Histórias (que ficam para sempre) de Mário Soares

Nasceu anos antes de “o fascismo descer como uma cortina negra sobre a vida nacional”, palavras dele. Podia ter sido advogado, escritor, jornalista, mas haveria de dedicar mais de sete décadas à política. “Fui um pouco político à força. Fui político porque não podia viver na ditadura. Era uma incompatibilidade física”, dizia. Lutou como poucos contra o salazarismo, viveu prisões durante o Estado Novo, viu-se forçado ao exílio. Fundador do Partido Socialista, vencedor das primeiras eleições legislativas em democracia, antigo presidente da República, o presidente “fixe”. A vida de um resistente, pai da democracia em Portugal, atravessa a história do país e carrega episódios marcantes. Muitos insólitos e bizarros, como não podia deixar de ser. Não acreditava na eternidade, nunca foi tocado pela religião e pela fé, morreu aos 92 anos. Republicano, visionário e sonhador, irrequieto, tantas vezes desabrido, de sentido de humor apurado. Mário Soares faria 100 anos a 7 de dezembro, e embora tenha dito que o que fica de si “é um rodapé num livro de História”, os relatos que aqui partilhamos, de quem com ele conviveu, revelam que de Soares fica um sem-fim de histórias.

O olhar de quem não deixava escapar nada e os conselhos no dia da posse

Marcelo Rebelo de Sousa
Presidente da República

Mário Soares mostrando as várias dependências do Palácio de Belém, em Lisboa, a alunos da Universidade Católica, acompanhados por Marcelo Rebelo de Sousa (de fato escuro) (Foto: José Maurício)

Pede-me o “Jornal de Notícias” umas linhas, breves, simples, sobre memórias de Mário Soares. Do Homem atento aos outros. Do lutador pela Liberdade e a Democracia. Do Homem da Cultura. Do Homem com Memória. Das inúmeras, que poderia citar, ocorrem-me, algumas, poucas, pinceladas de uma vida de exceção.

1973
Maria Barroso traz, em mão, prosa de Mário Soares, escrita em França, sobre o 28 de Maio de 1926 e o regime então anunciado.
Mário Soares é contundente, frontal. O “Expresso” publica, não respeitando a Censura. Há muito, nada de Mário Soares chegava aos leitores da imprensa. Francisco Pinto Balsemão estava em Madrid. Tomo a decisão. Vale pesada punição imediata. Prova de página. Tudo censurado, texto a texto, mais títulos, fotos, publicidade, maquetagem. Risco assumido com a ajuda de Mário Soares e Maria Barroso, menos de um ano antes do 25 de Abril.

Anos 60, segunda metade
Mário Soares nos leilões de livros antigos. Políticos. De Arnaldo Henriques de Oliveira. Na Liga de Profilaxia Social. Raramente. Sempre entre prisões e deslocações variadas. Noites inesquecíveis de histórias de livros e da sua História. Com Francisco Salgado Zenha, o jesuíta muito conservador Domingos Maurício, Jorge Borges de Macedo, Carlos Ferrão. E tantos outros. O adolescente de quinze, dezasseis anos aprende, atento e silencioso.

Início dos anos 80
Mário Soares, na oposição, desce até à Galeria 111. E, uma por outra vez, o apanho em amena cavaqueira com Arlete e Manuel Brito. Não sobre livros. Acerca de quadros. Desenhos, aguarelas, óleos. Não para comprar. Só para falar. Coleção sua já a tinha, variada e muito pessoal. Um deleite ouvi-lo falar de obras e, sobretudo, de autores.

1979
Praia do Alvor. Mário Soares, vindo do Vau, percorre o areal até perder de vista. Eu escrevo artigos para o “Expresso”, na Praia dos Três Irmãos. Minha filha de quase três anos desaparece. Todos a procuramos. Mário Soares, de regresso da caminhada, com a simpática bonomia de sempre, informa tê-la visto, muitos quilómetros atrás, na foz do Alvor. Recorda-a, no meio de milhentos veraneantes, e resolve o que nós, amigos, banheiros e GNR não havíamos conseguido deslindar. Nada lhe escapa. Pessoas, factos, situações.

