Sofia Paulo é mãe de Inês, que tem uma falha genética no cromossoma 15. Helena Almeida é mãe de Leonor, que nasceu com trissomia 21. Izabelle Vergne é mãe de Lucas, autista de 21 anos. Orlando Borges é pai de João, que tem paralisia cerebral, tetraplégico, dependente. Depois do choque e da angústia, seguiram em frente. A derrubar barreiras e estigmas todos os dias.
Sofia Paulo fez todos os exames médicos quando ficou grávida pela primeira vez. “Aos cinco meses, tinha uma barriga muito pequena.” Estava um pouco angustiada, admite. Até às 29 semanas, tudo tranquilo. Na ecografia morfológica, detetou-se atraso no crescimento, baixo percentil da bebé. Repouso absoluto, gravidez de alto risco, ficou internada até ao nascimento da filha. Doze longos dias. Inês nasceu às 35 semanas com 2,200 quilos. O seu choro quase não se ouviu, ficou logo em observações. Não chorava, tinha dificuldade em mamar, adormecia ao biberão. Aos cinco meses, estava a fazer fisioterapia em Alcoitão. Com dois anos e meio, entrou na creche por recomendação médica. Tinha três anos e não falava. Sempre vigiada, sempre em consultas. O diagnóstico de síndrome de Prader-Willi, que resulta de uma falha genética no cromossoma 15, chegou quando tinha quatro anos. “Quando vem a confirmação, depois de muitas pesquisas e de muitas suspeitas, é uma notícia de choque que não queremos ouvir”, lembra Sofia Paulo.
Para Helena Almeida, não era a primeira filha. Tinha 34 anos, mãe de uma menina de quatro e de um menino de oito, estava grávida pela terceira vez. “Desde o início, sentia qualquer coisa estranha, não me sentia feliz.” O rastreio pré-natal indicou um valor alto para trissomia 21. Entrou em pânico, tinha de fazer uma amniocentese, sempre teve medo de agulhas, fez o exame no último dia possível. “A dúvida era muito dolorosa”, confessa.
A confirmação chegou, ficou muito assustada, abortar era uma possibilidade. “Eu daria tudo para não ter aquela filha, menos matar. Sou dona do meu corpo, mas não era dona daquela vida. Ia viver com uma morte às costas, não conseguia viver com essa decisão”, conta. Leonor já era Leonor antes de nascer. O nome estava escolhido. “Estava ansiosa por tê-la cá fora, virá-la do avesso, ver o que tinha de trissomia 21 para ver como atuar.” Leonor Belo nasceu num dia feliz com um sopro no coração, nada de grave. “E vamos para a guerra, fazer tudo o que é preciso”, diz Helena Almeida. Aos 15 dias de vida, Leonor estava num pediatra do desenvolvimento para uma intervenção precoce. Foi vista à lupa, ouvidos, pele, olhos, tudo. Virada do avesso.
Izabelle Vergne é daquelas mães que faz folhetos para distribuir à porta de escolas em abril, mês de consciencialização do autismo em todo o Mundo. Defende e acredita, como diz e repete, que “a informação é a nossa maior aliada”. Lucas, seu filho, tem 21 anos e é autista. Foi uma longa jornada até ao diagnóstico ser confirmado, nove anos e meio. Muito antes, Izabelle percebeu que o filho não olhava nos olhos, não tinha medo de nada, não tocava em objetos com determinadas texturas, tinha dificuldades na motricidade fina, algumas reações intempestivas.
Com ano e meio, no trânsito do Rio de Janeiro, Lucas abriu a porta do carro e saiu disparado, seguraram-no, por pouco não foi atropelado. Exames, consultas, terapias. “Compreendi que era uma condição de nascença e que tinha de ir do luto à luta.” Nem olhou para trás. Arregaçou as mangas, estudou muito, queria compreender o que se passava com o filho, prepará-lo para ter autonomia, para enfrentar a vida e o Mundo, dedicou-se à aromaterapia. “Não me conformei, eu aceitei. Aceitei com amor, não resignada.” É uma mulher de fé. “É um trabalho diário e eu tenho muito amor.”
Lucas tirou um curso politécnico superior em Informática e Comunicação Organizacional na Universidade de Aveiro, arranjou um trabalho temporário para juntar dinheiro porque quer tirar uma licenciatura em Engenharia Informática, quer desenvolver websites. “Investir em mim e nos meus estudos”, explica. Lucas sabe o que é ser diferente. “Sempre senti e sempre sinto isso porque é verdade. Eu sou diferente. Tive de aprender a fazer certas coisas e a evitar certas coisas.” Muitas vezes, o resultado era o mesmo.
