Margarida Rebelo Pinto

Este corpo que me pertence


Pertenço à geração que era levada pela mão à missa todos os domingos, que foi batizada com semanas ou meses, que frequentou um colégio de freiras e que fez a primeira comunhão de forma tão natural como lanchar leite com Ovomaltine e uma carcaça generosamente barrada a Tulicreme. À porta da adolescência já punha em questão várias ideias da religião católica que me eram transmitidas em casa, na missa, na catequese e mais tarde num clube feminino do qual fiz parte chamado Darca, que existia numa casa no Campo Grande, não longe de um clube masculino muito popular por entre a burguesia católica lisboeta da época, o Xénon.

Enquanto o Xénon tinha um programa de atividades desportivas com alguns momentos de reflexão, o Darca era virado para o eterno feminino, com tudo o que se esperava dele: aprendíamos lavores de vários tipos, a cozinhar, a tocar viola e ouvíamos palestras. A minha passagem foi rápida: a impertinência natural, as minissaias que teimava em exibir e o facto de ter um rapaz que me ia deixar e buscar à porta do clube incomodaram a direção. Meses depois, fui convidada a sair. Para a direção era irrelevante que o jovem que me escoltava pelas ruas do Campo Grande, onde as tentativas de violação eram comuns, fosse o meu irmão. Fui vista, e bem, como um elemento de destabilização do status quo. Não era feita para aquilo, porque nunca engoli qualquer tipo de discurso sexista baseado na diferença de grau de liberdade ou de impunidade pelo critério do género. A ideia de que existiam “coisas” que os rapazes podiam fazer, mas as meninas não, sempre me revoltou. A exaltação da virtude feminina, que deve ser praticada em todas as vertentes do comportamento com vista à aprovação social e familiar, era algo que não se enquadrava no meu espírito livre.

Foi uma sorte ter crescido na década de 1980, quando os costumes começaram paulatinamente a liberalizar-se. Em qualquer outra década anterior, teria sido escorraçada e segregada, apenas por reclamar direitos iguais. Portugal tornou-se um país aparentemente mais livre, embora, por entre a burguesia católica onde fui criada, a resistência se mantivesse ativa. Lembro-me do primeiro referendo contra a despenalização do aborto em 1998 que não foi vinculativo e de em 2007 finalmente o Sim ter vencido. Passados mais de 25 anos desde o início do debate e 16 anos desde a despenalização do aborto, os números descem todos os anos, o que prova que foi uma medida benéfica para a população.

O movimento My Voice, My Choice pretende ir mais longe: sensibilizar a UE para que a interrupção voluntária da gravidez seja gratuita nos países onde ainda não o é. A iniciativa a favor do aborto seguro e acessível proclama que não se é livre quando não se pode tomar decisões sobre o próprio corpo. Voltamos de novo a uma questão de fundo: enquanto as mulheres forem vistas como coisas e transacionadas como mercadoria, todos os direitos fundamentais à sua liberdade serão negados. Sem liberdade não existe dignidade, o que me faz voltar ao lema que nunca me canso de repetir: a luta é eterna.