1975
Manifestação conjunta do PS e do PPD e aliados no Terreiro do Paço. Mário Soares e Francisco Sá Carneiro mal se falam. Por causa de desaguisados em entrevistas. Mas lá estão com o primeiro-ministro, Pinheiro de Azevedo, a apoiar o VI Governo Constitucional. Intermediários – Vítor Direito e eu. E penso que também Mário Sottomayor Cardia. Em momento crucial da Revolução, quando, comentando disparos para o ar da Polícia Militar, o primeiro-ministro sai com a sua “É só fumaça…”. Apesar dos remoques anteriores, a unidade na luta impõe, em Lisboa como noutras manifestações conjuntas, o sentido da convergência.

2016
No dia da posse, no meu primeiro mandato, visito Mário Soares, já adoentado, em sua casa. Presentes João Soares e Eduardo Barroso. Aparece muito bem-disposto. A saber tudo, a sobretudo falar. Interessantíssimos os conselhos para o neófito no cargo e a recordação do pessoal de Belém. Um a um. Tinham passado vinte e tal anos, seus, de Jorge Sampaio e de Aníbal Cavaco Silva.

Mais do que a memória, toca-me o tom intimista dessas evocações.

Acabei por me alongar. Mas, são momentos que definem Alguém a quem Portugal tanto deve.

E nunca esquecerá.

A salvação da carreira de uma estrela

Paulo Futre
Ex-jogador de futebol

Em dezembro de 1987, Mário Soares convida Paulo Futre para um encontro na embaixada em Madrid, para agradecer os feitos futebolísticos do português no estrangeiro (Foto: LUSA)

Mário Soares é o meu herói, e eu sem nada saber de política. Estive muito poucas vezes com ele, mas Soares salvou a minha carreira. Tudo começa em 1987, estava eu em Espanha, quando fui chamado a cumprir o serviço militar obrigatório, tinha de me apresentar em Castelo Branco a 8 de setembro. Só que em julho eu tinha assinado com o Atlético de Madrid, tinha sido a segunda contratação mais cara do futebol à época. Quando rebenta a bomba de que tinha de ir para a tropa, aquilo foi um escândalo. Os meus advogados foram à embaixada em Madrid tentar negociar, o embaixador só dizia que eu tinha de ir para a tropa porque era um exemplo para os jovens portugueses. E os meus advogados diziam que tinha de ficar em Espanha porque um futebolista português a triunfar no estrangeiro era inédito naquela altura.

Até que fui chamado à embaixada porque Mário Soares queria falar comigo, fiquei cheio de medo de ser extraditado. Falei com o presidente da República por telefone, disse-lhe “por favor, não me faça ir para Portugal, isto é uma oportunidade única para mim e para o futebol português”. Ele pediu-me dois dias para pensar. Daí a dois dias, era 20 de agosto de 1987, quando ele me diz que tem a honra de anunciar que vai ser criado um estatuto para todos os atletas de alta competição e que vou beneficiar de oito anos de prorrogação da obrigatoriedade de ir à tropa. A lei beneficiou todos os jogadores na época, nenhum foi para a tropa à conta disto. Aí, comecei a chorar a sério. E nunca mais me esqueço das palavras dele: “Agora não me pode falhar a mim, a Portugal, aos jovens portugueses e aos nossos emigrantes aí em Espanha”. Era muita responsabilidade. Mas no Atlético começa tudo a correr-me muito bem, nos primeiros meses sou logo consagrado uma estrela, estava em grande, a rebentar com aquilo tudo. Em dezembro desse ano, perto do Natal, Soares vai a Madrid, convida-me para ir à embaixada e nesse encontro diz-me: “Para mim, és um herói”.

