O irmão mais velho é quem manda, a irmã do meio é a mais sensata, o mais novo é o eterno rebelde. Não, não é bem assim. Cada família tem as suas dinâmicas e complexidades. A construção do caráter não se explica com uma data de aniversário.
Airmã mais velha é a mais responsável, atinada e protetora. O irmão do meio é mais pacificador, mais equilibrado. A mais nova tem tudo para ser criativa e ousada. Haverá alguma ligação entre o nascimento, a construção da identidade e as características de caráter? Há teorias e há dúvidas. Há probabilidades e até pode haver coincidências porque elas acontecem. E há pormenores que o calendário não domina. Até que ponto a ordem em que se nasce determina a personalidade? A questão tem pelo menos um século de debates.
Alfred Adler, médico e psicólogo austríaco, colocou o assunto da influência da ordem de nascimento no desenvolvimento da personalidade no centro das atenções nas primeiras décadas do século XX. Tornou-se tema controverso na psicologia. Nas pesquisas, liam-se sobretudo probabilidades, não tanto certezas.
Para Patrícia Câmara, psicóloga, psicanalista, presidente da Sociedade Portuguesa de Psicossomática, não há uma ligação direta entre uma coisa e a outra. Ou seja, a ordem de nascimento, por si só, não afeta a personalidade. Em primeiro lugar, em seu entender, é preciso pensar o que significa a ordem de nascimento para a dinâmica de uma família, onde se nasce e com quem se vive, e para o contexto cultural onde se está inserido. “A personalidade é uma construção complexa e resultado da relação entre múltiplos fatores biopsicossociais, onde as relações com as pessoas significativas da nossa vida ocupam um lugar primordial”, sublinha.
Catarina Lucas, psicóloga clínica, segue essa linha de pensamento. “A ordem de nascimento não afeta tanto a personalidade quanto se costuma ouvir, sendo a formação da identidade e personalidade resultante de outros fatores mais complexos e da interação entre si”, refere. A teoria da ordem de nascimento sugere que o lugar entre os irmãos – primogénito, filho do meio, filho mais novo ou filho único – pode influenciar a personalidade. “No entanto, estudos científicos mostram resultados variados e indicam que a ordem de nascimento tem um impacto pequeno ou até irrelevante quando comparado com outros fatores, como estilos parentais, ambiente e cultura”, sustenta. “Assim, embora essa teoria ressoe para alguns, a personalidade é moldada por uma combinação mais complexa de influências”, realça a psicóloga.
A personalidade é um assunto bastante denso. Cada família é uma família, não há duas iguais, e não há fórmula única para criar filhos da mesma maneira. Cada um tem a sua personalidade e, por isso, necessidades diferentes. “Apesar de existirem algumas teorias que buscam tendências de características da personalidade de acordo com a ordem de nascimento, as evidências científicas não parecem, na sua maioria, corroborar esta ideia de forma linear”, constata Patrícia Câmara. “O que não é o mesmo que dizer que ser-se primogénito ou o filho mais novo não possa ter impacto naquilo que somos, significa é que esse impacto, a existir, está relacionado com o que para cada dinâmica familiar e contexto sociocultural significa esta ordem”, pormenoriza.
Há aspetos a ter em conta na personalidade de cada irmão, independentemente da data de nascimento. O que está à volta é determinante: expectativas, preconceitos, relações, questões culturais. Patrícia Câmara dá um exemplo. “Se eu já sentir que não tenho grande capacidade criativa e encontrar resposta para essa sensação na ideia de que é uma característica da personalidade ‘herdada’ por ser a filha mais velha, terei mais dificuldade em conseguir perceber que provavelmente a minha capacidade criativa está ‘obstruída’ e que preciso de perceber como a desbloquear.”
Em alguns casos, a teoria da ordem de nascimento pode bater certo: os primogénitos podem desenvolver traços mais responsáveis, os mais novos podem ser mais criativos e ousados. “No entanto, a ideia é limitada, pois não leva em conta as diferenças individuais e fatores externos como ambiente e cultura, que têm impacto significativo na formação da personalidade”, comenta Catarina Lucas. “Estudos mostram que, embora a ordem de nascimento possa influenciar alguns aspetos, o seu efeito é pequeno e não determina de forma confiável os traços de personalidade”, acrescenta.
