Extintas as chamas, a Madeira ainda ferve

Helder Santos/AFP

Miguel Albuquerque, presidente do Governo Regional, continua debaixo de fogo à conta da gestão do incêndio que tomou a ilha durante 13 dias. Um olhar sobre o “ecossistema político” distinto que se vive na região, a comunicação pouco feliz, as falhas operacionais. E sobre as questões, ambientais e não só, que se colocam num futuro próximo.

Quem caísse de paraquedas em São Vicente (costa norte da ilha da Madeira), no último domingo, e ouvisse Miguel Albuquerque, presidente do Governo Regional, falar aos jornalistas, ficaria tentado a assumir que nada de particularmente inquietante ou polémico se passou na região nos últimos tempos. “Podem averiguar o que quiserem, as decisões tomadas foram em função daquilo que era a experiência da Proteção Civil e do que são os ditames técnicos de ataque a um incêndio desta natureza.” Já dias antes, quando o fogo lavrava pelo oitavo dia consecutivo, o dirigente social-democrata tinha ensaiado o mesmo discurso, com redobrada afoiteza. “A estratégia de contenção que adotámos até agora foi um sucesso”, defendeu então, justificando-se com o facto de não ter havido mortes a registar nem habitações consumidas pelo fogo. A realidade, porém, conta uma história bem mais tortuosa do que esta narrativa de sucesso em toda a linha que o líder do Governo Regional insiste em apregoar. Entre as críticas dos especialistas em incêndios e proteção civil, o coro de ataques da oposição, o descontentamento popular e os alertas sobre os múltiplos impactos das chamas, a Madeira continua uma fogueira a céu aberto – agora, em sentido metafórico.

Vamos ao início. A 14 de agosto, na sequência do lançamento de foguetes (conforme concluiu a PJ na última quinta-feira), um incêndio rural deflagrou nas serras do município da Ribeira Brava. Dois dias depois, não só continuava ativo, como já tinha chegado ao concelho de Câmara de Lobos – mais tarde, haveria de alastrar também a Ponta do Sol e a Santana. Nesse mesmo dia, uma notícia da Lusa , que seria desmentida por Albuquerque mais de 24 horas depois, citava “fonte governamental” para dar conta de que o Governo da República tinha oferecido apoio, mas este tinha sido recusado. A razão? Os meios no terreno “eram suficientes”. Porém, o fogo continuava imparável. Tanto que, a 18 de agosto, o Executivo madeirense viu-se obrigado a declarar a situação de calamidade na Ribeira Brava e em Câmara de Lobos. Nisto, as evacuações da população das zonas em risco sucedem-se, os reparos dos especialistas face à gestão do incêndio também, as críticas da oposição ganham fôlego (o próprio Manuel António Correia, que foi adversário de Albuquerque nas eleições internas do PSD/Madeira, acusa o Governo de falta de organização e “sentido de Estado”), chegam, por fim, dezenas de operacionais da Força Operacional Conjunta, vindos do continente.

Ao fim de uma semana, havia já perto de cinco mil hectares ardidos (ao todo, foram mais de 5100), ativava-se por fim o Mecanismo Europeu de Proteção Civil, para requerer o envio de dois aviões Canadair, Albuquerque dava que falar por causa de uma foto a apanhar sol em Porto Santo em plena crise, o PS pedia a instauração de uma comissão de inquérito, para compor o ramalhete o Sindicato dos Jornalistas denunciava pressões e restrições. Ao cabo de 11 dias, o fogo era por fim dado como controlado – e ao fim de 13, foi totalmente extinto. Mas a contestação está longe de acalmar. A nível político, sobretudo.

Vejamos. Albuquerque e Pedro Ramos, secretário regional da Saúde e Proteção Civil, preparam-se para ser ouvidos na Assembleia Legislativa da Madeira, na sequência de um pedido de audição parlamente urgente feito pelo Juntos Pelo Povo. O CDS-PP quer uma comissão independente para apurar a origem do fogo e avaliar o combate. Paira a ameaça de uma moção de censura. E ainda há a tal comissão de inquérito prometida pelo PS. Como um cerco que se aperta a cada dia. A tudo isto, Albuquerque tem respondido como se pôde ler no início deste texto. À defesa vincada da tese de que tudo correu bem, junta ainda contra-ataques violentos a todos os reparos que lhe são feitos. Ora chama abutres políticos aos que o criticam, ora garante que não aceita lições de ninguém, ora se enfurece com supostos “achismos” infundados.