Mais tarde, quando terminam os oito anos de prorrogação, já eu estava em Itália, no AC Milan, na altura o melhor clube do Mundo. Em setembro de 1995, os telejornais italianos abrem com uma notícia sobre a Polícia do Exército andar à minha procura. Se ia para Portugal, era preso. Já estava com 29 anos, duas operações aos joelhos, mas as Forças Armadas não me perdoaram. Nesse ano, pela primeira vez na vida, passei o Natal fora de Portugal. E a 23 de dezembro, há um detalhe incrível. Recebo uma chamada no telefone da minha casa em Milão. Era Soares, o presidente da República. Ele sabia que eu estava revoltado, achava que já tinha cumprido a minha missão. Explicou-me que era uma questão política e que era uma injustiça.

É então que Soares sai da Presidência em março, termina o segundo mandato, e meses depois informam-me de que já posso ir a Portugal. Na sombra, ele conseguiu que eu passasse à reserva. Voltei em agosto, já não via a minha mãe há meses, estive quase um ano sem ir a Portugal, ninguém imagina o que era para mim não poder ir ao meu país. E nunca mais estive com Mário Soares.

Os dois a apreciar as delícias da senhora em topless

Alberto João Jardim
Ex-presidente do Governo Regional da Madeira

Alberto João Jardim e Mário Soares durante um passeio numa praia do Porto Santo, em 1986 (Foto: Arquivo JN)

Em 1986, vivíamos ótimas relações. O doutor Mário Soares gostava das coisas boas da vida, de que eu também gosto, e muitas vezes os temas das conversas não eram propriamente sobre questões de Estado, mas sobre as coisas boas da vida. Ambos gostávamos do mar, de nadar, e então houve uma visita oficial à região autónoma, com passagem de um dia pelo Porto Santo. O Governo Regional resolveu fazer um programa em que só trabalhávamos de manhã e à noite e teríamos a parte da tarde livre para ir à praia e nadar, deixando o doutor Mário Soares à sua vontade. Ele é que me convidou para ir para a praia com ele. Uma das coisas que se conseguia aqui na Madeira era criar bem-estar às pessoas que nos visitavam. E o doutor Mário Soares adorava isso. Não havia visita dele à Madeira em que não houvesse uns intervalos livres para as tais coisas boas da vida. Assim, evitávamos andar sempre chateados com as questões públicas.

Foi nesse âmbito que nos apanharam na praia. Há uma história interessante, documentada noutra fotografia, não sei quem a tem, porque eu não a tenho, mas que é interessante: nesse dia íamos os dois no areal e aparece-nos pela frente uma senhora em topless. Ela parou para falar connosco, era estrangeira. Alguém lhe disse que estava ali o presidente da República de Portugal e então nessa imagem consegue perceber-se ela a falar connosco e nós os dois a olhar para as suas delícias corporais. Tenho muita saudade do doutor Mário Soares. Ele foi, talvez, o político que eu mais gostaria de ter sido. Excetuando a parte do socialismo, que para mim é um erro científico.

A gafe na Biblioteca do Palácio de Mafra

Alfredo Cunha
Fotojornalista e fotógrafo oficial de Mário Soares de 1986 a 1996

Na imagem, Alfredo Cunha e Mário Soares relaxam durante uma visita ao México. Cunha foi fotógrafo oficial de Soares ao longo dos seus dois mandatos como presidente da República

Tenho várias histórias delirantes com Mário Soares, mas vou contar esta. Tinha andado sete meses com Soares pelo país na sua primeira campanha para a Presidência da República, e quando ele é eleito, em 1986, já eu era seu fotógrafo oficial, pôs-se a questão de se fazer a fotografia oficial do presidente da República. Ele cismou que tinha de ser na Biblioteca do Palácio de Mafra e lá fomos, de armas e bagagens. Soares era presidente da República há poucas semanas, sempre que se deslocava a qualquer lado era um festival, havia centenas de pessoas. Chegados a Mafra, decidimos, eu e o Luís Vasconcelos, também fotógrafo oficial de Soares, fotografar à vez. Era preciso fazer negativos a cores e a preto e branco. Calhou-me a mim ser o primeiro, comecei com o preto e branco.

