Sónia Cartaxeiro é designer gráfica, tem uma doença rara, os primeiros sintomas manifestaram-se quando tinha cinco anos. Os seus rins deixaram de funcionar, faz hemodiálise das onze da noite às cinco da manhã três vezes por semana. Pedro Pina trata da gestão de documentos, sai do trabalho e vai à clínica, a mesma há 24 anos, três dias por semana. Ligados às máquinas pela saúde, ativos por vontade e gosto.
Às segundas, quartas e sextas-feiras, Sónia Cartaxeiro sai de casa pouco depois das dez da noite, após mais um dia de trabalho e das rotinas habituais, para fazer hemodiálise das 23 horas às cinco da manhã. Os seus rins começaram a falhar quando ainda era criança, esteve na mesa das operações para dois transplantes que não correram como era esperado. A sua história é longa.
Há seis anos que faz hemodiálise no período noturno durante seis horas, ainda consegue dormir uma a duas horas quando chega a casa, antes de ir trabalhar, e acordar ao lado do marido. Costuma pensar e verbalizar por experiência própria: “Temos dois caminhos para atravessar, ou escolhemos aquele em que cedemos à doença ou aquele em que continuamos, em que aproveitamos a vida”. Escolheu o segundo.
Sónia tem 44 anos, é designer, responsável pela parte gráfica e visual da APIR – Associação Portuguesa de Insuficientes Renais, em Lisboa. E dá uma ajuda nos rastreios. Não é por acaso. Sabe o que é viver sem os rins a funcionar, entende angústias e frustrações. Faz uma vida normal, dentro do possível, com cuidado na alimentação. “A dieta é bastante rigorosa, os líquidos são todos contados.”
Quando Sónia sai de casa, Pedro Pina termina mais uma sessão de hemodiálise numa clínica no norte. A sua história também é longa e inesperada. Tinha 18 anos quando descobriu que os seus rins não estavam bem. A má notícia chegou nos resultados dos exames do atestado de robustez que teve de fazer para ser nadador-salvador. Rapaz de desporto, bastante ativo, não estava nada à espera. “Fiz uma série de análises e havia vários valores que não estavam bem. Foi um choque, ninguém na família tem este problema, não há antecedentes”, conta. Começou a ser seguido no Hospital de Santo António, no Porto, chegou a ser internado repentinamente porque a sua tensão arterial subiu muito, começou a fazer diálise.
Pedro, agora com 46 anos, faz hemodiálise três vezes por semana, às segundas, quartas e sextas-feiras, depois do trabalho até às dez da noite numa clínica de São João da Madeira, não muito longe de Vale de Cambra, onde mora. “Sempre fiz em horário pós-laboral, sempre trabalhei.”
Ainda tentou no período mais noturno, durante a noite profunda, hemodiálise mais comprida de seis a oito horas, menos agressiva, mas não se deu bem, não se adaptou. “Não conseguia dormir aquelas horas todas, tinha medo de me mexer com as agulhas nos braços”, recorda. Chegou a experimentar diálise em casa, a clínica deu-lhe toda a preparação, fez o treino para perceber como a máquina funciona e para entender os sinais quando alguma coisa não está bem. Tentou meio ano, o processo exigia o dobro de atenção, preparação da máquina, desinfeção dos materiais antes e depois. Voltou ao ambiente mais protegido, mais confortável, mais seguro da Centrodial, a clínica de São João da Madeira onde está desde que começou a hemodiálise, há 24 anos. “Tem tudo do mais inovador que há, máquinas, filtros.” Quando vai de férias, a clínica certifica-se que há outro centro onde possa fazer o tratamento, já aconteceu dentro e fora do país, no Algarve, em Tomar, em Londres.
A vida dos doentes renais não é fácil, tem várias voltas. José Miguel Correia é presidente da APIR – Associação Portuguesa de Insuficientes Renais e está por dentro da realidade. “Há poucas clínicas de hemodiálise em Portugal que tenham o tratamento no período noturno, em que as pessoas possam estar lá, descansar, e no dia seguinte estejam na sua atividade profissional”, diz. “Sendo um tratamento mais prolongado, menos agressivo, não exige o esforço das quatro horas, as pessoas saem com melhor disposição, dá possibilidade que as pessoas continuem a sua vida ativa”, acrescenta. Por isso, sublinha, “é importante que as empresas e os prestadores de serviços desta área tenham noção de que a hemodiálise noturna é benéfica”.
