Depois do fogo, a nova vida de Notre-Dame

(Foto: CHRISTOPHE PETIT TESSON/POOL)

A catedral de Paris reabre a 8 de dezembro, mais de cinco anos após o incêndio que comoveu o Mundo. Foi um choque coletivo. Depois de debates e propostas, a reconstrução. Respeitou-se o carácter histórico e arquitetónico. A memória. O interior está mais luminoso, vitrais limpos, pinturas restauradas, estrutura mais robusta e segura, e uma nova “floresta” em madeira com duas mil árvores.

No fim daquela tarde de 15 de abril de 2019, Elisabeth Oliveira colou o olhar à televisão, às imagens em direto do incêndio da Catedral de Notre-Dame de Paris. “Siderada, a olhar para as chamas consumirem séculos de história.” Não foi ao local. Mora em Paris, nasceu em França, viveu alguns anos em Portugal. “Recebi chamadas de familiares e amigos espalhados pelo Mundo que sentiram a mesma emoção: foi um choque coletivo.” Devastador. “Este incêndio mostrou-nos a fragilidade do que consideramos indestrutível e imortal. Durante séculos, a catedral resistiu a guerras e revoluções parecendo eterna”, refere.

O arquiteto Gonçalo Byrne também se lembra desse dia e do Mundo ter ficado suspenso nas imagens e naquele fumo que se ia tornando cada vez mais escuro, mais preto, mais triste. Para o professor, autor de requalificações de edifícios históricos, com obras expostas em várias cidades do Mundo, ex-presidente da Ordem dos Arquitetos, essa atenção demonstra a importância de “um verdadeiro ícone” de Paris com projeção universal. “Foi um momento de uma certa angústia que parecia interminável.” De repente, uma parte da História era consumida aos olhos de toda a gente. Recorda-se da comoção geral desse dia e de Macron, presidente francês, ter garantido que Notre-Dame iria ser reconstruída custasse o que custasse. E assim foi com doações privadas que juntaram cerca de 700 milhões de euros para reerguer a catedral com séculos de vida, um dos monumentos mais emblemáticos de Paris e da Europa.

Durante os últimos anos, Elisabeth Oliveira foi passando pela zona, vendo a reconstrução avançar. Doía-lhe, apesar de tudo. “Passar pela Notre-Dame durante as obras, e vê-la envolta em andaimes e reduzida a um emaranhado de ferro, era como testemunhar uma ferida aberta.” De um dia para o outro, a imponência tornou-se vulnerabilidade. “Era impossível não personificá-la e sentir a mesma emoção que nos invade quando percebemos que os nossos pais, que sempre consideramos fortes, se tornaram frágeis, seja quando confrontados com uma doença ou com o passar do tempo”, confessa.

Depois do incêndio, seguiu-se um debate intenso sobre como reerguer a catedral, várias propostas surgiram, desde colocar um telhado de vidro, a uma torre moderna. “Apesar da criatividade de algumas ideias, seria difícil imaginar a catedral, um marco gótico com mais de 850 anos, transformada em algo completamente diferente.” Com o desenho final, Elisabeth Oliveira ficou mais tranquila. “Senti alívio ao saber que o caráter histórico e arquitetónico da Notre-Dame iria ser preservado.”

As causas do incêndio de 15 de abril de 2019 continuam a ser um mistério. O teto desabou, as estruturas de madeira foram consumidas pelas chamas. Dentro de dias, a 8 de dezembro, a Notre-Dame reabre ao público depois de anos de obras e cerca de 700 milhões de euros investidos provenientes de doações privadas (Foto: Cathédrale Notre-Dame de Paris/Facebook)

Paulo Lourenço, professor catedrático na Escola de Engenharia da Universidade do Minho, é presidente do Comité Internacional sobre Estruturas Históricas do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS) e foi nesse cargo que tentou organizar uma visita técnica à catedral durante os trabalhos com os membros desse comité. Em seu entender, estas intervenções têm de considerar a responsabilidade social, a prestação pública de contas e a valorização da conservação do património. “Estaleiros abertos, visitas guiadas, observação do progresso dos trabalhos e a partilha de experiências com a comunidade técnica e a sociedade são essenciais”, defende.

