O bispo de Angra nomeou, em setembro, uma ecónoma, Carla Bretão, economista, católica, filha da terra, apaixonada pelos Açores. Antes, em 2022, Teresa Rodrigues, que estava dedicada à consultoria de empresas na área económica, dona de uma fé inabalável, tinha assumido o cargo na Guarda. Duas leigas. Parece haver sinais de mudança na Igreja, mas em Portugal a transformação ainda vai lenta.
Estávamos em setembro, há coisa de um mês, quando Carla Bretão foi nomeada por D. Armando Domingues, bispo de Angra, para gerir os bens dessa diocese insular. Uma mulher no cargo, pela primeira vez nos Açores. Ainda para mais uma leiga e a assumir a gestão financeira. Habitualmente este trabalho é confiado a um padre, como acontece na maioria das dioceses em Portugal. Mas Angra não foi pioneira, foi a segunda no país a nomear para ecónoma uma mulher, depois da Guarda – e lá iremos, até à Guarda. Na verdade, a nomeação não apanhou Carla, 50 anos, economista, de surpresa. Já há mais de duas décadas que trabalhava no gabinete técnico criado para cuidar das finanças da diocese, tinha ajudado a fazê-lo nascer no início dos anos 2000, “aí sim, a diocese de Angra foi pioneira”. Recuemos, pois, na linha do tempo.
Carla Bretão tinha acabado de desfazer as malas, estava de volta à Terceira, depois de quatro anos em Coimbra a estudar Economia. Sempre quis regressar a Angra do Heroísmo, para estranheza dos colegas de faculdade, que ainda olhavam para os Açores como “um lugar longínquo e muito fechado”. Sabia o que queria, voltar, contribuir para a vida comunitária na Terceira, a ilha festiva. É agarrada à terra, à família, ao povo açoriano. “Sempre fui muito ativa na procura de melhores condições para a minha ilha. Ainda fui deputada durante seis anos pelo PSD, na Assembleia Regional. Mas não em exclusividade, já trabalhava na diocese e continuei a trabalhar.” Nunca quis largar a diocese, numa paixão desmedida que até hoje não deixou.
Naquele regresso à ilha, Carla ainda trabalhou na Câmara do Comércio de Angra do Heroísmo, estava a dar os primeiros passos como economista, até que foi abordada pela diocese. Não foi um acaso, teve toda a vida um caminho ligado à Igreja, tinha sido catequista, leitora, acólita. “A diocese queria criar o gabinete técnico. Na altura estava grávida do meu primeiro filho, desconhecia como é que uma diocese funcionava em termos financeiros, fiz muitas perguntas.” E já lá vão mais de 20 anos. Montou-se a equipa, duas economistas e um técnico de contabilidade que ainda hoje se mantêm.
“Começámos a criar uma estratégia de sustentabilidade, a dar pareceres sobre possíveis investimentos. Sempre em comunicação com o bispo e com o padre ecónomo, já passei por três bispos, por quatro ecónomos.” Gerir uma instituição sem fins lucrativos é necessariamente diferente de gerir uma empresa, é preciso encontrar o equilíbrio entre a gestão e a missão pastoral. “Daí ser tão desafiante. Nada se faz sem dinheiro, por mais críticas que se façam à Igreja Católica. As igrejas, o seu património, os seus recursos humanos não se mantêm se não existirem meios financeiros. A formação, a catequese, a liturgia, há uma série de serviços que têm de ser sustentados. E há viagens, porque aqui são nove ilhas, edifícios para manter, água, luz, gás, uma série de encargos.” Foi esse, afinal, o trabalho do gabinete técnico, o de reinventar as fontes de financiamento.