E estou eu a fotografar, a fotografar, a fotografar, até que Soares me diz assim “epá, esse rolo não acaba?”. Como estava entusiasmadíssimo, nem pensei nisso, e quando me apercebo, o rolo não tinha engatado, o filme não engatou nas rodas dentadas da máquina. Ou seja, logo para começar, estive ali a disparar sem filmes. É então que digo que “aconteceu um pequeno problema”. Ele olha para mim com um ar furioso, faz-se silêncio, há uma tensão, começo a certificar-me que o filme está no sítio e digo “está pronto”. E diz Soares: “Está pronto, mas não estou pronto eu. Acho incrível acontecer uma coisa destas”. Eu respondo: “Ó senhor presidente, foi um erro humano”. E diz Soares assim: “Pois, Chernobyl também foi um erro humano”. Desatei a rir, ele era muito divertido e extremamente inteligente.

É curioso, as minhas histórias com Soares são todas assim, carregadas de gafes, ele passava a vida a embirrar comigo, no bom sentido. Já quando o conheci, no dia em que chegou do exílio, em 1974, no Sud Expresso, era eu repórter, fui ter com ele perguntar-lhe se conhecia um tal de Mário Soares. Ficámos grandes amigos, tínhamos grandes conversas, algumas nunca poderei contar, até porque ninguém iria acreditar.

Os relatos sobre a PIDE e os gritos do povo: “Ó bochechas, larga o homem”

Luís Branquinho
Motorista

Luís Branquinho foi motorista de Mário Soares ao longo de 30 anos e acompanhou-o até ao final da vida

Fui motorista de Mário Soares durante 30 anos. Comecei durante a campanha para a Presidência da República em 1986. E desde então que o acompanhei sempre, até ao final da vida dele. Soares engraçou comigo, como sou alentejano, talvez tenha sido pela minha maneira de falar. Nunca mais conheci uma pessoa como ele, era um ser humano excecional, tornámo-nos mesmo amigos. Ora, ele gostava de andar de bicicleta, tinha uma bicicleta no Palácio de Belém, e dava umas voltas pelo jardim lá atrás. E também gostava muito de fazer caminhadas, às vezes mandava-me parar o carro para fazermos uma caminhada, muitas vezes no Jardim do Campo Grande.

Uma vez, estávamos a fazer uma caminhada, ali entre a Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e o Hospital de Santa Maria, e o tema de conversa era a PIDE. Ele estava a contar-me as histórias de quando era detido, os maus-tratos que lhe faziam, a tortura do sono, ainda era doloroso para ele falar sobre isso. E dizia-me então que, uma vez, os tipos da PIDE queriam que ele falasse à força e que ele não dizia nada. Às tantas, durante um interrogatório, ficou tão desesperado que se virou a um PIDE. Ao contar-me a história, exemplificou em mim o que fez ao PIDE. Agarrou-me pelas golas do casaco, começou a abanar-me, a abanar-me. E nisto, as pessoas que iam a passar começaram a gritar “Ó bochechas, larga o homem, não batas no homem”. Aí, ele vira-se para mim e diz-me: “Já viu aquelas bestas, Branquinho? Eles não sabem que somos amigos”.

O feitio dele era mesmo assim, sem filtros. O último trabalho que fiz como motorista foi com Soares, reformei-me em dezembro, ele faleceu em janeiro. Mas continuei sempre ao pé dele.

Nada contra o sexo, mas sem estragar o Obelisco

Narciso Miranda
Ex-autarca em Matosinhos

Mário Soares, com Narciso Miranda, na cerimónia de inauguração dos arranjos no Obelisco da Memória e na envolvente, em 2001. O mesmo monumento que, tempos antes, tinha motivado uma carta de Soares ao autarca, onde lamentava a sua degradação (Foto: Artur Machado)

A minha relação, e a de Matosinhos, com o Mário Soares remonta a dezembro de 1980. Ao retirar o apoio à recandidatura de Eanes, nem todo o PS o acompanhou, o que levou à autossuspensão como líder do partido. Ficou fragilizado e, por isso, pedi um encontro, convidando-o a visitar o maior concelho presidido por um socialista. Começou aqui, no terreno, a sua reabilitação política e foi também nessa altura que germinou uma grande relação afetiva com os matosinhenses. Alguns anos depois, esteve em Matosinhos para o último dia de campanha da primeira volta das presidenciais de 1986. Havia tanta, tanta gente nas ruas, que ele me apertou o braço e disse: “Vou passar à segunda volta”. E assim foi.

