornava-se necessária e moralmente válida.

Na importantíssima meditação que é “Da próxima vez, o fogo” estamos levados pela mão ao mundo sem tréguas da consciência, a ver como pela primeira vez o que a realidade é e não como imaginamos. A ignorância torna-se impossível. A ingenuidade obscena. É como fazer o serviço militar da decência. Um que nos colha imberbes e nos mande embora feitos pessoas prontas para a sociedade e suas batalhas.

A frontalidade de Baldwin é mais nutritiva do que os mil abraços de um pai moderno. A sua lucidez chega a doer na pele: “Os negros americanos têm a grande vantagem de nunca terem abraçado a panóplia de mitos a que os brancos americanos se agarraram, a saber: que os seus antepassados são todos heróis da liberdade, que nasceram no melhor país de sempre em todo o Mundo, que os americanos são imbatíveis na guerra, que sempre foram honrados na forma como negociaram com os mexicanos, os índios e todos os vizinhos que lhes são inferiores, que os homens americanos são os mais frontais e viris e que as mulheres americanas são puras”.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)