O choque e as expetativas. Como será o futuro?
João tem 34 anos, tem paralisia cerebral, é tetraplégico, não fala, é totalmente dependente. Com a cabeça para a direita diz sim, para a esquerda é não. Desde muito novo, andou num centro de paralisia cerebral, agora está num centro de atividades. Viaja e passeia com os pais, levado ao colo da sua cadeira para outros assentos. A irmã Margarida, mais nova cinco anos, é uma grande companheira. O problema aconteceu no parto. Era um bebé grande, quase quatro quilos, a equipa não decidiu por uma cesariana, faltou oxigénio quando saiu da barriga da mãe. “Saímos do hospital com uma dificuldade enorme de perceber o que tinha acontecido, o que seria o futuro”, descreve Orlando Borges, pai de João.
Orlando e Paula Borges não sabiam o que era essa condição, absorveram muita informação. “Não é uma doença, é uma patologia com danos no cérebro. Não é recuperável, não pode ser tratada, quando muito minimizada.” Os piores receios verificaram-se, João estava no nível mais preocupante da paralisia cerebral. “Cada vez mais complexa, cada vez mais grave”, lembra Orlando Borges. Na primeira consulta de neurologia, ouviram o médico dizer que talvez conseguisse algumas melhorias no andar quando fosse adulto. Era bebé e não segurava a cabeça. “A primeira sensação é de surpresa, é um choque, é todo um percurso, de expectativas e adaptações. São situações de aprendizagem que só se sentem quando se tem um filho.” As adversidades vão sendo ultrapassadas à medida que vão acontecendo.
Tal como em casa de Sofia Paulo. “O desenvolvimento, o andar, o falar são aquisições mais demoradas na Inês.” Aos seis anos, tinha excesso de peso, andou 17 anos em consultas no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Depois do diagnóstico, a vida seguiu. “Sim, foi duro gerir a condição da Inês, é preciso fazer o luto e aceitar a realidade de ter um filho que não nasceu saudável para assim conseguir seguir em frente com a vida e ajudar a Inês nas suas dificuldades com estímulos e tudo o que nos era possível fazer por ela.” Em todos os momentos. “Os medos são muitos, mas por fases. Quando era bebé, era o medo se ia falar, andar. Depois veio a fase da escola, medo das aquisições que ia fazendo ou não.” Gerir expetativas quanto à parte cognitiva, às capacidades, às reações. Consultas e terapias. Nos cinco anos de Alcoitão, Sofia ouviu várias histórias. “Aquele chão preto e branco ficou-me gravado, como muitos casos que ali passavam, como AVC de bebés nas barrigas das mães”, recorda.
A fase da escola foi complexa, de luta pela inclusão. Até ao 11.º ano, Inês frequentou o ensino regular com currículo adaptado. “Foi uma dura e triste realidade. As escolas, de um modo geral, não estão preparadas para a realidade das pessoas com deficiência”, repara Sofia Paulo. Lamenta os obstáculos nesse trajeto. “A Inês tem uma parte cognitiva muito boa que a escola não soube aproveitar. Por causa disso, ganha-se uma resistência e uma barreira às aprendizagens que não coincidem com o potencial cognitivo.” Há uma certa mágoa nestas palavras. “Nunca tivemos médicos a dizerem ‘a Inês nunca vai fazer isto, nunca vai fazer aquilo’, mas tivemos professores a dizê-lo.”
Helena Almeida sabia o que queria e não facilitou. “Fui para a guerra a sério.” Aos dois anos, Leonor foi para a escola, colocou todos em contacto, professores, auxiliares, médicos, terapeutas. Com um propósito. “Todos a trabalhar para o mesmo, da mesma forma, com o mesmo método, para não dispersar.” O método de repetição e consistência. “Eu, como mãe, geria essa orquestra.” Foi sempre assim, em todas as escolas, pequenas e privadas, em todos os anos, em todas as disciplinas. Antes do primeiro dia de aulas, Helena ia à reunião de pais apresentar Leonor. “Não podia ser uma aluna nova, que dava trabalho, e que era diferente. Tinha de entrar no coração deles.”
É uma revolução na vida das famílias para desmontar projetos de vida. “O nascimento de uma criança com deficiência implica transformações profundas na dinâmica de qualquer família, ao provocar sentimentos e emoções repletas de angústia, ansiedade e frustração, podendo alterar a estrutura familiar”, observa Gisela Valente, presidente da Associação Portuguesa de Deficientes (APD).
