Ideias
Arrumar ideias começa por solicitar o esforço de destralhar a casa. Não consigo ter a impressão de um novo ciclo se não fizer uma severa triagem do que se vai acumulando em volta, como objectos parasitas abrigados por minha incúria. Em certas alturas, como o fim de cada ano, sou capaz de deitar fora ou oferecer até os livros que mais queria ler. Por uma questão de sanidade mental, pouca coisa mantém seu império diante da necessidade de representar uma folha branca na casa, um espaço outra vez limpo e vazio onde possa imaginar o gesto do futuro, a fortuna do futuro, tudo quanto há por vir.
Por outro lado, gosto sinceramente de oferecer. E gosto de misturar o que compro propositadamente para o efeito com o que respigo em casa, como quem redirecciona objectos, seus destinos e sua vocação para serem amados. A sensação de passar algo para quem o estimará mil vezes mais do que nós é profundamente gratificante. Auferimos de uma santidade qualquer quando nos conseguimos despojar generosamente. Acedemos à imediata convicção de fazer algum bem, praticar a imaterialidade, sublinhar a alma no mundo de ganâncias.
Assim estou. A arrumar aquilo que já parecia impossível de ser arrumado, não pela pilha de objectos crescendo, tomando conta de tudo como floresta imparável, fértil, que imagina seu próprio corpo mutante e multiplicado. O grande desafio está na bravura de entender que, afinal, não usufruímos do que temos, as mais das vezes nem boa consciência guardamos de o ter. Praticamos uma bizarra esperança de algo nos valer em outra fase da vida, sem saber se há outra fase da vida e, sobretudo, sem reparar que nesta fase estamos diante da tralha como já cuidando de um vasto cemitério luzente. Tantos objectos são cadáveres sepultados em casa. Se não os buscamos para nada, ano depois de ano, não são do foro da nossa vida. São terra que deitamos sobre a casa, até que deite sobre nosso corpo mais e mais constricto, até que tudo tenha passado, até a necessidade de acumular e de esperar pelo dia de isso valer a pena.
Deixar de ter é uma libertação. Desprendemos do pé e podemos começar a escolher com que substituir, como se medíssemos quem somos agora, adequando idade e juízo, o corpo de hoje com a casa de hoje, igual a viver segundo a realidade e o sonho repensado. Os sonhos maturam e eu agora só quero mais livros do Tolstói, quadros do Albuquerque Mendes e da Clara Sousa, cadernos imaculados de desenho e tinta dourada que transforma tudo em ouro. O que virá será a tradução deste encontro. Eu, pelo meio, como num labirinto que se me esclarece sem demasiada resistência. Apenas naturalidade.