Há uma história quase poética por trás das sapatilhas Veja

A marca que nasceu em França é uma ode à sustentabilidade, mesmo que não faça disso bandeira. E vai muito além da moda. O fabrico concentrava-se todo no Brasil até há pouco tempo, quando se estreou na Europa com uma unidade de produção em Portugal. E sim, o nome é português.

Estamos na capital francesa, nos escritórios de Paris da Veja, sede da marca, num edifício histórico, todo recuperado. Lá dentro, a traça de varandins brancos ao longo de vários andares mantém-se tal e qual era noutros tempos, a luz cai do céu de uma gigante claraboia triangular que ilumina todo o espaço, a mobília é em segunda mão, a carpete no chão é feita de plástico reciclado, há sapatilhas em exposição, um estúdio para fotos, um café e restaurante com comida vegan e vegetariana, aulas de yoga a decorrer. A atmosfera é jovem, são cerca de 300 pessoas a trabalhar aqui, todas de sapatilhas Veja nos pés, numa espécie de cultura de fidelidade que é quase palpável. E que vai muito além da moda dos sneakers que trazem cravado o V na lateral, que também em Portugal se entranhou nas tendências. É antes uma cultura de respeito pelo Planeta e pelos trabalhadores, de justiça económica e de ecologia. A marca, que já tem uma unidade de produção no nosso país (lá iremos), é sustentável do princípio ao fim, embora não goste de se autoproclamar assim, e talvez por isso poucos consumidores a conheçam como tal.

Nada que atormente Sébastien Kopp, co-fundador: “Não dizemos aos outros para mudarem nem nos comparamos com outras marcas, optamos por colocar toda a nossa energia em mudarmos nós”. Até porque, é ele quem diz, a sustentabilidade não é uma tendência. “Ainda há muito para fazer, muito para melhorar, tanto a nível da produção como do tempo de vida dos produtos e de uma reciclagem positiva. Mas nós, enquanto consumidores, também temos de perceber que precisamos de parar de comprar coisas novas a toda a hora, especialmente roupas e sapatilhas.”

(Foto: Antoine Huot)

Pode parecer paradoxal uma afirmação destas vinda do fundador de uma marca de sapatilhas, mas há que ir à raiz de tudo para o entendermos. Esta história começa com dois jovens amigos franceses, Sébastien Kopp e François-Ghislain Morillion, ambos licenciados em Economia, que criaram uma ONG e viajaram por todo o Mundo, indo ao terreno para analisar unidades de produção e tentar melhorá-las, no sentido de reduzir a poluição e melhorar as condições sociais das populações locais. Uma vez, na China, conta Marie Gadalla, responsável pelas relações com a imprensa da Veja, “depararam-se com um espaço muito pequeno, de cerca de 25 metros quadrados, onde encontraram pessoas a dormir e no meio desse espaço havia um buraco, que servia de casa de banho”.

Foi aí que perceberam que “são estas pessoas que fazem a roupa que vestimos todos os dias” e que as empresas que os enviavam para o terreno não estavam dispostas a agir. Tinham 25 anos quando decidiram fazer diferente, criar a própria marca, de sapatilhas, claro está, por uma razão. As sapatilhas são um símbolo da sua geração, nos anos 1990 estavam por todo o lado, saltaram dos campos desportivos para as ruas, Sébastien e Ghislain usavam-nas todos os dias. Além de serem um produto interessante a nível económico, já que, genericamente, neste mercado, segundo Marie, “70% do custo das sapatilhas vai para publicidade e comunicação e só 30% vai para a produção e para a matéria-prima”.

Quiseram reinventar, passo a passo, o produto. Abdicaram da publicidade para investir tudo na produção e nas matérias-primas. E assim nasceu a Veja, em 2005, uma marca feita de convicções, que os dois fundadores nunca mais largaram. Começaram, então, uma longa viagem. Enfiaram-se num avião em direção ao Brasil, foram à Amazónia, onde reuniram com seringueiros que vivem na floresta brasileira e que usam uma técnica ancestral para extrair o látex de árvores, que depois é transformado em borracha natural, usado nas solas das sapatilhas. Com uma ressalva, a Veja paga aos seringueiros duas a quatro vezes mais por quilo do que o preço de mercado (e garante-lhes contratos longos, o que lhes dá segurança no futuro).

(FOTO: VINCENT DESAILLY)

É também do Brasil, do Nordeste, e do Peru, que vem o algodão orgânico, sem pesticidas, sem fertilizantes, sem químicos, produzido por agricultores, usado na lona e nos atacadores. “Que é mais do que orgânico, é agroecológico”, sublinha Marie Gadalla. “Ou seja, não é uma monocultura, não são quilómetros e quilómetros de plantas, que, como sabemos, destrói o solo.” Em todos os casos, Sébastien e Ghislain foram diretamente à fonte, à comunidade, aos produtores, aos seringueiros, aos agricultores, com quem criaram uma relação que se estendeu no tempo.