Um dia, já presidente, passou sem avisar pelo Obelisco da Memória, que assinala a luta entre liberais e absolutistas. Ao regressar ao Hotel Infante Sagres, no Porto, mandou-me uma carta. Estava irritado com a degradação na envolvente e com o facto de alguém ter escrito no Obelisco, a tinta e no mais puro calão, que ali tinha tido a sua primeira relação sexual com a Paula. E concluía o Soares: “Ele pode dar as que quiser e onde quiser com “a Paula”, não pode é degradar o monumento”.

Fez-se o arranjo do Obelisco e envolvente e ele veio à inauguração. Aliás, durante os seus dez anos de presidência, veio nove vezes à festa do Mártir S. Sebastião, a festa dos pescadores. Um dia, numa dessas procissões, com mais de 30 andores, estava o Soares na tribuna, na Rua de Brito Capelo, e os pescadores, por sua iniciativa, viram um andor para ele, os tipos da frente baixam-se e põem o santo a fazer uma vénia. A partir daí, todos os andores fizeram o mesmo. Foi um episódio extraordinário e uma das razões para ter ficado conhecido como o “Senhor de Matosinhos”.

De braço dado com Stevie Wonder numa linguagem de génios

Ana Paula Zacarias
Conselheira para os Assuntos Internacionais nos dois primeiros anos da presidência de Mário Soares

Na foto, Maria de Jesus Barroso, Mário Soares e Ana Paula Zacarias, em Paris, durante uma visita oficial do presidente da República, no final dos anos 1980 (Foto: Alfredo Cunha)

Tive o privilégio de trabalhar na assessoria diplomática do presidente Mário Soares entre 1986 em 1988. Para uma jovem diplomata recém-chegada ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, esta experiência representou uma enorme oportunidade de aprendizagem e de crescimento profissional e pessoal, e deixou a marca de um profundo apreço e admiração pelo homem e pelo político que foi Mário Soares.

A sua visão, a sua persistência, uma intrínseca vivência da liberdade, da cultura e do humanismo, e a sua inteligência emocional aliada à capacidade de se adaptar às constâncias, encontrando soluções onde outros só veriam dificuldades, eram inigualáveis.

Em maio de 1987, Mário Soares efetuou uma visita de alguns dias aos Estados Unidos da América para encontros de alto nível em Washington e Nova Iorque e também em Boston e Providence, tendo recebido um doutoramento Honoris Causa pela Universidade de Brown. A Universidade confere esta distinção a destacadas personalidades americanas e internacionais, mas aquela cerimónia de graduação, de 25 de maio de 1987, foi particularmente importante, porque junto a Mário Soares, foram laureados Stevie Wonder, o lendário músico americano, o renomado escritor infantil Theodor Seuss, o escritor e diplomata William Woodward, a escritora e realizadora Susan Sontag, o arquiteto I.M. Pei, o crítico literário e ativista Edward Said e a historiadora Bárbara Tuchman.

Aguardando o início da cerimónia e colocando as vestes talares doutorais, num ambiente informal e descontraído, os laureados conversavam e iam-se conhecendo. Mário Soares tinha dificuldades com a língua inglesa e pediu-me que ficasse com ele para ir traduzindo aquelas animadas conversas.

Stevie Wonder, então com 37 anos, foi o último a chegar e tornou-se notório que era, sem dúvida, o doutorando mais popular entre as centenas de alunos, famílias, professores e funcionários que enchiam o campus da Universidade. Mário Soares não o reconheceu imediatamente. “Senhor presidente, é aquele músico americano que canta o ‘I just call to say I love you’” disse eu, entusiasmada.

