Do amor à terra nascem festivais de verão gratuitos

Acontecem longe dos centros urbanos, enfiados para dentro do país, com grandes nomes da música em cartaz. São organizados por pequenas estruturas, ora por associações criadas por grupos de amigos, ora por instituições. Dão palco a bandas e projetos das regiões onde acontecem, envolvem a comunidade na organização, têm impacto na economia local. São uma pedrada no charco na programação cultural dos lugares onde escolheram ter morada.

Há uma história que João Nuno Ribeiro não se cansa de contar e que parecia uma utopia até acontecer. “Um músico, o Gonçalo Parreirão, que participou em duas edições da Romaria Cultural, aqui em Gouveia, e que não tem raízes na cidade, decidiu vir viver para cá com a namorada.” Talvez seja este o impacto mais poético que o festival, nascido há precisamente dez anos na cidade que mora na encosta da serra da Estrela, teve. Até porque, é João Nuno quem lembra, Gouveia é uma cidade muito envelhecida. Mas comecemos pelo princípio, pelo caminho até aqui, que se foi fazendo por carolice e amor à camisola. A Romaria Cultural, festival de verão de música e de tantas outras coisas, de exposições, espetáculos de teatro, performances na rua, nasceu em 2014 pelas mãos de três amigos gouveenses. João, hoje programador do evento, natural de Gouveia, engenheiro civil em Lisboa, pintor nas horas vagas, juntou-se a eles em 2015, ano em que decidiram criar a Go Romaria – Associação Cultural Gouveense, sem fins lucrativos, para tornar a coisa mais séria.

Uma década depois, o festival, por onde já passaram nomes como Linda Martini ou Ena Pá 2000, mantém-se de pedra e cal e continua feito de sinergias com associações locais. “Gouveia tem mais de 40 associações, ranchos folclóricos, bandas filarmónicas, grupos de teatro. E foi com o reconhecimento deste panorama que se quis dar uma pedrada no charco em relação ao que era a oferta cultural instalada, que tipicamente nestes territórios não vai além das festas do Município e das romarias tradicionais.” Quiseram levar as artes para a rua, criar uma oferta diferenciada, palcos informais, envolver a comunidade da cidade jardim e serra na paisagem.

Chamaram-lhe Romaria Cultural, “por ter ligação às tradições e por querer trazer pessoas a Gouveia por motivos culturais e não religiosos desta vez”. Não há bilhética, é gratuito, não há recinto, espalha-se pela cidade, há concertos à noite no Anfiteatro da Cerca, durante o dia no centro, também num miradouro, exposições em galerias e espaços comerciais, tertúlias. Contas feitas, este ano são três dias, de 26 a 28 de julho, 40 atividades. No cartaz têm nomes como Hidden Orchestra, projeto do músico do Reino Unido Joe Acheson, Club Makumba, Bandua, April Marmara. Ou o espetáculo “Raízes”, de dança e com banda sonora ao vivo, da Sociedade Musical Gouveense “Pedro Amaral Botto Machado”. E orçamento? “Ronda os 20 mil euros. Temos o apoio do Município de Gouveia, que é o principal parceiro, da Direção Regional de Cultura do Centro, do Instituto de Desporto e Juventude.”

Um concerto de Calcutá na Romaria Cultural, em Gouveia
(Foto: Mariana Coito)

São cerca de oito pessoas, agentes culturais amadores, a trabalhar para o festival ao longo do ano – todos nascidos em Gouveia, a maioria já lá não mora, e a eles junta-se uma equipa de voluntários, de jovens ainda estudantes na cidade, à volta de uma dezena, que ajudam durante os dias em que a música e a cultura tomam conta da terra. Ninguém ganha um tostão, o festival é uma carta de amor a Gouveia. Recebe, em média, 2500 espectadores, muitos de fora. E a consciência ambiental também entra, com atividades como a devolução de aves à Natureza. “Não é só um somatório de concertos, é uma experiência de um fim de semana em Gouveia.” O impacto mede-se nos restaurantes da terra, nos artistas locais a que dão palco, nas associações que participam. “E no facto de provocarmos as pessoas com uma oferta diferente.” Sem nunca esquecer as raízes, o festival culmina com uma recriação contemporânea da romaria ao Calvário.

