Agosto é um mês importante para a comunidade emigrante. Mas algo está a mudar radicalmente. Os que partem são cada vez mais jovens. Vão para fora com a certeza de que não querem voltar. Porque o país não lhes oferece uma vida digna. Assim, apenas regressam para férias. Ou em fins de semana. De avião e com a mochila às costas.
Carros cheios, rostos carregados de cansaço, bagagem infinita, famílias reunidas em longos abraços feitos de um ano inteiro de saudades imensas. Mês de agosto era mês certo de férias para as gerações mais antigas de emigrantes. Para as mais novas também tende a ser. Mas o sentimento é diferente, o peso nas malas também – porque são quase uma companhia permanente. Enquanto dantes a saída do país era quase sacrifício obrigatório cumprido em saga de esforço e sofrimento, os jovens de hoje terminam o percurso universitário e deixam Portugal por opção própria, colocada como prioridade das prioridades sem sinal de arrependimento, apenas como passaporte para um futuro que nunca vislumbraram entre portas, por não lhes serem oferecidas respostas profissionais. Como foi o caso de Inês Dias. Terminado o mestrado em Medicina Veterinária no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, no Porto, tinha uma ideia fixa que não a deixava desviar do caminho que traçara na preparação para a vida profissional.
Queria sair do país, experimentar outros mundos. Porque já tinha uma certeza absoluta: “A de que no meu país jamais teria as oportunidades que noutros me poderiam ser proporcionadas”. Trabalha fora há poucos meses, agosto será de descanso por cá. A primeira vez. Estreia absoluta de temporada em família que complementa e completa outra estreia maior, a de trabalhar fora de Portugal. Antes ainda de acabar os estudos universitários, Inês Dias fez Erasmus, voou para Brno, na Chéquia, depois para Madrid, capital de Espanha. Foi o princípio de tudo, realidade nova que fez sua. “Consegui experiências incríveis, habituei-me a viver fora. Aceita-se muito facilmente a ideia”, confessa. E porquê? “Permitiu conhecer novas culturas, novas pessoas. Preparou-me.”
Finda a aventura, regressou a Portugal. Por pouco tempo. Fez-se a candidaturas internacionais, estudou o mercado. E foi. Deixou Vila Nova de Gaia sem olhar para trás com desgosto. “Desde há sete meses que trabalho no Reino Unido em duas clínicas veterinárias”, relata. Dias inteiros de trabalho, completos, carregados.
Aos 24 anos, cumpre o sonho de uma vida. Habita em Peterborough, 40 minutos de comboio desde Londres. Tem a companhia da comunidade portuguesa, o que a apazigua. São 40 mil os compatriotas, dizem os números da embaixada portuguesa, que todos os anos, no mês de junho, se juntam em festa gigante que celebra um país distante deixado em nome de melhor na vida.
Não há como contornar a realidade. “Sou emigrante a 100%. Vivo em Inglaterra – e gosto. Mas a cultura não é a nossa, não são tão acolhedores como nós. É muito fácil sentir-me assim, emigrante”, admite. “Apesar de que me sinto muito respeitada a nível profissional, isso sem dúvida alguma”, realça em tom de elogio.
Os seus estão longe, à distância de uma conversa ou de uma chamada por WhatsApp, de mensagens trocadas em nome da saudade. “Não sinto revolta por estar fora, antes prefiro aceitar que Portugal continua atrasado na área da veterinária e que precisa de evoluir, tal como precisa de evoluir noutras áreas”, constata. “É mais uma sensação de resignação”, reconhece Inês, “aceitar a realidade tal como é, lidar com ela”. De dois em dois meses, Inês apanha o avião e voa para os braços da família durante um fim de semana. E há agosto, o mês das férias. Semanas em que abraçará os que mais gosta sem olhar de lado para a realidade. “A vida continua. A deles em Portugal, a minha noutro lado, num trajeto diferente. Assim é, assim será. Sem qualquer problema.”
Voltar a Portugal? “Não digo que não, o futuro é incerto. No entanto, só regressarei – se regressar – depois de me especializar. Antes disso, nem pensar.” Palavra de quem a juventude não deixa toldar o horizonte. “Sempre tive esse objetivo de carreira, assim como sempre soube que tal seria impossível em Portugal, que teria de ir onde estaria a oportunidade para realizar internatos ou residências.” E foi.