Ajustes e reajustes, perceber necessidades de um bebé, enfrentar as diferenças, procurar apoio na comunidade. “É imprescindível que se providencie às famílias informação sobre a legislação, os direitos, serviços e apoios adequados disponíveis, assim como esclarecimentos sobre a situação da criança quanto ao seu desenvolvimento”, adianta Gisela Valente. A escolaridade obrigatória e a falta de respostas adequadas também são um grande problema. “Por vezes, o sentimento de rejeição pela escola provoca angústia nos pais que têm de continuar numa busca incansável por novas respostas.”
Na procura de respostas, Orlando Borges chegou à Associação de Paralisia Cerebral de Lisboa, da qual hoje é presidente. Em seu entender, a sociedade ainda está mal preparada para lidar, encarar e viver com a deficiência. Em Portugal, cerca de 10% da população tem pelo menos uma incapacidade, mais de um milhão de pessoas. E os apoios escasseiam, há instituições com graves dificuldades financeiras. “Há realidades para as quais o Estado não dá nenhuma resposta.” No ensino, na saúde, na vida profissional.
Gisela Valente sabe disso e salienta que o Estado tem um papel fundamental para o desenvolvimento global dessas crianças. “É imprescindível apostar cada vez mais em técnicos especializados para o Sistema Nacional de Intervenção Precoce na Infância, que acompanham crianças entre os zero e os seis anos e suas famílias através de medidas de apoio integrado, incluindo ações de natureza preventiva e reabilitativa.”
Usar a voz como cidadãos em pleno e defender os seus direitos. Isso é importante, realça Paula Campos Pinto, socióloga e coordenadora do Observatório da Deficiência e Direitos Humanos. “Não temos de encarar estas situações como uma tragédia, há um futuro para essas crianças e esse futuro será cada vez melhor.” No entanto, no início, a vida desaba. “É sempre uma notícia que chega como um choque, uma surpresa, algo inesperado, e as pessoas ficam muito assustadas com a sua própria capacidade de gerir essa situação e acompanhar aquela criança.” Depois, há obstáculos. “Temos um problema em Portugal: há alguma falta de articulação e de informação atempada às pessoas nessa situação, de lhes dar uma orientação para o caminho, para o que vão ter de fazer.” Nas respostas, nos apoios, nos direitos. “As pessoas sentem-se muito sós, muito dispersas e muito perdidas nessa trajetória”, nota a socióloga.
“Pequenas coisas, ganhos brutais”
Leonor Belo tem 20 anos, acabou o 12.º ano em junho, tirou um curso profissional de Teatro, foi embaixadora das Jornadas Mundiais da Juventude, trabalhou na Câmara de Oeiras um ano, participou em duas séries de televisão “Codex 632” e “Azul” como atriz. Desde setembro, que trabalha no McDonald’s do Marquês do Pombal, em Lisboa. Vai sozinha, apanha transportes, a mãe treinou o metro com desenhos. “Treinámos o erro, não só o que correu bem.” Gosta de dançar, praticou vários desportos, está no YouTube, no Canal da Lê Belo, ideia da mãe. À noite, na leitura das histórias, cada uma lia um parágrafo, Helena gravava para a filha ouvir o que dizia menos bem para corrigir, para falar melhor. A dicção sempre foi levada a sério. “No YouTube”, não só se diverte, como se ouve.” Helena filma e edita os vídeos, trocam ideias, brincam, dançam, fazem coisas parvas, divertem-se. Cozinham e vão ao teatro. Helena aposta em tudo o que é didático.
Foi aos bocadinhos, passo a passo com as preocupações da vida. Primeiro que Leonor conseguisse ler e escrever, depois que tivesse amigos. “Os objetivos vão mudando conforme as conquistas”, diz Helena. Mais dificuldades numas coisas, mais habilidades noutras. “Perceber que a Leonor tinha capacidade de ser feliz, deu-me muita paz. Aos 20 anos, tem um emprego fixo, sabe falar, sabe responder, sabe estar.” Agora é ter casa sua e um namorado.
A Inês também tem 20 anos. “Tem 20 anos, parece uma miúda de 13, tem um vocabulário muito rico.” É sociável. “Tudo aquilo que conseguimos, as mais pequenas coisas, são ganhos brutais”, considera Sofia. “Agora, a entrada na vida adulta também tem muitos desafios, uma vez que não podemos isolar as pessoas por terem esta ou aquela incapacidade. E, simplesmente, mais uma vez, não temos uma sociedade aberta a dar oportunidade a estes jovens que acabam a escolaridade.”