O fenómeno do Rock no Rio Febras

No ano passado, Portugal teve 309 festivais de música e mais de 100 aconteceram em Lisboa e no Porto, segundo dados da Associação Portuguesa Festivais de Música. Os pequenos festivais de verão, que acontecem à margem dos grandes centros urbanos, também entram nestas contas. São, tantas vezes, oásis culturais em terras envelhecidas. Muitos deles criados por estruturas amadoras, gente que entrega suor a troco de nada, com orçamentos apertados, feitos com a ajuda da comunidade, gratuitos e, ainda assim, com cartazes ambiciosos.

Neste cenário, há um caso paradigmático de sucesso, que quase dispensa apresentações: o Rock no Rio Febras, em tempos Rock in Rio Febras, festival solidário que acontece na freguesia de Briteiros S. Salvador, Guimarães. Foi criado pela IPSS Casa do Povo de Briteiros, para angariar verba para o centro de dia. “Há uma grande tradição de rock nesta zona e há um evento anual, o Rock e Rojões, de pessoas da região ligadas ao rock, que acontece no nosso salão polivalente. Então, surgiu a ideia de criar um festival solidário, para dar palco a bandas locais e angariar receita com os comes e bebes”, rebobina Vasco Marques, presidente da direção da Casa do Povo de Briteiros, que organiza o evento.

Na realidade, estavam à espera de umas 300 pessoas no Parque Fluvial de Briteiros e, logo na primeira edição, em 2022, o festival recebeu 1500, espécie de prenúncio do que aí viria. Acabou a cair nas bocas do Mundo no ano passado, quando o Rock in Rio (sim, o gigante que nasceu no Brasil e que ocupou o Parque Tejo, em Lisboa, em junho) embirrou com o nome, os acusou de uso indevido da marca, de concorrência desleal e exigiu o cancelamento do evento. A minúscula organização do festival de Briteiros reagiu num comunicado carregado de sentido de humor, que viralizou e ganhou escala. O insólito foi notícia na BBC, Reino Unido, na América do Sul também. A fama chegou a poucas semanas do dia do festival, milhares de pessoas solidárias, tiveram de alargar o recinto em tempo recorde, de limitar as entradas a cinco mil (com reservas de bilhetes online, sempre gratuitos). Um concurso nas redes sociais para escolher um novo nome, 14 mil pessoas votaram, ficou Rock no Rio Febras.

O sucesso entranhou-se, este ano estenderam ainda mais o recinto, mantém-se nas margens do rio Febras, em terrenos cedidos pela comunidade. Lotação de 12 mil pessoas, já está esgotado. O palco também aumentou, “no ano passado tinha oito metros de largura, este ano tem 25”, digno de um festival a sério. O espírito, esse, mantém-se muito comunitário, os vizinhos cedem a eletricidade, a água. É a população que ajuda nas montagens, que cozinha a comida que se vende. Já há data: 27 de julho. No cartaz, as bandas locais juntam-se a nomes maiores. The Subways, banda britânica que já atuou nos mesmos palcos de AC/DC ou Metallica, vem a Portugal, ao Febras. “Quando explicámos que o festival tem um cariz solidário, aceitaram vir.” Depois há The Legendary Tigerman, nome incontornável do panorama nacional, e bandas locais como Imploding Stars. “Vão todos tocar no mesmo palco e fazemos questão de pagar aos artistas, é reconhecer o trabalho deles.”

O apoio da Câmara de Guimarães quadruplicou, o orçamento do festival está nos 50 mil euros e o total das receitas reverte para o centro de dia (em 2023 angariaram 20 mil euros). Todos os que trabalham no festival, todos mesmo, são voluntários e uma coisa é certa, a população da pequenina freguesia vibra com isto. Os fornecedores são locais, desde a padeira ao talho, “até os materiais de construção são de pequenos comerciantes daqui”. O impacto é inegável, vai além-fronteiras. “Há um senhor que nasceu em Briteiros e que vive há anos na Suíça, já sem ligação à terra, a quem os filhos pediram para vir ao festival, para conhecerem a terra do pai, as raízes. Perguntaram-nos se podiam ser voluntários”, conta Vasco. Até os alojamentos locais estão esgotados – um deles com um grupo de ingleses que vem de propósito para o Rock no Rio Febras.