(Foto: Arthur Wollenweber)

Os dois amigos encontraram ainda uma fábrica, em Porto Alegre, para a montagem das sapatilhas, que respeita os direitos dos trabalhadores, ao nível do horário de trabalho e do salário. E a última paragem desta viagem, há vinte anos, foi nos subúrbios de Paris, na Log’Ins, empresa focada na inclusão social – que ajuda desde pessoas com deficiência a ex-reclusos a ingressarem no mercado de trabalho -, com quem fizeram uma parceria para a vertente logística da marca. Com isto, desde o início, a Veja já ajudou cerca de 700 pessoas a integrarem-se no mercado de trabalho.

Mas vamos pôr os pés no presente. Hoje, as sapatilhas incorporam também materiais inovadores, couro do sul do Brasil e que é resultado dos restos da indústria alimentar, ou materiais criados a partir de garrafas de plástico recolhidas das ruas. “A Veja não inventou nada, simplesmente se conectou com produtores e projetos para, no final, construir algo diferente. Não somos perfeitos, mas fazemos o que podemos”, aponta Marie.

Façamos uma pausa nesta história para voltar à Rue du Faubourg Poissonnière, em Paris, à sede da marca. Nos escritórios, a eletricidade é verde, há tantas mulheres como homens a trabalhar, tudo é publicado no site da empresa, a transparência é palavra de ordem. Um dos modelos em exposição no amplo hall de entrada é o Volley, o primeiro de sempre, inspirado nas sapatilhas de voleibol brasileiras dos anos 1970, que está agora de regresso às lojas. Em letras luminosas brancas, mas discretas, lê-se “VEJA”. O nome é português, pela ligação que os fundadores criaram com o Brasil, tanto assim é que os dois falam fluentemente a língua de Camões. Foi escolhido, segundo Kopp, exatamente pelo seu significado. “Ver ou olhar para os sneakers e para a forma como são feitos, por quem, em que condições, com que materiais. A Veja tem um pé na indústria da moda e outro na transparência.”

Sébastien Kopp e François-Ghislain na Amazónia (Foto: Camilla Coutinho)

Portugal na rota e reparar sapatilhas antigas

Viajemos, agora, até Portugal. Em 2022, a Veja, que até então tinha toda a produção sediada no outro lado do Atlântico, começou a produzir também na Europa. E sim, estão a fazê-lo cá, em Felgueiras, na cinquentenária fábrica de calçado Samba. A ideia foi criar uma unidade de produção local para o mercado europeu, a que chamaram de Aegean Project. A pergunta é óbvia: porquê Portugal? “Já dominamos a língua e Portugal é um grande hub reconhecido a nível da produção de calçado. É na Europa e é perto de França”, responde Sébastien Kopp. A escolha da Samba também é simples. “Escolhemos um parceiro que está alinhado com os standards da Veja, que respeita as boas práticas sociais e ambientais.”

Guardaram segredo no princípio, não gostam de anunciar antes de lançarem os produtos para o Mundo. Começaram por produzir 100 pares para testar, de um modelo apenas, o V-90. Correu bem e eis que deram a notícia, já este ano. Mais de 80 mil pares de Veja já saíram do chão de fábrica português, agora está a ser produzido o segundo modelo cá, será lançado na Primavera.

(FOTO: VINCENT DESAILLY)

Por falar em números, vamos a contas. Desde o início de tudo, a marca já vendeu 14 milhões de pares de sapatilhas, mesmo sem nunca investir em publicidade (ao fim de duas décadas as regras do jogo mantêm-se). Curiosamente, só há cinco anos abriram a primeira loja Veja, agora têm oito, duas em Paris, uma em Bordéus, uma em Berlim, uma em Madrid, uma em Londres e duas em Nova Iorque. Para além de estarem disponíveis em três mil retalhistas pelo Mundo, em 120 países.

Mas a história continua, e o futuro já tomou conta do presente. As ideias fermentam e não param. Em 2020, a marca lançou um projeto de reparação de calçado, até porque a sapatilha mais ecológica que podemos ter é a que já estamos a usar. “E se deixássemos de comprar sapatilhas novas?” É este o mote. Contrataram sapateiros, abriram o primeiro cantinho dedicado à reparação de calçado na loja de Bordéus. Desde então, já abriram oito estações de sapateiro, chamam-lhes assim, quase todas dentro de lojas da Veja, aonde se pode levar qualquer par de sapatilhas velhas, independentemente da marca, para estender o seu tempo de vida. Já mais de 30 mil pares foram reparados nestes espaços. E se não for possível reparar, a Veja também recolhe para reciclagem (este é o próximo passo, reciclar sapatilhas, há uma caixa nos escritórios de Paris cheia de pares velhos, estão ainda à procura da fórmula perfeita).

Em fevereiro, a marca ainda abriu a General Store em Paris, um templo de reparação de sapatilhas, a primeira loja exclusivamente dedicada a reparações. Além de sapateiros, aqui há uma costureira, para reparar peças de roupa, sapatilhas de coleções anteriores à venda, ou até pares com pequenos defeitos vendidos a preços mais baixos, livros, meias, atacadores, produtos para cuidar do calçado.

Sébastien Kopp esteve, recentemente, em Portugal. Veio falar na Web Summit, em Lisboa. Contar um caminho que ultrapassa largamente as fronteiras da moda. E, claro, trouxe a história calçada nos pés.