Os funcionários do protocolo da Universidade procuravam, entretanto, organizar o cortejo, que deveria dirigir-se até à Reitoria onde teria lugar a cerimónia e que Mário Soares deveria abrir, seguido por todos os outros. Mesmo na saída, quebrando o protocolo, Mário Soares pegou no braço de Stevie Wonder e trouxe-o consigo para a primeira fila do cortejo e, lá foram os dois de braço dado pela alameda universitária sorrindo, conversando e saudando a multidão que aplaudia. Quando a cerimónia terminou disse ao presidente Mário Soares: “Pareceu-me que vinha a conversar com o Stevie Wonder. Ele fala alguma coisa de português?”. “Não, não fala nada”, respondeu. “Então como é que conversaram?”, perguntei. “Muito simples, eu repeti-lhe aquilo que você me disse, I just call to say I love you, e acrescentei, from Portugal, ele riu e ficámos amigos.”

O dia em que o CDS percebeu que o PS não enfileirava na intolerância

Basílio Horta
Autarca em Sintra e membro fundador do CDS

Basílio Horta chegou a concorrer à Presidência da República, em 1991, contra Mário Soares. Eram amigos e a foto mostra um momento da campanha de Basílio para a Câmara de Sintra, nas autárquicas de 2013 (Foto: Carlos Manuel Martins)

Conheci Mário Soares na sequência do Congresso do Porto onde o CDS foi sitiado, momento que considero ter marcado a história do processo revolucionário português. Pela primeira vez, vimo-nos deparados com um ataque violento a um partido que se queria e se intitulava não socialista. Na altura, a questão que se colocava era saber se a revolução era democrática ou se, pelo contrário, era uma revolução totalitária que só tinha um caminho e um partido.

Perante o ocorrido, depois de sermos libertados, achou-se que o CDS devia falar com Mário Soares, que imediatamente nos recebeu. Nesse encontro, em que participei, foi notório que Mário Soares compreendeu a gravidade do que tinha acontecido, manifestando solidariedade e dizendo-nos que “a revolução não foi feita para isto”.

Foi importante para nós, CDS, porque o país estava virado à esquerda e a intolerância era total para com a única força que, ao arrepio da deriva esquerdista, se apresentava como democrata-cristã. Mário Soares, embora líder de um partido do processo revolucionário, entendia que o pluralismo inerente à democracia obrigava a respeitar o direito à diferença e a conceder plena legitimidade democrática ao CDS. Foi aí que tivemos a certeza de que o PS estava em boas mãos, que aquele era um partido que não enfileirava num só caminho.

O meu percurso foi-se cruzando com o de Mário Soares, na Assembleia Constituinte e na formação do II Governo Constitucional – negociado ainda na velha sede do PS na Rua da Emenda. Esse foi um grande Governo formado por democratas-cristãos e socialistas, prova de que, nesse tempo, o diálogo se impunha à formação de blocos, que o interesse nacional se sobrepunha às simples aspirações pessoais ou partidárias. Foi nesse caminho político que se forjou uma solidariedade democrática que depois se projetou numa amizade pessoal. Nesse percurso, tivemos um grande debate político quando fui candidato presidencial. Na altura, era n.° 2 do Partido e entendi que era meu dever candidatar-me. No âmbito dessa candidatura travei um debate com o doutor Mário Soares que pôs à prova essa solidariedade democrática e amizade pessoal. Não obstante a campanha e esse debate, Mário Soares foi “número um” da minha comissão de honra, em conjunto com Jorge Sampaio e Diogo Freitas do Amaral, na minha candidatura à Câmara Municipal de Sintra.

Mário Soares é, antes e depois do 25 de abril, um exemplo de coragem na defesa da liberdade e da democracia. É, sem dúvida, uma figura e um exemplo nacional pelos valores que representa.