Em Chaves, a Nacional 2 é inspiração

Os fenómenos que se geram em torno dos festivais criados às mãos da comunidade dão pano para mangas. Em Chaves, mesmo junto ao quilómetro zero da Estrada Nacional 2, o primeiro fim de semana de agosto está reservado. Mas é preciso recuar a 2018 para ir à génese do Festival N2. A Nacional 2, que atravessa o país de norte a sul, começava a ganhar força a nível turístico e a Indieror, que já trabalhava na área cultural na cidade raiana, percebeu o potencial. “É um festival familiar, mas com um toque mais jovem. Já tivemos nomes como Jorge Palma, para atrair público, mas também já trouxemos Bateu Matou, até para contribuir para a população conhecer mais música portuguesa”, comenta Marta da Costa, da Indieror, a associação criada por ela e por outros dois jovens flavienses, que fizeram os estudos fora do concelho, nenhum ligado à produção de eventos, e que voltaram à terra para se dedicarem a isso mesmo. A Câmara apoia na organização (o orçamento é de 215 mil euros, o Município financia 190 mil) e há um ponto assente: a comunidade é envolvida. “Há um palco itinerante, o Viagem, que percorre a cidade durante o dia, onde atuam artistas da região transmontana.” Além do palco principal, montado no jardim público, mesmo colado ao quilómetro zero da Nacional 2, onde há concertos à noite.

O espetáculo de Black Mamba no Festival N2, em Chaves
(Foto: Miguel Madeira)

Os emigrantes, regressados a casa, param para ver, também os portugueses em viagem, ou turistas. A equipa (jovem, muito jovem), a rondar as 60 pessoas, que trabalha no festival, ora a acompanhar artistas, ora a gerir entradas, é toda flaviense e remunerada. “Não temos voluntários, são todos pagos.” O festival é gratuito e, no ano passado, ao longo de três dias, chegou aos 18 mil espectadores. “No início, a adesão não tinha a força que estávamos à espera. Para todos os efeitos, estamos numa cidade do Interior, há muita fuga de jovens, uma população envelhecida. Os hábitos culturais não estão enraizados e em agosto competimos com festas populares. Mas, hoje, até já vêm pessoas de fora do concelho.”

Entre 1 e 3 de agosto, há 18 concertos, Maro, Tiago Bettencourt, iolanda, Branko, Nenny, Selma Uamusse. Marta conta que já caíram emails de estrangeiros a querer saber a que horas atua Maro. E a aposta em Nenny, para um público muito novo, “foi propositada”. O festival tem sobrevivido aos solavancos da estrada, atrai gente cada vez mais jovem e deixa um rasto na economia, na restauração, na hotelaria – os artistas ficam sempre hospedados no centro de Chaves. O segredo é só um: “Só faz sentido enquanto acrescentar valor à cidade”.


Outros festivais à borla pelo país:

Festival Aldeia de Lobos | Fafião | 12 e 13 de julho
Este festival comunitário, que celebra o lobo-ibérico (espécie ameaçada) e as tradições seculares, é organizado pela Associação Vezeira e acontece na aldeia de Fafião, Montalegre, em pleno Parque Nacional da Peneda-Gerês. Sal, Rosa Mimosa Y Sus Mariposas, Daniela Oliveira, Galandum Galundaina, Nahuel Colectivo, Esoteric e Azeituna são alguns dos nomes do cartaz. Ainda há teatro, workshops, animação de rua, exposições espalhadas pela aldeia.

Festival M | Torres de Mondego | 19 e 20 de julho
Na freguesia de Torres de Mondego, Coimbra, o Festival M nasceu pelas mãos da Associação Cultural Motivos Alternativos, na Praia Fluvial de Palheiros e Zorro. Conta com o apoio da Junta de Freguesia e, este ano, leva a palco projetos locais como Ruze, nomes nacionais como Unsafe Space Garden e nomes internacionais como os americanos System Exclusive, a mexicana Elis Paprika, a alemã Zoe Mazah, os americanos Biblioteka e os sul-americanos Mandale Mecha. São dois dias, sete concertos – e ainda há djs.

Rapada Village | Santo António do Alva| 19 a 21 de julho
O festival de verão de Santo António do Alva, em Oliveira do Hospital, acontece nas margens do rio Alva, no Parque Francisco Saraiva dos Santos e junta várias gerações. Organizado pela Associação Progressiva de Santo António do Alva, há concertos, sunsets, jogos. No cartaz figuram nomes como WoodPlan ou o Dj Pedro Carrilho.

ZigurFest | Lamego | 24 a 27 de julho
Organizado pela Zigur – Associação Cultural, o festival que envolve associações e população local, tem um cartaz todo nacional, com nomes como bbb hairdryer, Cat Soup, Garoa, Ilusão Gótica ou ladoazul. Os concertos acontecem pela cidade, desde o Bairro da Ponte ao centro cívico. Ainda tem uma programação paralela, que inclui conversas e workshops. Há campismo gratuito.