A visita, tal como estava pensada, não se realizou, mas Paulo Lourenço esteve na exposição anexa à obra e ao local no segundo trimestre deste ano com colegas franceses. Não esquece o que viu e o que sentiu. “Esta visita foi impressionante pelas imposições de higiene e segurança (contaminação pelo chumbo no incêndio), pela construção em curso da nova floresta em madeira (foram utilizadas 2000 árvores e quase 50 serrações em França), pelos inúmeros ramos de flores secas que os carpinteiros colocaram como símbolo de conclusão de uma fase dos trabalhos, pelo fino detalhe do trabalho em chumbo da nova cobertura, pela minúcia de talhar a nova pedra que substituiu o que se perdeu, pelo interior despido de qualquer decoração e de um branco celestial incrivelmente luminoso, pelos vitrais limpos e restaurados de cores vivas no seu esplendor original, e pelo facto de poder roçar a pedra, madeira, chumbo, vidro e todos os materiais utilizados”, lembra.

Paulo Lourenço é presidente do Comité Internacional sobre Estruturas Históricas do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios e visitou o local há poucos meses. O professor catedrático na Escola de Engenharia da Universidade do Minho caminhou sobre os telhados e viu uma recuperação de enorme respeito e cuidado pelo passado arquitetónico. Algumas fotos neste artigo são da sua autoria

Foi um momento marcante. “A possibilidade de caminhar sobre os telhados, paredes e abóbadas com uma enorme proximidade e o acesso de outra forma impossível, foi inesquecível, permitindo apreciar não apenas o trabalho magnífico dos construtores da antiguidade, mas também das equipas do presente”, realça. A reabertura está por dias e o engenheiro civil, especialista na conservação de edifícios históricos e que são património mundial, faz suas as palavras de muitos. “O desejo de todos nós é que a vida deste monumento novamente restaurado seja agora longa.”

Da imponência à fragilidade, uma lição para o Mundo

“Os estragos do incêndio afetaram sobretudo o teto e as estruturas de madeira”, comenta Gonçalo Byrne que acredita que o restauro estará bem feito, realçando que Paris tem especialistas e técnicos da área de “grande qualidade.” “Será uma obra muitíssimo bem feita, em que se terá aproveitado a oportunidade para restaurar bem, aumentando a segurança, a sua resiliência e a sua capacidade de renascer e se reforçar do ponto de vista da durabilidade do tempo.” “Vai estar mais espetacular”, conclui.

(Foto: Direitos Reservados)

A catedral de origem românica, base bastante compacta, quase retangular, foi construída ao longo de mais de um século. Gonçalo Byrne destaca o salto para um estilo inovador na altura, quando Notre-Dame se tornou “num dos mais extraordinários exemplares da arquitetura gótica”, mais leve, com janelas e vitrais, mais luminosa por dentro. “Foi uma transformação fantástica”, observa, na casa da arquidiocese de Paris. No século XIX, recorda, a igreja é alvo de restauro pelas mãos do arquiteto Viollet-le-Duc. “Muito imaginativo, faz uma reinterpretação neogótica, uma releitura do gótico, prolonga a agulha central para quase 100 metros de comprimento.” Por essa altura, em 1831, o escritor francês Victor Hugo lançava o romance “Notre-Dame de Paris”, também conhecido como “O corcunda de Notre-Dame”, vivido dentro e ao redor da catedral. Pouco antes, em 1804, Napoleão era coroado imperador na Notre-Dame, devolvendo-a às mãos da Igreja católica. Gonçalo Byrne lembra esses momentos que realçam o valor incomensurável da catedral que reabre a 8 de dezembro, dia da Imaculada Conceição, dia de Notre-Dame.

