São jovens e atuam em várias frentes e coletivos ao mesmo tempo. Pela justiça climática, pelos direitos LGBT, no combate ao racismo, no apoio a imigrantes, por habitação acessível. Não conseguem dissociar as lutas, estão todas ligadas. E têm uma capacidade de mobilização e organização como nunca.
Não é difícil para Lou Loução perceber de onde vêm as ganas da luta, o inconformismo com o Mundo, a revolta de quem cresceu num mar de crises. “Eu era uma criança negra, pobre, criada por uma mãe solteira, a vê-la sofrer muito com a precariedade e com a crise (de 2008), e isso afetou-me.” Toda a vida sofreu de racismo, foi vítima de bullying nos tempos da escola, não só pela sua cor, também por ser “mais gorda” e até pelas questões de género. De tantos dedos apontados, forçou-se a questionar. “Nasci rapaz, mas nunca fui um rapaz típico, nunca estive dentro dos padrões, e as pessoas apontavam-me coisas sobre as quais eu própria nunca tinha refletido.” Atravessou o deserto de se descobrir, assume-se hoje como uma pessoa não-binária, usa pronomes femininos. Lou tem 21 anos, é ativista e uma história agarrada à pele que é o embrião de tudo o resto. “Tudo isto me fez procurar lutar contra a discriminação e envolvi-me em várias frentes, porque todas as lutas estão interligadas. Eu sou o reflexo disso, de como as coisas não são dissociáveis. Sou uma pessoa LGBT, racializada, pobre, não consigo dissociar as causas.”
Este é um fenómeno que tem vindo a ganhar palco nos últimos anos, muito à boleia da Geração Z, de ativistas que se envolvem em diferentes coletivos, que atuam em várias causas, o clima, o feminismo, a luta LGBT, o combate ao racismo, os protestos pela habitação, pelos Direitos Humanos. Na verdade, o ativismo foi sempre sinónimo de cultura jovem, a história internacional é reflexo disso, desde os protestos do Maio de 1968 em França, ao Movimento dos Direitos Civis dos negros nos Estados Unidos, até à Primavera Árabe no final dos anos 1990, os jovens têm um historial de instigar a mudança social. A Geração Z (que não está sozinha, a luta estende-se a outras gerações) é só o mais recente capítulo numa enciclopédia que conta décadas de páginas. Só que há diferenças assinaláveis: o ativismo agora faz-se em muitas frentes e há uma capacidade de mobilização e organização como nunca.
Lou tinha 15 anos quando começou a despertar para tudo isto, esteve nos primórdios do movimento da Greve Climática Estudantil em Portugal, que surge lá fora pelas mãos de Greta Thunberg. Fez parte da criação do núcleo de Lisboa, quis ter voz pela justiça climática. Viu na política uma forma de luta, fez-se militante do Bloco de Esquerda. Ainda criou, com amigos, o primeiro clube dentro de uma escola para alunos LGBT, na Escola Secundária da Ramada, em Odivelas, “o foco era que a sexualidade fosse um tema livre”. Aliás, o movimento que tem a bandeira do arco-íris como ícone é-lhe caro. Hoje, está na organização da Marcha do Orgulho LGBTI+ em Lisboa, ajuda na parte logística e criativa. “Muito do meu ativismo tem sido nesta área, porque é o que me tem afetado mais. Costumo dizer que, primeiro, as pessoas veem a minha cor de pele, depois veem a minha sexualidade. E sinto muito a homofobia, a transfobia, porque é algo que impacta ainda mais os outros do que ser negra.” Também faz parte da associação SOS Racismo, entrou ainda adolescente motivada pelo choque que sentiu com os casos de homicídio de George Floyd, nos Estados Unidos, ou de Bruno Candé, em Portugal. “Comecei a perceber que queria ser mais ativa na luta antirracista e que ela é também a luta anti-homofobia e tantas outras coisas”, conta.
Não se fecha numa caixa, ainda se junta a manifestações de outros movimentos. Pela habitação, pró-Palestina e tem apoiado a causa da imigração depois de contactar com imigrantes a viver em tendas em Arroios. “Não é por querer assumir todas as lutas e ser mais vista, é porque não consigo não empatizar com isto. Sinto que, hoje, apesar de haver uma fatia da minha geração a alinhar-se com as ideias da extrema-direita, com o ódio, há uma maior consciência social, de perceber que há pessoas que sofrem mais do que outras, que há discriminações para as quais temos de olhar.”