É conhecida a crise que a Igreja está a viver, o número de fiéis a cair a pique, de contribuições também. A diocese de Angra e Ilhas dos Açores antecipou o cenário antes de o assunto ser tema, preparou-se, criou este gabinete técnico ainda no início do século. O tempo passou, Carla foi nomeada ecónoma adjunta em 2021, agora ecónoma. “Era algo natural. Até porque, desde o princípio, os sacerdotes viram o nosso trabalho como uma mais-valia, sempre nos deram muito valor. Claro que há resistências, a Igreja não é diferente da sociedade, mas diria que senti mais dificuldade de afirmação enquanto mulher na política do que aqui. A nossa voz sempre foi muito ouvida para as decisões.” E o bispo de Angra, D. Armando Domingues, “trouxe a visão de investir os leigos de maiores responsabilidades, de novos poderes”. Também nomeou, pela primeira vez, uma diretora do gabinete de comunicação, que é porta-voz. A par disso, é uma mulher leiga quem lidera o Conselho Pastoral Diocesano, um órgão de consulta. Parece haver sinais de mudança na Igreja Católica, na senda do que tem sido o apelo de incluir todos do Papa Francisco, que no próprio Vaticano tem vindo a nomear mulheres para cargos superiores. A diretora dos Museus do Vaticano é uma mulher, a secretária-geral do Governatorato do Estado da Cidade do Vaticano também. “Ouvi uma vez o Papa dizer que, de cada vez que nomeia uma mulher para um cargo, as coisas melhoram. E isso marcou-me”, lembra Carla. Mas a transformação por cá ainda caminha vagarosa.
No gabinete técnico de Angra, que a economista agora lidera, o trabalho acumula-se. Rentabilizar o património é a principal aposta, que é como quem diz os edifícios que são pertença da diocese, muitas vezes doados por padres ou leigos. Alguns foram reabilitados e colocados no mercado de habitação a preços condignos, para famílias. Há um em Coimbra que é residência universitária, 14 quartos, arrendados sobretudo a estudantes açorianos a preços acessíveis. Um exemplo diferente é o do centro pastoral em Ponta Delgada, na ilha de S. Miguel, que no inverno serve para a realização de serviços pastorais, de retiros, e no verão é alojamento local, para turistas (é daí que vem a fatia do rendimento para a manutenção do edifício). Há ainda o Palácio Santa Catarina, na Terceira, que estava em ruínas, agora transformado em hotel, abriu há um ano. “Estava muito degradado e recuperámos o edifício com recurso a fundos comunitários. A própria população ficou feliz por vê-lo reabilitado, era uma dor de alma ver o estado em que estava.”
Carla Bretão está a dar continuidade ao trabalho de duas décadas, agora tem um mandato de cinco anos pela frente, é a primeira leiga a assumir o cargo de ecónoma em Angra. O que também permite libertar os padres da gestão financeira e dar-lhes mais tempo para escutar os fiéis, para os atender. “Alguns padres têm uma veia de gestor, é verdade, mas, se há leigos com essa especialidade técnica, faz todo o sentido que se aproveitem essas competências”, sustenta a ecónoma.
Sinais de mudança, as mulheres, os leigos
O processo sinodal que o Papa Francisco iniciou em 2021, com auscultação de fiéis por todo o Mundo, não só padres e bispos, todos, para repensar a Igreja, discutir caminhos para o futuro, tem refletido muito sobre o papel da mulher e dos leigos. “E há, de facto, alguns sinais de mudança no que tem a ver com o papel das mulheres no desempenho de cargos elevados.” Marta Lobo, professora de História da Universidade do Minho, que estuda história social e história religiosa da Época Moderna, defende que há dois fatores a contribuir para isso. Por um lado, os tempos de modernidade em que nos inserimos. Por outro, a menor ingressão de homens na Igreja Católica. “Mas estamos perante uma instituição secular, com tradições e práticas que se perpetuaram durante séculos, e que tinha gestão masculina a todos os níveis. O que também tem a ver com a sociedade em que cresceu, a Igreja está inserida na sociedade, em que a mulher era minimizada e os homens é que garantiam a gestão e governação. Dito isto, temos de ser realistas, a Igreja sempre mostrou dificuldade na mudança.”
Porém, e olhando para trás, há exceções no que ao papel da mulher diz respeito. É o caso dos conventos femininos, que sempre foram geridos pelas mulheres que lá viviam. Os próprios leigos, historicamente, “também sempre estiveram dentro da Igreja, a ocupar funções, ainda que não em lugares de poder de grande representação, o exemplo disso são as confrarias, muitas vezes geridas exclusivamente por leigos”. “São células muito importantes dentro da Igreja, que existiam em todas as paróquias, agregadoras de fiéis e que tiveram um papel importantíssimo durante a Época Moderna. Organizavam procissões, peditórios, chamavam as pessoas à igreja, geriam património.”
