Valter Hugo Mãe

Fazer a alegria


Impressionam-me as pessoas que fazem alegria a partir de quase nada. Gente cuja vida parece não ter generosidade alguma mas que, ainda assim, manifesta uma gratidão sincera pela oportunidade de existir. Sempre me penitencio por ser rabugento, indisposto, carente ou sonhador, porque muito disso é só falta de noção do privilégio que tenho, da sorte grande que me sai pela coisa simples de poder o que posso. E tanta gente não pode nada.

Este ano vai acabar e espero que feche um ciclo tristíssimo da minha vida. Quero muito que acabe e me deixe só a dignidade de lembrar quem perdi com uma saudade que seja mais e mais festiva. A saudade cresce para ser uma festa em redor de quem amamos. Porque a dor tem de descer para serviços mínimos e nós temos de usar o que existiu como alegria repartida pela eternidade. Nossas pessoas eternas têm de significar alegria porque jamais aceitarei que o meu pai ou o meu sobrinho, a Isabel ou o meu irmão signifiquem tristeza. A morte não lhes pode fazer tão grande injustiça.

Assim, farei alegria. Ainda que use a tristeza, farei a mais limpa alegria. Vem o Natal, a família recolhe-se como se regressada à essência, e por menos que sobre é fundamental a bravura de alegrar, exactamente porque quem nos falta não pode ser ferido de tristeza. A saudade tem de vir à festa e ser presença que celebra.

Eu, por adultez complexa, já quis detestar o Natal. Pelos amuos e pelas sensibilidades extremadas, por ter de andar aos presentes como se fosse tudo de devorar, cansa-me. Mas a adultez não pode ser um modo de amargar sem fim. Não vou ser um velho amargo, zangado com tudo, a barafustar acerca de um tempo que se perdeu. Quero ser do tempo que ainda há e prefiro pensar no essencial: a folia das crianças, a saúde de todos, e pinhões. Alguns pinhões fazem mais fortuna do que dinheiro e ouro.

Vem o Natal, a família recolhe-se como se regressada à essência, e por menos que sobre é fundamental a bravura de alegrar, exactamente porque quem nos falta não pode ser ferido de tristeza. A saudade tem de vir à festa e ser presença que celebra.

As minhas tias sempre me diziam para rezar. Reza ao teu irmão, ao teu pai, aos teus avós. E eu complicava tudo a pensar em como vale ou não vale a pena rezar aos que partiram. Mas hoje sei que a alegria é a coisa que mais reza. Se Deus existir, nossa alegria haverá de ser aquilo que mais lhe reza. Por ser sinal de gratidão. Eu quero passar o Natal grato. Porque ainda há família e a memória da família. Porque ainda há mais tempo para contar acerca de tudo quanto fizemos, fazemos, amámos e continuamos a amar.

Devo gostar muito desta época do ano porque, mesmo com dúvidas, invariavelmente me dá vontade de começar um livro, pensar no que lindo de inventar coisas com a mesma emoção criança com que procurava respostas quando era jovem e tinha tudo por fazer. A alegria, na verdade, já vinha feita só nessa ansiedade. A alegria já estava nessa expectativa que tremia meu corpo inteiro quando me sentava quieto auscultando ideias para um livro que, naquele tempo, não escrevera, não tinha garantia nenhuma de saber escrever. Era o futuro todo um enigma. E esse enigma motivava ao esforço.

Pois, quero estar sempre diante do enigma. E sempre capaz da motivação. Para que a cada instante se faça alegria e essa seja minha mais abundante retribuição aos que não cessam de me buscar, aos que não cessam de me amar.