Sofia teve mais duas filhas depois de Inês, Madalena e Bárbara. Deixou de trabalhar aos 39 anos, quando foi mãe pela segunda vez. “Há muitas e muitas horas de hospital nestes 20 anos e, por isso, muitas das vezes é incompatível com a parte profissional.” Em 2018, fundou a Associação SPW Portugal com Catarina Abreu, outra mãe. “Começámos a preparar o futuro que chega muito rapidamente.” São 100 associados, muitas pesquisas, atenção às residências autónomas que a Holanda tem, interesse por aquilo que a ciência investiga. Este mês, a associação lançará um livro sobre a síndrome Prader-Willi para crianças dos jardins de infância.
Flávio Soares é presidente da Effectus, associação que acompanha pessoas com deficiência, famílias, cuidadores, e já ouviu vários relatos. Na gravidez, há projetos e, depois, o chão treme. “O difícil, neste processo, é que a vida vai continuar, não pára, não há uma pausa. Há tratamentos e opções pelo meio, a esperança numa cura, umas vezes é possível, outras vezes não.” A primeira fase é de aceitação, que é dolorosa. “Depois, têm de meter mãos à obra, quer aceitem ou não aceitem, não há outra hipótese.” Aceitar e adaptar, em simultâneo. Outra fase é a erosão emocional. “Ao longo dos anos, há um desgaste inimaginável.”
Flávio Soares defende uma escuta ativa para perceber as necessidades concretas das famílias e não de apoio numa lógica de superioridade, de ensinar os cuidadores “Começar por aqui, em que podemos ajudar, colocar-nos ao serviço.” Os apoios estão espalhados, a burocracia é imensa, as comparticipações são insuficientes.
Os subsídios são uma parte do assunto, outra é o suporte emocional. Gisela Valente, da APD, toca nesse ponto. “Outra questão de extrema importância é o papel do cuidador principal das crianças com deficiência, da importância de acompanhamento psicológico, tanto aos cuidadores como ao resto dos elementos da família”, destaca. “A maioria destas famílias com crianças com deficiência convive com uma sobrecarga social e psicológica que necessita de ser acompanhada e [as famílias precisam de] usufruir de apoio psicológico pelos serviços de saúde”, acrescenta.
Izabelle tinha 27 anos quando engravidou, era hospedeira de bordo no Brasil, pediu para ficar em terra. A sua vida deu muitas voltas, há sete anos, depois da morte do pai dos filhos, depois de viver entre o Rio de Janeiro e São Paulo, sempre em cidades pequenas, sempre em edifícios pouco altos, veio para Portugal. E volta ao passado. “O Lucas sofreu muito bullying na escola.” Quantas festas para as quais não foi convidado. Izabelle também era das mães que ligava para a polícia segura para ir a casa dos miúdos e miúdas que gozavam com o filho. Chegou a ser expulsa de uma fila para pessoas com necessidades especiais porque o autismo do filho não é visível. “É uma condição, não é uma doença.” Chegou ao ponto de o deixar vomitar numa instituição bancária para que percebessem que não podia esperar tanto tempo como as outras pessoas.
“Nunca escondi dele o que ele tinha.” E acreditou sempre numa intervenção multidisciplinar. “Não é um médico só, não é um professor só, é o professor com o médico, é o médico com a família, a família com a escola, a família com os médicos. Sempre coloquei a escola em contacto com os médicos.” Agora Izabelle olha para o futuro. “Só peço que consiga trabalhar no que quer e que mostre as capacidades que tem.” Lucas também espera que isso aconteça e a irmã Ana Clara, de 18 anos, é sempre um grande apoio.
É todo um trajeto de aprendizagem e é também não aceitar estigmas. João não vive fechado em casa, mesmo que uma refeição demore hora e meia, mesmo que seja necessário dar-lhe a comida na boca num restaurante. “É muito importante esta integração na comunidade, na sociedade”, observa Orlando Borges. Não esconder, não ter vergonha. João tem os seus gostos. Gosta de matemática, de ter gente a jantar lá em casa, de ver televisão. “Uma dificuldade que abala a capacidade de vida de uma família, acaba por ser o cimento, a forma sólida de juntar a família e os amigos.” É o que João tem feito ao longo destes 34 anos de vida.