Teresa Ruel, madeirense, cientista política e investigadora da Universidade de Lisboa (ISCSP), com vasto trabalho feito ao nível das regiões autónomas, lembra, a propósito, que a “longevidade tem vícios que são visíveis” (o PSD está no poder na Madeira há 48 anos e só nas eleições deste ano perdeu uma maioria absoluta que durava há 43). “Aquilo que vemos na Madeira é um sistema político completamente cristalizado na sua estrutura.” E isso é percetível nas “decisões operacionais geridas com orientação política” – “os próprios briefings eram dados pelos políticos”, assinala -, nas tentativas de “limitar a informação”, até numa certa resistência ao apoio do continente. “O presidente da Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais [AGIF] disse que em 2020 a Madeira recusou um convite para integrar um plano nacional de gestão integrada [que levaria a uma agilização mais célere de meios do continente para o arquipélago] porque ‘a autonomia não pode ser posta em causa’. Mas isto não é uma questão de autonomia, é uma resistência ao conhecimento, que também tem que ver com esta ausência de alternância política. Seria de pensar que, sendo este um Governo minoritário, poderia haver outra dinâmica, mas não.” De resto, se é certo que “há responsabilidades que têm de ser apuradas”, e até tem havido várias iniciativas políticas nesse sentido, Teresa não esconde um certo ceticismo face à sua eficácia: “Resta saber se se traduzirão em algo”.

Albuquerque em modo anos 1990

Luís António Santos, docente de Ciências da Comunicação na Universidade do Minho e mestre em Política Internacional, acrescenta que há falhas notórias nas intervenções públicas dos vários responsáveis envolvidos. “Além de uma certa descoordenação de mensagens, as primeiras intervenções são de quase total insensibilidade, com Miguel Albuquerque muito focado na oposição, a responder de forma belicosa, e a usar um tom muito áspero com os jornalistas. Na primeira conferência de Imprensa que dá, diz algo como: ‘De que é que vocês estão a falar? Não morreram pessoas, não arderam casas, não foram danificadas infraestruturas’. A dada altura fala e dá a sensação de que estamos de volta a certos políticos dos anos 1990, exuberantes, populistas, que exibem com gáudio o descontrolo das emoções. Quando por cá [no continente], nos jornais e nas televisões, já se falava, e bem, com especialistas em flora e em gestão de florestas, e se tentava perceber os riscos que corria uma parte muito singular da floresta madeirense, Albuquerque continuava a falar apenas de danos materiais.” Para o professor universitário, tudo isto denota “algum descuido ao nível da gestão da comunicação, que pode ter raízes num estilo de gestão característico do PSD/Madeira” e num ecossistema político muito próprio que se vive na região, à conta de décadas de maioria absoluta.

Além da gestão operacional do incêndio, Miguel Albuquerque, líder do Governo Regional, tem dado que falar pelo tom corrosivo com que reage às críticas. E o Sindicato de Jornalistas denunciou “um clima de pressões e restrições” (Hélder Santos/Aspress)

Há outros sinais disso. A independência jornalística, por exemplo, é ainda rara e penosa. Como atrás se dizia, o próprio Sindicato dos Jornalistas denunciou um “clima de pressões e restrições” aos profissionais que estavam a acompanhar os fogos. As limitações sentem-se até no contacto com a população, ainda relutante em vocalizar críticas ao Executivo. Um jornalista local, que pede para não ser identificado, garante que não se recorda de ver os madeirenses tão zangados. “As pessoas sentem-se desrespeitadas e gozadas. O facto de Albuquerque estar de férias na ilha de Porto Santo enquanto tudo isto acontecia, e de depois ainda ter sido visto na praia no Funchal, enquanto as serras continuavam a arder, caiu muito mal, os madeirenses ficaram muito sentidos. Sentem-se abandonados e desprezados. Por outro lado, continuam a ter medo da mudança.” Só que, lá está, passar das conversas de café às críticas assumidas, ainda é, para quase todos, uma linha vermelha. Sobretudo pelo tal medo de represálias. “Muitos são funcionários públicos. Outros são funcionários de empresas do setor privado que trabalham para o público”, explica o mesmo jornalista.