“Fora de questão voltar para Portugal”
Vontade irreprimível de deixar o país que lhe deu nacionalidade e de procurar onde se sentisse feliz, confortável e realizada sentiu também Carlota Gonçalves. Vive e trabalha em São Paulo, onde pertence ao departamento de finance management da gigante farmacêutica Novo Nordisk. Mas não lhe é estranho experimentar novas geografias. Antes do Brasil, esteve na Dinamarca e na Coreia do Sul. Tanto Mundo e apenas 27 anos de idade. E tantas certezas, também. “Apesar de adorar o meu país, Portugal não satisfaz as minhas necessidades. Não tanto por uma questão salarial, essa não foi a questão principal que me levou a sair. Teve mais a ver com a falta de crescimento e de diversidade cultural, e em termos de trabalho”, explica. “São formas diferentes de trabalhar, outras realidades”, reforça Carlota, mestre em Gestão Internacional de Finanças pela Universidade Nova de Lisboa. A primeira vez que disso se apercebeu foi quando estudou em Londres em regime de Erasmus. “Compreendi logo que havia uma outra forma de ver as coisas”, recorda. Está no Brasil como poderá estar noutro continente daqui a uns anos, que a mudança não a atemoriza. “Fora de questão voltar para Portugal”, sentencia. “Provavelmente, só quando tiver filhos ou, quiçá, tiver filhos”, profetiza. Porque Carlota tem no Brasil o que quis e procurou, “diversidade e proximidade cultural”, aquilo que não encontrou na nação que lhe deu berço e a fez sair da Maia, de onde é natural, à procura de uma morada que pode ser em qualquer canto do Planeta que lhe ofereça futuro.
Mas fica sempre a mágoa, o franzir de testa por um país que não a reconheceu a si nem a gerações inteiras. “Como qualquer emigrante sinto tristeza por estar longe. Sobretudo por perceber que Portugal não proporciona carreiras. Temos muito potencial subaproveitado, o que é lamentável. Mas sinto-me bem no Brasil, como se estivesse em casa”, define.
Portugal só em agosto, esse mês que parece oficial para quem tira férias lá longe. “Ou vou visitar a família, ou a família vem visitar-me. Tem sido assim, um ano uma coisa, no ano seguinte outra”, descreve. Feliz, porque o mundo está-lhe nas mãos e Portugal continua lá, num canto cinzento de desilusão assimilada.
Chip das novas gerações
Terminado o estágio curricular no Consulado-Geral de Portugal, cumprido durante três meses em Newark (Estados Unidos) e submetida a respetiva tese, Júlio Sampaio não teve dúvidas nem falta de arrojo na hora de dar o passo seguinte. Preencheu um email com um breve currículo, o qual também incluía a licenciatura em Direito pela Faculdade de Direito do Porto e o mestrado em Ciência Política e Relações Internacionais da Universidade Católica de Lisboa, e enviou-o para os 21 deputados portugueses ao Parlamento Europeu. Candidatura espontânea que redundou na resposta positiva da social-democrata Maria da Graça Carvalho, atual ministra do Ambiente e da Energia e então eurodeputada, que o chamou a Bruxelas e o desafiou a lá ficar, então ainda como estagiário. Estávamos em 2023, o país político mudou no primeiro trimestre de 2024 e a vida de Júlio também. “Com a saída da professora Graça Carvalho para o Governo, passei a assessorar a eurodeputada Vânia Neto. Neste momento, sou assistente de Ana Miguel Pedro em matérias como Justiça, Assuntos Internos, Política Externa e Assuntos Constitucionais. Um percurso bastante enriquecedor e exigente”, aponta Júlio, natural do Porto e com família transmontana com raízes em Valpaços e Torre de Moncorvo. Lida com temas de Direito Europeu, Direito Internacional, Segurança e Defesa, afinal as áreas em que se especializou. “Do ponto de vista analítico e político, não poderia ter tremenda experiência senão no Parlamento Europeu”, considera.
Com 27 anos, “ir para fora do país não estava planeado de todo”. O objetivo a que se propusera fora o de “ficar por Portugal e fazer carreira nas áreas da Segurança e Defesa, continuar a escrever artigos científicos”. Até que a oportunidade surgiu e partir acabou por ser tão natural como respirar. “Sinto-me mais expatriado do que propriamente emigrante. Estou fora de casa e da família, mas não posso esquecer que me encontro numa posição diferente, a de representar Portugal numa instância relevante como o Parlamento Europeu”, agradece.
Regressa temporariamente de dois em dois ou de três em três meses para uns dias em família. E faz de agosto mês de férias maiores. “Na última semana, já vou regressar a Bruxelas”, a cidade que se tornou casa e onde sente falta “do sol e da nossa gastronomia”. Rotinas diárias que lhe deixam tempo para pouco, apenas para “convívios sociais com colegas e amigos uma vez por semana”.