Estes casos são a exceção, não a regra, e resumem-se à pequena escala. À grande escala “a renovação está-se a fazer agora, ainda que muito lentamente”. “E muito se deve ao Papa Francisco, que tem dado sinais fortes de que a Igreja tem de ser mais integradora. Porque, na verdade, a Igreja são os leigos. Claro que é composta por pessoas consagradas, por bispos, cardeais, mas é maioritariamente composta por leigos. E só tem a ganhar se der mais força aos leigos.” Isso já se está a ver, aponta Marta Lobo, “nas paróquias, os párocos vão mostrando uma perspetiva renovadora”. Mas sim, haverá sempre resistências, como também houve na sociedade. “Se pensarmos no caso das mulheres, elas alcançaram os lugares que têm hoje com lutas muito fortes, ao longo dos séculos XIX e XX, por direitos que já damos quase como adquiridos.” A Igreja chegou tarde ao debate, mas chegou, e é preciso combater a ideia bafienta “de que só os homens têm visibilidade pública e só os homens têm competências para determinadas áreas”, porque “a presença feminina é imprescindível em cargos intermédios e em cargos altos”. E ainda há muito a fazer. “O facto de só existirem duas ecónomas em Portugal é o reflexo da forma como a Igreja ainda vê as mulheres. É uma insignificância que já não se vê na sociedade civil. Mas a transformação ocorrerá necessariamente.”
Para D. José Ornelas, bispo de Leiria-Fátima e presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, “é uma grande alegria ver duas ecónomas em Portugal”. Está por estes dias no Vaticano, no encontro sinodal da Igreja Católica, que continua a olhar para si própria, a discutir a sua sobrevivência, com temas quentes (e eternos) como as mulheres em papéis de liderança (e o seu possível acesso ao diaconato), o acolhimento de divorciados e de católicos LGBTQIA+, o celibato dos padres. “Este é o Sínodo dos bispos, mas estão cá mulheres em grande número, a dirigir e coordenar grupos de trabalho. Uma das vice-presidentes do Sínodo é uma mulher”, salienta, enquanto recorda que, ainda enquanto bispo de Setúbal, ele próprio nomeou uma mulher, formada em Direito Canónico e Teologia, para o cargo de chanceler.
Apesar disso, D. José Ornelas reconhece que a mudança por cá está muito no princípio. “É uma realidade que, em Portugal, cargos mais altos atribuídos a mulheres são recentes. Mas se olharmos para o Mundo inteiro, quantas mulheres estão a gerir setores da Igreja importantíssimos? Na educação católica, elas foram determinantes para formar gerações inteiras. E hoje já assumem outros lugares de grande responsabilidade, o que é uma riqueza enorme. Têm revelado uma competência bem maior do que os seus parceiros homens, porque a maioria dos homens de responsabilidade na Igreja são padres, que não têm formação em áreas específicas como a gestão”, afirma. Para logo acrescentar: “Serviços fundamentais como a administração dos bens não têm de ser competência dos padres, fomos concentrando tudo demasiado na figura do padre e não tem de ser assim. Aliás, assusta-me se continuarmos a ter o padre a encarregar-se de tudo”.
O bispo tem uma certeza, é que a Igreja precisa de todos, “dessa complementaridade”. “Precisamos de pessoas capazes e com visões diferentes. Os casos destas duas ecónomas são exemplos que têm de se multiplicar.” É certo que dentro da instituição há vozes contra, tensões entre conservadores e progressistas, D. José Ornelas sabe-o, mas acredita piamente que, hoje, “ninguém com bom senso se pode opor a esta mudança”. “A ideia de que as mulheres são catequistas e os homens tratam das contas não pode continuar. Até porque há mais mulheres na Igreja do que homens. E elas sempre tiveram um papel muito ativo.” No Sínodo que está a decorrer até ao final do mês, diz, “também há muita discussão em torno da legislação da Igreja Católica que tem de ser mudada, para haver renovação, para se construir uma Igreja feita de todos e aumentar a participação”. Os resultados, esses, só se verão no fim.
