Valter Hugo Mãe

Feira do Livro


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Passarei a tarde na Feira do Livro de Lisboa para autógrafos e conversas rápidas com leitores. Nunca sei bem o que fazer para merecer que tanta gente me encontre para uma dedicatória num livro. Tenho sempre a convicção de que deveria haver uma oferta qualquer, uma espécie de recordação que virasse símbolo do encontro e da alegria de nos vermos assim. O carinho dos desconhecidos é uma fortuna sem fim. Acusa-se nas mais diversas situações, torna-se a chave de soluções sem fim que trazem à minha vida sorte.

Os leitores, como uma multidão dispersa, cuidam de muito do que me poderia perturbar, prejudicar, enganar. Salvam-me de perigos, facilitam-me diante de empecilhos, trazem felicidade a instantes de pesar e dúvida. Por várias vezes foram os perfeitos desconhecidos que, por me haverem lido, me livraram de burlas e agressões, levaram a casa, me disseram como pôr o pé.

Não há muito como explicar o que acontece entre um autor e seus leitores. O investimento na leitura de um livro implica a intimidade e, por mais que saibamos ou suspeitemos da mentira que nos é contada, a imaginação é suficiente ternura, é suficiente verdade para que se possa construir uma relação de admirável profundidade.

Habituo-me a ver as pessoas como amigas de quem nunca soube. Amigos que, até então, estiveram apenas em estatísticas, abreviados pela pragmática dos números, mas que imediatamente se levantam dessa abstracção e se fazem gente com sua inteireza de sonhos e receios, sua inteireza de esplendor e incompletudes. Gente de verdade que importa aos meus livros tanto quanto importo eu.

A Feira do Livro de Lisboa, nossa gigante festa de quem lê, acontece-me sempre debaixo de um calor insuportável e desafia os resistentes. Ainda assim, é sobretudo tempo de belas surpresas. Ao fim de uma tarde de autógrafos, guardo com carinho os postais que me escrevem, os papelinhos onde me deixam frases, desenhos, indicações para o que não posso perder na cidade e no Mundo. Trazem-me bolos e peças de roupa, artesanatos vários que espalham, depois, beleza pela minha casa. Nunca volto igual. Volto invariavelmente admirado com o poder dos livros. De como inventam entre mim e essa generosa multidão uma cidade misturada de emoções onde vivemos, afinal, uns com os outros carregados de laços, carregados de ternuras, de facto.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)