Talvez o caldeirão de desafios em que a sua geração já nasceu mergulhada também tenha dedo no seu ativismo, a crise económica, as alterações climáticas, uma pandemia, a crise na habitação, as desigualdades sociais a crescerem. “Olho para os meus irmãos mais velhos, na geração dos 40 anos, e eles cresceram num boom económico, enquanto nós crescemos sem ver um futuro, a saber que as alterações climáticas vão ter consequências, com casas a preços inacessíveis, salários que não nos permitem viver em Lisboa ou no Porto.” Lou mora com a mãe, que acumula vários trabalhos precários, na periferia da capital. Está a acabar a licenciatura em Cinema, é trabalhadora-estudante. Como é que sobra tempo para o ativismo? “Temos de fazer escolhas. Às vezes, é mais importante ir a um exame do que a uma manifestação. Noutros casos, é mais importante organizar uma manifestação do que ir a um exame. Como dizíamos no início da Greve Climática Estudantil, não interessa ir às aulas se não vamos ter Planeta onde viver, se não temos futuro.”
Anabela Carvalho, professora e investigadora na Universidade do Minho, que se tem dedicado a estudar movimentos cívicos de jovens ligados à causa climática, através do projeto de investigação JustFutures, lembra-se que, em 2015, numa manifestação que aconteceu a seguir à cimeira onde foi assinado o Acordo de Paris, “os jovens já se referiam a esta interseccionalidade, ao facto de muitas destas questões, as alterações climáticas, as questões de género, o racismo, a imigração, estarem conectadas”. “Alguns diziam claramente que é tudo a mesma luta, que isto tem de ser visto de forma integrada e que não se podem fazer mudanças significativas em cada uma destas frentes se não considerarmos todas as suas ramificações”, detalha a investigadora, que percebeu aí que “há muitos ativistas a atuar em toda uma diversidade de causas e coletivos”. Porque todas as lutas, justifica, “estão ligadas à forma como o Mundo se organizou, em países com mais poder e outros em situação de dependência, à nossa realidade económica, política e social”.
Hoje, os diferentes coletivos estão em contacto, vão aprendendo uns com os outros, influenciam-se até a nível internacional. E a mobilização a que assistimos dos jovens, sem medo de erguer a voz, não é difícil de explicar. “Atualmente, não só há uma consciência muito maior, como há uma diversidade grande de crises, que se cruzam e intersetam.” Sendo certo que, a partir de 2019, o movimento da greve às aulas da sueca Greta Thunberg, neste caso no ativismo climático, promoveu uma grande identificação e uma onda mundial que também cá chegou. “Conduziu a esta ideia de que os jovens têm de ser ouvidos, de ser considerados na decisão política.” E, embora Portugal “não tenha uma tradição muito forte de mobilização cívica, isso tem vindo claramente a mudar, o que é um sinal positivo”.
Humor, um palco mediático e a luta
Entre os ativistas que abraçam várias lutas, que saem à rua para gritar de pulmões cheios por tantas causas, também há figuras mediáticas. “Acho que os direitos humanos são uma coisa mais ou menos decente pela qual devemos bater-nos.” A frase é de Diogo Faro, 37 anos, que até nem gosta muito de vestir a camisola de ativista, embora reconheça que o é, sobretudo no combate à crise na habitação. “Mas sou humorista em primeiro lugar.” Feito o preâmbulo, é inequívoco, seja nas redes sociais, em espetáculos de comédia ou em podcasts, Faro, que ficou conhecido como “Sensivelmente Idiota”, há muito que usa o palco da fama para dar voz a várias causas. No casaco, traz frases estampadas, “O povo unido jamais será vencido”, “Só há liberdade a sério quando houver a paz, o pão, habitação, saúde e educação”. No corpo, tatuagens, a pele é tela de um cravo ou da palavra inquietação. Mas é preciso rebobinar esta história para entender como aqui chegou. “Creio que foi há seis ou sete anos que comecei a ganhar mais consciência, aquilo que muita gente chama pejorativamente de ‘woke’. Comecei a falar com amigas, a ler livros sobre estes temas e a perceber o meu lugar de privilégio, de homem branco, cisgénero, heterossexual, de classe média, que nunca foi discriminado.”
A revolta com as desigualdades começou a mexer. Como não descola o que é enquanto cidadão do que é enquanto humorista, o seu humor começou a tornar-se mais e mais político, mais e mais interventivo – lá iremos. Mas quis fazer mais do que isso, fundou um grupo com amigos que se chamava “Não é normal” e que corria escolas, faculdades, empresas para falar de feminismo, de assédio, de violência de género. Fez-se ativista. “Ir a manifestações começou a ser uma coisa normal, a marcha LGBT, a do 8 de Março, manifestações antirracistas, pelo clima”, enumera. Mas porquê tantas frentes? “Porque é tudo a mesma coisa. É as pessoas viverem melhor e não apenas uma minoria de privilegiados. Está tudo ligado. Sabemos que as alterações climáticas já estão a afetar de forma extremamente desigual as pessoas pobres. Que uma pessoa trans tem muito mais dificuldade em aceder a um emprego. Claro que não posso estar ativo em tudo, mas tento ser um aliado.” E nisto de estar sensível para tantas lutas, o mundo digital também tem o seu quê de motor. “A Internet tem muita coisa má, mas tem muita coisa boa. Há vinte anos, nunca íamos saber que a Cláudia Simões tinha sido brutalmente agredida por um polícia. Como não íamos saber de outras injustiças. Há muita informação, chega a ser avassalador. E faz-me querer lutar, toda a gente merece viver com respeito, sem ser agredida, ter uma casa.”