Guarda, a pioneira
Voltemos a Portugal. Se viajarmos até à Guarda, encontramos a primeira diocese do país a nomear para ecónoma uma mulher. Foi no final de 2022. Teresa Lopes Jacinto Rodrigues, 62 anos, foi surpreendida pelo convite do bispo D. Manuel Felício. “Estranhei, claro, porque não é normal uma leiga ecónoma. ‘Mas acha que tenho competência?’, perguntei eu. Ele disse-me que sim.” Teresa é economista e contabilista certificada, dedicou toda a vida à gestão de empresas. “O meu último trabalho foi como gestora na Caixa Geral de Depósitos da Guarda, na segmentação de empresas. A minha vida foi sempre analisar situações económico-financeiras de empresas, potenciar créditos”, conta. Contudo, os dias vão além do trabalho, Teresa é crente, católica praticante e convicta. Foi e ainda é catequista. Teve sempre uma relação próxima com a comunidade religiosa, herança de família, a fé vem do berço. Tanto que, na adolescência, quando foi de Celorico da Beira para a Guarda estudar para a escola secundária, ficou “alojada num lar católico e praticante”. “Além disso, o meu marido foi seminarista, houve sempre uma ligação natural na família.”
Nos últimos anos, depois de entrar na pré-reforma, Teresa estava a trabalhar em casa como consultora de empresas na área económica. Até lhe bater à porta o convite inesperado. “O sacerdote que era o ecónomo da diocese saiu e D. Manuel lembrou-se logo de mim. Já me conhecia, sabia da minha relação com o mundo religioso, com a fé. Em bom rigor, não basta ter competência técnica para ser ecónoma, é preciso também ser uma pessoa com alguma idoneidade e ele viu isso em mim. Não sabia bem o que ia fazer, mas aceitei. Gosto de desafios. E gerir é gerir.” Não conhecia as dinâmicas da diocese, teve de se enturmar, olhar para as finanças da sede episcopal da Guarda, fazer uma lista de todo o património que existia. Está no seu gabinete, na Cúria, computador à frente, um amontoado de papelada e uma dezena, com contas de madeira, pousada na secretária. Desde que assumiu o cargo, anda numa luta constante para tentar revitalizar património que está parado e devoluto, um deles no centro da Guarda. “O objetivo é recuperar algum edificado para habitação e assim transformar em rendimento.” Conta menos de dois anos de trabalho, uma equipa pequena, o desafio é grande, “os fiéis e os respetivos contributos são cada vez menos”.
Até ver, ser mulher numa instituição ainda profundamente masculina não tem sido um problema. “Pelo contrário, viram em mim uma profissionalização e uma resposta mais rápida para algumas questões técnicas. Até é uma forma de acabar com o estigma de que para trabalhar numa diocese é preciso ser pároco ou diácono. Também estou aqui num espírito de missão.” Pela fé em Deus, por querer contribuir. “Era muito mais fácil, para mim, ficar em casa.” Teresa desdobra-se em trabalhos, continua a ser consultora de empresas, reserva as noites para isso, ainda é presidente do Conselho de Administração de uma fundação que acolhe crianças e jovens em risco, tutelada pelo bispo da Guarda, que lhe confiou também essa tarefa. Anda sempre num corrupio.
Sente uma pontada de orgulho por ter sido a primeira ecónoma do país, não o esconde. E D. Manuel Felício não poupa os elogios, “é a mulher certa no lugar certo”. O bispo que deu o primeiro passo ao nomear uma mulher ecónoma é de curtas palavras e homem de convicções. “É óbvio que os leigos podem dar um contributo maior à Igreja e sou muito favorável a um maior envolvimento das mulheres. Neste caso fui o primeiro, mas podia ter sido o último. O que está em causa é a realização de um serviço com competência e dignidade. A Teresa tem competências técnicas que os padres não têm. E alia isso a um sentido de identificação com o projeto da diocese.”
Da mesma forma que a sociedade avança, considera D. Manuel, também a Igreja tem de avançar. “Só não quer dizer que seja ao sabor da sociedade. A Igreja tem o seu próprio ritmo.” Como diz Teresa, “não podemos querer que tudo mude de um momento para o outro”. Isso só virá com o tempo.