O futuro é ainda página em branco. Os novos eurodeputados tomaram posse há pouco, resultantes das eleições de 9 de junho, os próximos cinco anos têm destino certo. “Quero pensar apenas no presente, é cedo para imaginar o que virá depois. Decidirei com o que então tiver em cima da mesa”, garante. Voltar a trabalhar fora do país natal não lhe será alheio, nem estranhará se tal acontecer. “É algo que está no chip das gerações mais jovens”, diz. “Trata-se de algo natural quando não existem oportunidades e as remunerações se encontram muito abaixo da média europeia.” Por isso, procurar conforto e outra almofada financeira num país diferente não assusta, “é uma solução de vida para um conjunto de jovens dos mais bem preparados de sempre em termos de qualificações”.
Metade dos jovens não quer Portugal
O retrato de vida de Júlio é quase sintomático da realidade portuguesa. A emigração saltou duas gerações na família, depois de os avós paternos terem ido para França, ele para trabalhar na construção civil, ela como contínua numa escola. Como milhares noutros tempos, os tempos em que a escolaridade era baixa e não permitia grandes ambições de emprego, apenas o sonho de lutar duro para ter salário condigno, impossível em Portugal. Nos dias de hoje, quando um grau universitário é escasso para segurar os novos, a opção passa novamente por abandonar Portugal, sem olhar para trás nem sinal de perdão próprio pela decisão tomada.
Um estudo levado a cabo no início deste ano pela Federação Académica do Porto (FAP) junto de 1002 estudantes universitários e do politécnico confirmou a tendência. Metade dos inquiridos admitiu emigrar depois de concluir o Ensino Superior, contra apenas 17% que preferem ficar em Portugal. “A saída de jovens licenciados é uma inevitabilidade”, observa Francisco Porto Fernandes, presidente da FAP, segunda maior academia do país, logo a seguir à de Lisboa, representativa de cerca de 60 mil alunos. Destes, os de Ciências e Tecnologias (62%) são os mais propensos a sair do país, percentagem semelhante aos que frequentam os cursos de Ciências Económicas, de Letras, de Comunicação, de Saúde e de Artes.
“O que é preocupante é quando essa opção não é tomada por vontade própria mas por necessidade, como forma de esses mesmos jovens se conseguirem emancipar”, reforça Francisco Porto Fernandes. “O normal seria terminar o percurso universitário e trabalhar dois ou três anos fora do país para adquirir experiência e ganhar novos horizontes, e depois voltar. O que está a acontecer é que Portugal não dá respostas a vários níveis e a emigração acaba por tornar-se permanente”, depreende.
Outro estudo, este compilado no Atlas da Emigração Portuguesa elaborado por especialistas do Observatório da Emigração, revelou, também em 2024, que 850 mil pessoas entre os 15 e os 39 anos nascidas em Portugal deixaram o país, nas últimas décadas, em busca de soluções profissionais. Ou seja, 30% dos jovens e mais de dois terços do total de novos emigrantes. “Nas duas últimas décadas, a nova emigração portuguesa, basicamente europeia, cresceu a par com a evolução do mercado de trabalho nacional, por sua vez muito afetado pelas dinâmicas de estagnação económica, primeiro, e de crise, depois”, apontam as conclusões do documento.
“A saída de jovens quadros contribui para a diminuição da população ativa, o que tem impacto direto na demografia”, sublinha, por sua vez, a socióloga e demógrafa Maria João Valente Rosa. “Além disso, a saída de pessoas em idade fértil também tem influência nos nascimentos futuros que não terão lugar em Portugal”, adverte.
Cérebros que saem zangados
Para a também docente na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, estão somados argumentos crescentes para a desaceleração da taxa de crescimento da população. A fuga de cérebros ajuda a incrementar uma tendência sem fim à vista. “A vitalidade do país encontra-se em causa, com sérios impactos no dinamismo económico que agravam a nossa já frágil situação, quando comparada com a restante Europa. Porque o que diferencia uma sociedade é o conhecimento, não a força física. E nós estamos a perdê-lo”, destaca. “Precisamos desses cérebros, que eles contribuam com o seu saber. Reter pessoas qualificadas faz toda a diferença”, acredita.
Maria João Valente Rosa não tem dúvidas de que os jovens que saem o fazem porque “não encontram respostas em Portugal para as suas expectativas naturais, o que torna essas saídas zangadas”. Em tempos de mudança de paradigmas, “é necessário fazer uma reflexão séria” e perceber como será possível segurar talentos nas mais diversas áreas. “A incerteza é grande e a competição fortíssima, o que torna difícil agarrar esses casos. Além disso, os preços da habitação e os baixos salários ajudam a que se torne difícil a alguém, até aos 29 anos, autonomizar-se, sair de casa dos pais e tornar-se independente”, sustenta. Razões que ajudam a explicar a nova emigração e a percebê-la. Mas não a contorná-la, segundo a especialista. “Do ponto de vista social, é uma situação que nos deve obrigar a refletir e a perceber para onde estamos a caminhar, de forma a corrigirmos rapidamente a trajetória.”