Soma mais de 130 mil seguidores no Instagram, 160 mil no Facebook, mais uns milhares no X, antigo Twitter. “É uma plataforma que tenho e sinto que é uma obrigação cívica e artística não usar as minhas redes só para falar do Sporting ou do hambúrguer que comi ontem. O mínimo que posso fazer é juntar-me às lutas.” Sabe bem que um post nas redes sociais não cura os males do Mundo, mas acredita na força do coletivo, “e se formos muitos a fazê-lo, a divulgar, vai haver mais gente nas manifestações e vai chamar mais a atenção do Governo”. Em palco, o humor também ganhou nova forma, no mais recente solo de stand-up, “Processo de humanização em curso”, fala do direito à habitação, de como foi despejado da sua anterior casa no pico da pandemia (quando estava sem rendimentos), de racismo, de feminismo, de sexualidade. Com piada, claro está. “É humor político muito, muito vincado.” Ainda lançou um livro com o mesmo nome.
Mas a habitação é o seu grande campo de batalha, também por ser uma dor que sentiu na pele. Criou o coletivo “Casa é um Direito”, envolve sete pessoas, quase todas ligadas à área da comunicação. Nasceu assim uma página nas redes sociais, onde denunciam preços “surreais de quartos ou garagens”, e logo caíram dezenas de testemunhos na caixa de mensagens. Nessa altura, Faro fez um apelo para conseguir advogados e psicólogos pro bono, juntou vários contactos para dar a mão a quem lhe pede ajuda. “As injustiças mexem muito comigo. Revolta-me muito que 1% da população mundial tenha a maior fatia da riqueza, que as mulheres continuem a ser agredidas, que as pessoas LGBT sejam discriminadas. Tento canalizar isso para o humor e para o ativismo.” E não, garante, não ganha nada com isto. “Só perco, na verdade. Mas ganhei dormir de consciência tranquila.”
Mais mobilizados, mais organizados
Segundo Joana Cabral, professora e investigadora na Universidade Lusófona que se debruça sobre questões de discriminação e desigualdade, além de psicóloga, ativista e dirigente no SOS Racismo, esta interseccionalidade “não é, apesar de tudo, inédita e nova, mas tornou-se mais evidente agora”. “Em Portugal, em particular, porque o movimento ativista foi amadurecendo, o que abriu espaço para que as lutas e os coletivos começassem a articular-se melhor.” Por outro lado, também está ligada às circunstâncias atuais, ao contexto político e económico em que vivemos, “à falha do sistema num espetro muito largo de direitos humanos, sociais, económicos”.
Os jovens, “que são muito sensíveis à injustiça”, aponta a investigadora, perceberam que todo o seu futuro está condicionado, a começar pelo clima, “pelo fim de uma vida sustentável”, e a acabar “nos empregos altamente precários e mal pagos, o que os impede de saírem de casa dos pais”. “E está tudo ligado. As alterações climáticas, a crise na habitação, o facto de não conseguirem um emprego digno, de pessoas negras serem agredidas, de pessoas LGBT serem discriminadas, tudo se resume à falência do sistema capitalista, à desigualdade das sociedades. Isso fez a reivindicação aumentar e tornou a luta muito interseccional.” Embora já tenha havido na História outros momentos de cruzamento de movimentos civis, “hoje as redes sociais e a visibilidade que trazem leva isto para outro patamar, toda a gente tem um telemóvel no bolso para denunciar, e faz com que esteja muito mais na ordem do dia”.