E a nível operacional, que ilações há a tirar? Para Joaquim Sande Silva, docente da Escola Superior Agrária de Coimbra e especialista em engenharia florestal, a primeira é bastante óbvia. “O que aconteceu, tal como tinha acontecido em 2016 e em 2010, prova que alguma coisa não funciona bem na prevenção e no combate aos fogos rurais. Recentemente, ouvi um colega dizer que a Madeira estava 20 anos atrasada nesta questão, em relação ao continente. Eu não sei se são 20 anos, mas diria o seguinte: nós no continente estamos mal nesta matéria, designadamente comparando com o trabalho que outros países têm feito. A Madeira está ainda pior.” Destaca ainda a importância de ter equipas especializadas no terreno, dedicadas exclusivamente à prevenção e com capacidade para atuar de forma manual.

Quanto a Duarte Caldeira, presidente do Centro de Estudos e Intervenção em Proteção Civil, aponta o dedo a uma “desvalorização do incêndio durante a fase inicial”, percetível, por exemplo, pelo tempo que o Governo levou a ativar o Plano Regional de Emergência e Proteção Civil, numa região “que tem o histórico de incêndios florestais que conhecemos”. “Depois, é importante perceber se de facto nos primeiros dias a Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil tomou a iniciativa de disponibilizar meios de apoio e se, num primeiro momento, esta foi recusada. Se assim foi, penso que o Governo Regional, ou o representante regional da Proteção Civil na Madeira, agiu mal, subestimou o fogo e desvalorizou o histórico.” Duarte Caldeira deixa um outro reparo: “O que vimos na Madeira foi a apropriação do decisor político de uma comunicação que deve ser eminentemente técnica e operacional, até para valorizar o sistema de proteção civil e reforçar a confiança da população no sistema.” O especialista lembra ainda o trabalho que continua por fazer. “Ficou claro que a Madeira é o paradigma do disparate do ponto de vista do ordenamento do território, da ausência de ordenamento florestal, da falta de sensibilização da população para o risco. Todos vimos nas imagens televisivas casas completamente atulhadas de mato em seu redor, o que numa orografia daquelas representa um risco elevadíssimo. Esta é uma terceira dimensão do problema: a necessidade absoluta de um trabalho a montante.”

Também Helena Freitas, bióloga de renome, professora catedrática e investigadora da Universidade de Coimbra na área da biodiversidade, assume preocupações. Desde logo, a de salvaguardar a segurança da população. “Sabemos que um dos riscos dos incêndios, a posteriori, são as enxurradas, porque a vegetação tem a virtude de garantir a sustentabilidade do solo. É fundamental fazer uma avaliação das zonas mais expostas e fazer terraços que ajudem a sustentar o solo.” Até porque, na Madeira, ainda ninguém esqueceu o ano de 2010, em que as enxurradas ditaram a morte de 51 pessoas. E vários especialistas têm vindo a avisar que a janela de intervenção para evitar que uma catástrofe semelhante se repita daqui a uns meses é manifestamente curta.

Outra grande preocupação, prossegue Helena Freitas, é o risco de as áreas ardidas serem tomadas por espécies exóticas invasoras. “Vão rapidamente aproveitar esta vulnerabilidade e a disponibilidade de nutrientes nos solos. O problema é que, se isso acontecer, formam-se monoculturas e é gerada muita biomassa, que não permite que outras espécies se regenerem.” O desfecho é óbvio: não haverá regeneração de vegetação nativa e a perda da biodiversidade é colossal. De resto, a bióloga não tem dúvidas de que um incêndio como o que ocorreu na Madeira deixa margas inegáveis em todo o ecossistema, mas reforça a necessidade de se fazer uma avaliação detalhada, para se perceber a real extensão dos danos. Sugere até um programa de longo prazo para o estudo da biodiversidade na Madeira, e na Laurissilva em particular, a floresta madeirense que foi considerada pela UNESCO como Património da Humanidade. Para já, o tempo é ainda de discussão política. A Madeira continua a ferver.