Jorge Manuel Lopes

Fred Everything: sensibilidade e sabedoria


Crítica musical, por Jorge Manuel Lopes.

Frédéric Blais, aliás Fred Everything, é um compositor e DJ franco-canadiano com três décadas de música eletrónica, em especial nas viagens fascinantes e encorpadas que acontecem quando se sabe cuidar do deep house. Vai em cinco álbuns de material original publicados desde 2000, mais um ror de máxis, remisturas e mix CD, essa espécie virtualmente extinta. O mais recente longa-duração, “Love, care, kindness & hope” (Lazy Days Recordings), começou a ganhar corpo no período mais hardcore da pandemia, em Montreal. Conta com várias vozes convidadas e assinala também a sua estreia como cantor.

Esta é uma experiência imersiva mas diversa e nunca muito afastada da ideia de canção. Há vocalizações como um mantra em “Hope is on the horizon”, uma só frase repetida por Model D e Solina, em seu redor a flauta e o saxofone de Finn Peters a acentuarem um tom místico, de princípio de catarse coletiva (omnipresente no álbum, Peters traz uma dinâmica e coloração essenciais aos temas). “Love, care…” é físico, sem dúvida físico, quando as comportas rítmicas se abrem: o deep house manifesta-se em todo o esplendor emocional e acertado rigor geométrico em “Evening ghost”, urbano, viagem por um cosmos interior iluminado pelas primeiras estrelas da noite.

O álbum segue por um crescendo dramático e narrativo desenhado com sensibilidade, sofisticação, sabedoria, subtileza. Robert Owens, lenda absoluta do house, dá voz a “Never”. “Something for you” constrói pontes entre o broken beat, o afrobeat, o jazz de fusão e o jazz contemporâneo londrino. Viaja-se amiúde para os arredores de Ibiza, como no caso da arrebatadora “Breathe”, que deixa assentar um estado de beatitude com ajuda decisiva do falsete do canto de James Alexander Bright e do vento que faz soprar as cordas cuidadas por Pete Whitefield. “A good day” (é mesmo) entrega a sua visão de uma rave, batidas quebradas, efeitos disco e otimismo nervoso no horizonte. Fred Everything é um arquiteto excecional de ambientes e narrativas sónicas dispostas em camadas luxuriantes.