Segundo Patrícia Câmara, o que faz sentido é pensar que a dinâmica familiar e as expectativas dos pais ou cuidadores podem variar consoante a ordem de nascimento de um filho e que, de facto, podem moldar algumas características.
“Contudo, o que não faz sentido, e pode ter consequências negativas para o desenvolvimento, é que se generalizem essas características para todas as pessoas. Cada um de nós é único e a nossa personalidade é o resultado sempre em transformação de uma combinação de fatores genéticos, ambientais, epigenéticos e, nessa medida, fruto, acima de tudo, das experiências relacionais que temos”, considera a psicanalista. “As atribuições à nascença associadas à ordem de nascimento podem enviesar os relacionamentos e não permitir o desenvolvimento de acordo com aquilo que a pessoa teria potencial para ser”, avisa ainda.
O filho único e os gémeos, generalizações e mitos
O irmão mais velho é o mandão, mais organizado, mais prudente, mais autodisciplinado? São mais parecidos com os pais e vão seguir as suas pisadas profissionais? O segundo irmão é mais cooperante e resiliente? O mais novo é mais competitivo, mais protegido, mais engraçado, com maior propensão para o risco? E até que ponto o género importa? Como será uma menina criada num ambiente machista? Como será um rapaz educado num contexto castrador e cheio de regras? Tudo isso importa. A construção da personalidade tem várias camadas.
E no caso de filhos únicos e de gémeos? O que acontece à teoria? “Bem sabemos que a ideia, por exemplo, de que os filhos únicos não sabem partilhar por não terem irmãos não encontra evidência científica e levou a que muitas pessoas chegassem a ter vergonha de dizer que eram filhos únicos com medo de que a interação com os outros ficasse comprometida com esta ideia. Assim como não é uma verdade absoluta a ideia de que os gémeos têm personalidades complementares ou sequer idênticas”, avança Patrícia Câmara.
Nesses casos, a teoria não se aplica, segundo Catarina Lucas. “Filhos únicos recebem a atenção exclusiva dos pais, o que pode promover a menor autonomia ou menos competências de socialização, mas esses traços dependem mais do estilo parental do que da condição em si.” No caso de gémeos, a ordem de nascimento, primeiro ou segundo a nascer, é pouco relevante, até porque, lembra a psicóloga clínica, “partilham uma dinâmica única e desenvolvem as suas individualidades com base na convivência e estímulos externos”. Seja como for, salienta, em ambos os casos, o ambiente e as interações familiares influenciam mais a personalidade do que a ordem de nascimento. Mais uma vez, limita a validade da teoria.
A construção da personalidade não permite generalizações, preconceitos e mitos. É assunto sério, é um fenómeno bastante complexo. Catarina Lucas aborda esses aspetos. “A personalidade é moldada por uma combinação de genética, ambiente familiar, estilo parental e experiências individuais, como amizades, desafios e sucessos pessoais. O contexto cultural e social também influencia valores e atitudes, formando uma personalidade única que vai além da ordem de nascimento ou da presença de irmãos.”
Patrícia Câmara volta à construção da personalidade para reforçar alguns aspetos. “Existe em nós uma espécie de temperamento à nascença que vai encontrar um contexto psicossocial específico. É no balanceamento entre aquilo com que nascemos e aquilo que encontramos, que vamos construindo a nossa personalidade.” E continua: “Esta personalidade será tanto mais saudável quanto melhor for a qualidade dos braços de aconchego e de força para a vida que encontramos desde o início. Estes braços serão sempre melhores se despojados de ideias prévias sobre a ordem que ocupamos no Mundo e mais plenos da ideia de empatia e da existência de um lugar de singularidade que garante um lugar para todos”. “Somos seres de relação e é nela que nos construímos”, conclui. A ordem com que se nasce acaba por ser um detalhe no percurso de construção da identidade. E com tantas coisas pelo caminho.