Ao mesmo tempo, os coletivos também são maiores, mais mobilizados e mais organizados – a contrastar com o anarquismo de outras décadas. Usam a rua, com as manifestações, as redes sociais, redigem petições, tentam exercer pressão junto de organismos internacionais, alguns promovem ações que interferem com a ordem pública, como o bloqueio de estradas. Reúnem online, munem-se de informação, têm membros que dominam as questões técnicas, científicas, jurídicas, legislativas (as novas gerações são muito mais instruídas). Desde jovens advogados a académicos ou elementos formados em Comunicação para delinear a estratégia. “Não parece, porque são estruturas que aparentam ser altamente profissionalizadas, mas na grande maioria dos casos é trabalho voluntário, de pessoas que também são elas próprias ativistas”, destaca Joana Cabral. Um caso óbvio é o de Mariana Gomes, ativista climática e estudante de Direito, que já deu apoio a mais de 500 ativistas pelo clima, criou as estruturas legais do movimento Climáximo, fundou a sua própria associação, “Último Recurso”, e processou o Estado por falhar na aplicação da Lei de Bases do Clima.
Há uma evidência, todos estes temas entraram na agenda política internacional, “só que na prática não se veem medidas concretas”. Em Portugal, até se desenharam planos, nomeadamente de luta contra o racismo, “mas que nunca foi concretizado”. “O ativismo pode ser emocionalmente muito desgastante, porque há a frustração, a indignação. A mudança leva tempo e ter mais gente hoje sempre ajuda a dar maior sustentabilidade à vida destes coletivos.”
Às vezes, Andreia Galvão desanima, mas desistir ainda não lhe passou pela cabeça. Tem 24 anos, o cabelo em cachos apertados perfeitos, é atriz. Não consegue precisar o momento em que se tornou ativista, talvez já tenha nascido com ela. Só sabe que foi na escola, a participar em atividades como o Parlamento dos Jovens que chegou a levá-la ao Parlamento Europeu, ou a assumir a presidência da associação de estudantes. “Comecei a querer estar mais envolvida nestas questões, a participar em manifestações e protestos.” O ativismo climático foi a porta de entrada, aderiu ao movimento da Greve Climática Estudantil – de que já não faz parte – quando ainda só estavam cerca de cinco pessoas num grupo de WhatsApp. Foi a Madrid, a Glasgow, participar em manifestações às portas das cimeiras sobre alterações climáticas que reúnem dirigentes mundiais. Viagens que lhe saíram do bolso. Do ativismo climático veio tudo o resto. Nasceu em Portugal, mas é filha de imigrantes, de Cabo Verde, e quando surgiu o movimento Black Lives Matter envolveu-se em manifestações. Mais tarde entrou no movimento Vida Justa. “Porque junta a luta por direitos sociais, por acessibilidade, nomeadamente transportes, para quem vive em contextos periféricos, à luta antirracista, por habitação, à questão da imigração, é muito transversal.”
Está a terminar o mestrado em Teatro, em Lisboa, já trabalha como atriz – coincidência ou não, participa agora numa peça que se chama “Justiça Climática” que vai ser apresentada no Teatro São Luiz, em outubro -, o que lhe rouba a disponibilidade de outros tempos. Nem por isso esmorece, vai ajudando no que pode, quando pode. “Em todos estes movimentos, as pessoas acabam por contribuir com os seus talentos ou formação. Seja em áreas mais artísticas, seja na comunicação, nas redes sociais. No Vida Justa, temos inclusive membros que são juristas a fazer trabalho de terreno, em bairros, por exemplo a dar ferramentas a pessoas que são despejadas, porque havia muitas ilegalidades e as pessoas não se sabem defender.”
No meio de uma batalha tantas vezes frustrante, o mundo digital, não tem dúvidas, é uma ferramenta poderosa para terem voz, para conseguirem penetrar na agenda mediática. “Os media convencionais não teriam interesse em ouvir os jovens se não houvesse demonstração de que nas redes sociais temos muitas pessoas a acompanhar. E os governos a mesma coisa.” Só que Andreia tem a noção clara de que isso nem sempre é sinónimo de mudanças. “Vimos milhares de pessoas nas ruas a exigir medidas eficazes para baixar o custo das casas e, apesar de ter sido criado um programa, isso não se verificou. No clima, embora os países estejam a assumir compromissos, estamos a ver em Portugal uma transição sem ter em conta zonas que deviam ser protegidas. Conseguimos que não avançasse o aeroporto no Montijo, um absurdo do ponto de vista ambiental, mas vamos aumentar na mesma a capacidade aeroportuária numa altura em que nos comprometemos a reduzir emissões.”
Não baixa os braços, ainda participa em protestos pela habitação da plataforma “Casa Para Viver”, também em manifestações pró-Palestina, que acontecem, muitas vezes, em universidades pelas mãos de estudantes. Sabe que tem de medir as suas forças, não vai conseguir estar ativa em todas as frentes para sempre. “As lutas implicam uma grande militância e dedicação ao longo da vida, sei que tem de ser algo sustentável. Mas sinto que os governos e as políticas não nos defendem, a minha geração cresceu com essa sensação. E não há outra forma de haver mudanças a não ser continuar a lutar”, sublinha, sem rodeios.