Memória de um banho no mar depois do assassinato em Israel

Estrela Serrano
Assessora para a Comunicação Social do presidente Mário Soares

Estrela Serrano acompanhou Mário Soares como assessora para a Comunicação Social durante os dez anos em que foi presidente da República. É autora do livro “As Presidências Abertas de Mário Soares”, de 2001

São muitas as memórias dos 10 anos em que acompanhei Mário Soares como assessora para a comunicação social e vários os momentos em que tive o privilégio de observar de muito perto a sua enorme coragem e capacidade para manter a lucidez e o sangue-frio em ocasiões de grande tensão física e emocional. Deixo aqui memória de um deles.

Estávamos em 1995, outubro/novembro, Mário Soares iniciou uma visita de Estado a Israel a que se seguiu uma visita à Faixa de Gaza. Yitzahk Rabin era primeiro-ministro de Israel e Shimon Peres ministro dos Negócios Estrangeiros. Na Faixa de Gaza, Arafat liderava a Autoridade Palestiniana, todos velhos amigos de Mário Soares. No último dia da visita a Israel, Rabin convidou Mário Soares para almoçar na sua residência particular. Foi um almoço informal com a família de Rabin e dali Mário Soares partiu para a Faixa de Gaza com uma pequena comitiva da qual fiz parte. A tensão no ambiente era enorme num local de tantos perigos com homens armados em todo o lado. Mário Soares mantinha a sua calma habitual. À noite, a meio do jantar oferecido por Arafat a Mário Soares, começou a perceber-se uma agitação entre a comitiva de Arafat e o jantar foi interrompido com a segurança a retirar Arafat e Mário Soares para um local seguro onde o presidente permaneceu nessa noite. Yitzahk Rabin tinha sido assassinado por um judeu fanático, Israel fechou as fronteiras e de Gaza seguimos para o Egito onde Mário Soares aguardou que Mubarak lhe enviasse um avião para o Cairo. Após um dia no Cairo, voltámos a Telavive para o funeral de Rabin, novo momento de grande tensão e emoção.

Um pequeno pormenor atesta a capacidade espantosa de Mário Soares para manter a serenidade em momentos de grande tensão: enquanto esperava pelo avião de Mubarak que o levaria a Telavive para o funeral de Rabin, Mário Soares foi tomar um banho de mar na pequena praia egípcia onde aguardava o avião para o Cairo.

O último corte de cabelo

Joaquim Pinto
Barbeiro

A foto, registada pelo filho de Mário Soares, João Soares, mostra uma das últimas vezes em que Joaquim Pinto se deslocou à casa do ex-presidente da República, no Campo Grande, para lhe cortar o cabelo e fazer a barba

Mário Soares foi embora com um corte de cabelo e a barba feitos por mim. Fui seu barbeiro ao longo de muitos anos, como fui de outros políticos, de Sá Carneiro, de Mota Pinto, de Cavaco Silva, de quem ainda sou. E fui muito feliz a servi-lo, tenho boas recordações, era uma figura especial, de bom trato, muito conversador, não falava de política aqui, falava da família, de coisas mundanas. Chegava muitas vezes sem marcação e não punha questões nenhumas. Na fase final da sua vida, eu ia a casa dele, no Campo Grande, atendia-o na sala. Nessa altura, não lhe queria levar nada, mas a filha, Isabel Soares, não deixou, queria até pagar-me o dobro do que eu cobraria.

Mário Soares marcou-me uma vida de trabalho e a história que vou contar foi a última vez que estive com ele, quando lhe fui cortar o cabelo e a barba a casa. Disse-lhe assim: “Doutor, não ande com a barba e o cabelo grandes, porque estou perto e venho com todo o gosto atendê-lo a casa”. Ele já falava muito pouquinho e baixinho e, mesmo estando debilitado, respondeu-me o que não esqueço: “E o senhor, o que precisar de mim, diga, que estou às ordens”. É isto que guardo dele, a bondade. Era gente boa, muito boa.


*Assinam também este trabalho Filomena Abreu, Pedro Ivo Carvalho e Rafael Barbosa