“Cada corpo é um corpo”
Sónia nasceu com uma doença rara, síndrome de Alport, distúrbio hereditário que afeta a função renal. O pai tem uma mutação, a mãe tem outra, ela herdou a junção das duas. Os primeiros sinais surgiram quando tinha cinco anos. Até então, nada à vista, nenhum sintoma, nenhuma queixa. Depois veio o cansaço, a fraqueza, a anemia, sangue na urina. A doença manifestava-se, exames, consultas, conclusões e decisões médicas, foi encaminhada para nefrologia do Hospital de Santa Maria, em Lisboa. “Entrei lá e passou a ser a minha segunda casa”, assinala.
Muitos internamentos durante a infância e a adolescência, a tensão arterial aumentava, colesterol alto, anemias, a doença avançava. “Fazia tratamentos para tentar ajudar a repor o que estava a perder.” Proteínas, sobretudo. Aos 19 anos, saiu da pediatria, já não cabia nas camas, passou para a ala dos adultos. Tentava-se tudo para que os rins funcionassem, dias e dias no hospital, fazia diálise peritoneal em casa, ligado à máquina durante a noite.
Os rins estavam a 15%, Sónia na faculdade a estudar Design Gráfico, apesar do cansaço. Aos 22 anos, fez o primeiro transplante. “Estava a planear um transplante com os meus pais, ligaram-me do hospital que tinham um rim para mim.” Nem pestanejou. Um ano e meio depois, numa consulta de rotina, detetam que algo não está bem, era uma rejeição aguda, tardia. Esteve internada dois meses, em tratamentos, voltou à diálise peritoneal. “Três anos foi o tempo que durou o transplante.”
O de Pedro durou o mesmo tempo. “Fiz um transplante que durou cerca de três anos, só funcionou em pleno oito meses, acabou por degradar-se, fiquei um bocado amedrontado.” Não tentou mais nenhum transplante, arrumou o assunto. “Cada corpo é um corpo”, justifica.
Sónia fez um segundo transplante, quatro anos depois do primeiro, nesse intervalo teve de esperar para fazer uma espécie de “reset” ao organismo. Rim do pai, dador vivo, correu bem, recuperou bem. “Tive dois anos muito bons, em que me senti quase saudável”, realça. Trabalhava, namorava, casou-se em 2008. Durante a lua de mel, sentiu algumas náuseas, quando voltou, foi ao hospital, consulta, análises. “Achávamos que era uma constipação.” Não era. Nesse mesmo dia, pouco depois de sair do Santa Maria, recebeu uma chamada, tinha de voltar imediatamente para o hospital. O seu corpo estava a rejeitar o rim, ficou internada três meses. “Foi mesmo grave, o meu sistema imunitário entrou em parafuso, o rim parou, deixei de urinar, tive de iniciar a hemodiálise.” Durante três anos, das seis às dez da noite, fez diálise numa clínica.
Entretanto, mais más notícias: um cancro da tiroide em 2013, depois um cancro nos intestinos. “Tive de deixar a diálise peritoneal.” Falou com um enfermeiro que lhe falou da hemodiálise durante a noite. “Mais longa, não puxa tanto por nós, isso agradou-me.” Sónia decidiu experimentar. “As primeiras semanas foram difíceis, não conseguia dormir nas primeiras noites com as luzes dos monitores, o barulho das máquinas, o enfermeiro a andar de um lado para o outro.” Não demorou a habituar-se, a adaptar-se. Dois meses depois e conseguia adormecer sem problemas. “Habituei-me ao som e às luzes.”
Pedro trabalha na gestão de documentos na Arsopi, indústria de metalurgia, em Vale de Cambra. A compreensão é total, tem lugar de estacionamento, ajusta o horário quando tem hemodiálise depois do trabalho, cumprindo as 40 horas semanais. “A empresa sempre foi espetacular.”
Anda de muletas, tem problemas ósseos, os tratamentos de diálise atingiram-lhe outros pontos do corpo. “Os rins foram fragilizando os ossos”, revela. Teve uma queda aparatosa, ficou dobrado sobre os seus calcanhares, fraturou os membros inferiores, andou em cadeira de rodas, fez fisioterapia, foi recuperando. “Com muito esforço, voltei a trabalhar.” Tem uma incapacidade a 87%. E quer continuar ativo. “Sinto-me bem a trabalhar.” Conduz, faz uma vida praticamente normal, garante, na alimentação tem bastante cuidado. “A principal regra é evitar o excesso de líquidos.” Além disso, evita alimentos com potássio e fósforo.
Portugal é o país europeu com maior incidência de doença renal crónica, tem cerca de 20 mil doentes no estádio mais avançado da patologia, 13 mil dos quais fazem hemodiálise, seis mil fizeram transplante, à volta de mil fazem diálise peritoneal. E o futuro não é nada animador. Segundo José Miguel Correia, há estudos que indicam que a insuficiência renal crónica será a quinta causa de morte em 2040. Daqui a menos de duas décadas.