“Melhor país do Mundo para os outros”
Quem não contribui para que tal trajetória seja desviada dos sinais da última década é Rui Guerreiro. Com 25 anos, trabalha há cerca de um em Sydney, na longínqua Austrália. Viu-se sem trabalho em Portugal pouco depois de concluir o curso de Engenharia Civil na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto. Decidiu viajar. “Aproveitei para visitar uma prima em Sydney, também ela engenheira, e deu-se a coincidência de a empresa dela estar a necessitar de alguém da área. Como já tinha intenções de trabalhar fora do meu país, aceitei”, rebobina. “Nunca imaginei era que o meu primeiro emprego fora fosse tão longe”, suspira. Mas não pestanejou. Vinha de uma experiência complicada em Lisboa, onde teve de suportar renda de casa elevada enquanto se manteve por lá em funções laborais. “Desde que deixei essa experiência que estava bem ciente que queria sair. Aliás, os meus pais sempre me educaram nesse sentido, orientando-me no caminho de que as oportunidades estariam fora de Portugal”, conta. Ainda respondeu a uma entrevista para um cargo no Dubai, veio depois a Austrália. “Inicialmente foi complicado”, admite. “Mas a adaptação acabou por tornar-se fácil. Trabalho numa empresa de consultores de campos desportivos onde o ambiente é descontraído e os colegas são fantásticos”, elogia. Um contraponto à regra geral em Sydney, “cidade fechada onde não é fácil fazer amizades”.
Já trocou de casa três vezes, vive integrado numa pequena família. A Portugal regressou apenas numa ocasião – “Não é fácil pela duração da viagem” – e espera fazê-lo novamente ainda este mês. As saudades estão lá, “a palavra nunca fez tanto sentido como agora”. E a sentença, também. “Vivo num país ótimo, mas encontro-me muito longe de casa”, desabafa. Ainda assim, a volta definitiva está fora de questão. “Portugal é o melhor país do Mundo para viver, embora o seja apenas para os outros. Tem tudo, é excelente, simplesmente não possui condições financeiras para reter quem quer algo da vida. Para mais, sempre quis explorar outras geografias e realidades, por isso não me imagino a retornar”, prevê.
Também não quer permanecer na Austrália em definitivo. O olhar já explora outras possibilidades. “Provavelmente, o Médio Oriente, talvez a Arábia Saudita, um país em alta na área da construção civil. Ou então o Norte da Europa, em particular a Escandinávia.” Portugal, esse, só mesmo de passagem numas curtas férias.
Planos, férias e certezas
Se, para quem nasceu em Portugal entre o final da década de 1990 e o início dos anos 2000, a ideia de trabalhar noutras paragens é assimilada com naturalidade, quem é de fora e escolheu o país para tirar um curso universitário segue igual linha de raciocínio na hora de encarar o futuro. Aconteceu isso a Júlia Leal, luso-brasileira de 25 anos que com 18 decidiu deixar Porto Alegre, capital do estado brasileiro do Rio Grande do Sul, e partir rumo a Évora, onde tirou a licenciatura em Medicina Veterinária. Um passo num plano muito particular que há muito traçara. “Comecei no Brasil, sempre quis estudar em Portugal e depois trabalhar noutro país da Europa”, relata. “Portugal é excelente, mas os salários não são os melhores para quem deseja algo sustentável para si”, adiciona.
Aprendeu castelhano e italiano, fez Erasmus em Itália, mas foi em Basileia, cidade suíça de língua alemã, que começou a aventura internacional fora de Portugal. “Trabalho numa padaria e numa clínica veterinária”, descreve. Os dias pouco lhe sobram em descanso, ainda assim não se dá como vencida. “Quero ficar aqui, aprender melhor o alemão, sentir-me totalmente integrada num ambiente em que todos são diferentes”, antecipa. “Saio dos trabalhos sempre feliz. Sou emigrante, sim, mas sinto-me recompensada.” Tranquilidade tê-la-á assim que o calendário e os afazeres profissionais o permitirem. Até lá, “vou aproveitar o que a vida me está a dar”.
Júlia sabe que não virá a Portugal, nem irá ao Brasil, nas próximas semanas. Essas semanas em que todos os caminhos parecem apontar à terra-mãe para quem trabalha fora dela. Os emigrantes são novos, as férias as de sempre. Em agosto. Porque a saudade tem mês marcado para o reencontro. Seja qual for a geração que a carregue.