“A decisão de manter a reconstrução fiel ao projeto original – incluindo o pináculo desenhado por Viollet-le-Duc no século XIX – honra não apenas o edifício em si, mas também a memória coletiva que ele carrega”, observa Elisabeth Oliveira. Em sua opinião, essa escolha reflete respeito pela história e pela identidade cultural que a catedral representa, não apenas para Paris, mas para o Mundo inteiro. “A Notre-Dame mostrou que mesmo os monumentos mais imponentes são frágeis. E talvez essa lição, embora dolorosa, a tenha tornado ainda mais preciosa para todos nós”, diz.

(Foto: Direitos Reservados)

Paulo Lourenço recua ao dia do incêndio e à pergunta repetida tantas vezes: por que razão aconteceu o que aconteceu? “O perigo era elevado e conhecido, com peças de madeira pequenas combinadas com elementos de grande dimensão numa estrutura da cobertura com o nome de ‘floresta’. O sistema de deteção de incêndios era sofisticado, mas requeria confirmação visual. O facto de alguém ter de subir e comprovar o incêndio para chamar os bombeiros, implicava pelo menos 15 minutos de tempo de resposta.”

O incêndio foi detetado às 18h18, confirmado cerca de 30 minutos depois, o primeiro camião dos bombeiros chegou às 19h25. O combate ao incêndio, tanto no interior como no exterior, foi difícil. “E às 19h50 a flecha de 750 toneladas caiu sobre as abóbadas.” O Mundo tremeu. “Os resultados indicam que a preparação para o desastre era insuficiente. Seria importante refletirmos sobre isto para os nossos monumentos e para os diferentes perigos, nomeadamente incêndio e sismos, dado o seu potencial destrutivo.” “Qual o risco que aceitamos para os nossos monumentos como sociedade? E quanto estamos dispostos para investir para ter um risco aceitável?”, questiona. Até hoje, a origem do incêndio permanece um mistério.

Um outro aspeto que deve merecer reflexão é, segundo Paulo Lourenço, o que fazer no caso de perda inesperada de património construído com valor cultural. “A resposta nem sempre é evidente, coexistindo várias abordagens, tais como o Convento do Carmo em Lisboa (que se mantém como uma ruína), a ponte de Mostar na Bósnia-Herzegovina (reconstruída) ou as torres gémeas em Nova Iorque (substituídas).” A autenticidade e o significado de um monumento veem-se pela forma, materiais e técnicas de construção, utilização, tradições, localização ou o sentimento da comunidade, sublinha. “Neste caso, os materiais foram consumidos pelo fogo, mas a nossa memória estava presente e foi preservada.” O mecenato privado suportou integralmente os custos de reconstrução da catedral de Paris que, recorda Paulo Lourenço, representam cerca de sete vezes o valor da construção da nova Basílica de Fátima. “Mas o que podemos fazer quando se perde outro património que não a Notre-Dame? Aí o financiamento que possa existir será certamente público ou, dito de outra forma, de todos nós através dos impostos que pagamos”, refere.

(Foto: CHRISTOPHE PETIT TESSON / POOL)

Depois da reabertura, estima-se que a Notre-Dame seja visitada por mais de 13 milhões de pessoas por ano. O arquiteto Gonçalo Byrne chama a atenção para esse aspeto da massificação do turismo e o desgaste do monumento, problema transversal a tantos pontos turísticos espalhados pelo Mundo. Elisabeth Oliveira também fala nessa questão. “Esta tragédia mostrou-nos que mesmo os maiores símbolos da nossa civilização precisam de cuidados constantes e a sua entrada poderá tornar-se paga.” E acrescenta. “Esta medida pode ser uma forma eficaz de garantir os fundos necessários para a preservação do património religioso francês, especialmente num país como a França, onde existem tantos monumentos históricos.” A contagem decrescente para a reabertura de Notre-Dame já começou. E as expectativas estão ao rubro.