Já agora
Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.
Somos um país de contradições habitado por um povo ambivalente. Valente, é certo, mas também, e sobretudo, mergulhado em paradoxos tão enraizados que se tornaram traços do nosso ADN.
Até ao 25 de Abril, Portugal era uma sociedade estática e rural, na qual a vida política passava à margem da população. Sempre fomos um país classista: os ricos, os intelectuais e os políticos de um lado e o povo do outro, sem terreno para interesses comuns.
Andamos com contas por acertar há séculos e nunca nos entendemos. Às vezes penso que a questão iniciada em 1820, que dividiu os dois irmãos, D. Miguel, absolutista feudal, e D. Pedro, liberal europeu, ainda não está resolvida. A história da sociedade portuguesa pode ser contada através de movimentos revolucionários e contrarrevolucionários imbuídos de um verbalismo radical e quase mágico para os mais ingénuos, que se revela incapaz de produzir as alterações efetivas necessárias ao verdadeiro progresso. Tal realidade não se alterou. Basta ouvir as constantes intervenções incendiárias do líder da extrema-direita a desconsiderar e a insultar sem filtro as instituições nacionais, presidente da República incluído, com o seu discurso totalitário, exclusivista e castigador.
Todos sabemos que o presidente da República é profícuo em declarações infelizes e desavisadas, triste é constatar que a imensa vaga de comentadores que se multiplica à velocidade da luz na rádio e na televisão revele os mesmos traços de verborreia inconsequente e irresponsável.
É voz corrente que o último Governo caiu por implosão. Nada de novo na praia ocidental: a monarquia não foi destruída pelos republicanos, mas pelos monárquicos, tal como a república não foi destruída pelo Estado Novo mas pelos republicanos, e o Estado Novo não foi derrubado pela oposição democrática, mas pelo seu próprio exército, perdido na contradição da Guerra Colonial que não servia a ninguém. Até a própria revolução de Abril ia sendo consumida pelos revolucionários. Salvou-nos o 25 de Novembro. Sem Ramalho Eanes, o heroísmo de Salgueiro Maia podia ter sido em vão.
Que país é este que não se governa nem se deixa governar? Meio século depois da Revolução dos Cravos, a narrativa de um antigo regime terrífico, qual antecâmara do inferno, continua a prevalecer, carecendo de rigor e ignorando o contexto da época em que ocorreu. A Europa atravessou e venceu o terror nazi. A leste, floresciam as ditaduras comunistas que executaram mais inocentes dentro das suas fronteiras do que Hitler em toda a Europa. A nossa branda forma de ser que nos atrasa a vida também não nos permite uma organização em forma de crueldade. Fomos e vamos andando, o povo, queixoso, porém ordeiro, paga os impostos, a prestação da casa e vai dando aos filhos o que pode. Amamos o nosso país ao mesmo tempo que achamos que é poucochinho. Oxalá o amássemos menos e gostássemos mais dele. E de nós, já agora.