
São 600 figurantes, 90 cenários, mais de 30 mil metros quadrados. O Presépio ao Vivo de Priscos, em Braga, cresceu e atingiu a maioridade. Nos bastidores, há uma comunidade que se une há anos para o fazer acontecer. Há quem costure roupas, quem construa cenários, outros procuram angariar participantes. Tudo por amor a uma recriação que abriu, no domingo, portas ao público.
Maria Angelina andou numa azáfama nos últimos dias, sempre de volta do corte e da costura, numa sala por baixo da residência paroquial de São Tiago de Priscos, onde moram duas máquinas de costurar. Esteve dedicada a fazer vestidos e túnicas, todos os anos faz 30 ou 40 para o Presépio ao Vivo de Priscos, o maior do género na Europa, que acontece em Priscos, freguesia de Braga, do pudim Abade de Priscos. A recriação atinge a maioridade este ano, 18 anos de um evento feito de amor à terra e carolice, e abriu portas no último domingo. Mas, na verdade, a costureira já leva trabalho desde setembro. “Tenho muitos vestidos já feitos de outros anos, que se vão guardando, mas há sempre uns que se rasgam, que se estragam. E há ajustes a fazer.” Maria Angelina, nascida e criada em Priscos, tem 73 anos, está reformada, aprendeu a costurar ainda catraia, trabalhou numa empresa de confeções, e já desde a segunda edição do presépio que põe mãos à obra para criar roupas para os figurantes. “Houve um ano, logo nos primeiros, em que fiz 600 vestidos”, nota.
Aproveita os tecidos doados à paróquia, restos de fábricas, outros tem de comprar. Ao cabo de tantos anos, os figurantes vão mudando, mas as roupas aproveitam-se, não são feitas à medida. Maria Angelina ora faz mais compridas, ora mais curtas, mais largas ou mais justas, para servir a toda a gente. “São essencialmente túnicas onde depois se põe um cinto para fazer roda”, explica. E, depois de meses dedicada à costura, ainda participa no presépio, é uma das figurantes, numa casa onde tem vestidos expostos – “um trouxe da Cisjordânia, outro de Jerusalém”. Todos os dias em que o presépio abre portas ela está lá, até no dia de Natal e no Ano Novo. Afinal, toda a família participa. “Tenho cinco irmãos e estão todos aqui. Depois, o meu marido faz de ferreiro, uma cunhada faz o pudim Abade de Priscos, as minhas filhas começaram em novas e agora já vêm com os maridos e os filhos. No dia de Natal saímos da mesa a correr para virmos todos para aqui, onde temos amigos e vizinhos. Isto é uma família.”

Contas feitas, são cerca de 600 participantes, todos voluntários, “o que é um dos aspetos mais especiais do Presépio ao Vivo de Priscos”. Quem o diz é o padre João Torres, da paróquia de São Tiago de Priscos, a organizadora. Se rebobinar no tempo, o presépio nasceu pequenino, com o intuito de unir a comunidade da freguesia “em torno do espírito natalício”. Mas foi crescendo e crescendo. E a logística foi-se adensando. Já há cerca de 90 cenários, “concebidos para contar uma parte da história do Natal”, onde se recriam cenas da época do nascimento de Jesus e ofícios daquele tempo, com pastores, madeireiros, ferreiros, sapateiros, tecedeiras. Cada cenário tem um responsável que, a cada ano, anda a angariar figurantes, a convencer amigos e família a participar. A maioria das pessoas que interpreta personagens é de Priscos, mas também há gente de terras vizinhas, até de outros pontos do norte do país.
O projeto foi-se tornando cada vez mais sério. A área aumentou, são 30 mil metros quadrados hoje. Muitas das estruturas em palhas e madeiras que, nos princípios, se montavam e desmontavam a cada edição, agora são construções em pedra definitivas. Há uma equipa só dedicada a isso, um arquiteto, um responsável pelas construções e um pedreiro. E há sempre novas estruturas a nascer, construídas sobretudo por reclusos do Estabelecimento Prisional de Braga, que ali trabalham ao longo de todo o ano e que são pagos (as receitas angariadas com a bilheteira revertem para eles). Desde 2015 que o Presépio de Priscos quis assumir um papel ativo na luta pela inclusão social, tanto que todos os anos gira em torno de um tema atual. Desta vez é a inclusão de migrantes e minorias. “Um assunto profundamente relevante nos dias de hoje. Para o representar, contaremos com a presença da família congolesa Zinga, que dará um rosto humano a esta realidade, aproximando o público das histórias de quem procura acolhimento e integração”, detalha o pároco. A par disso, logo no primeiro cenário da visita, há uma exposição fotográfica dedicada ao tema. “Este projeto não se trata apenas de um espetáculo cultural, mas também de uma mensagem de transformação e esperança”, sublinha João Torres.

Mas voltemos aos cenários. José Silva é técnico de obras, tem uma empresa de construção. É de Priscos, claro está, tem 58 anos. Fala despachado, começou a participar há 15, quando lhe pediram para interpretar um soldado romano. “Como fui oficial da Marinha, era fácil fazer de soldado”, comenta. Ganhou amor ao presépio e agora faz de tudo ali. Além de coordenar o Campus Romanus, “cenário mais emblemático do presépio”, é o responsável pelas construções. “Já construímos vários cenários. Fizemos o Campus Romanus, a aldeia romana, as catacumbas.” Todas as terças-feiras vai ao recinto, acompanhado pelo arquiteto, para dar apoio aos reclusos e ao pedreiro. “Agora, estamos a fazer obras permanentes, em granito. E vamos alterando uma coisinha ou outra.” Mas há sempre novidades, este ano é o último edifício da visita, onde estarão expostas imagens de figuras de relevo que passaram pelo presépio, desde presidentes da República a cardeais de Roma.
A dedicação sai-lhe do corpo, cede máquinas da sua empresa, tempo, mas José gosta disto, da família que ali se criou, de ajudar a paróquia a “levar longe o nome de Priscos”. Logo nos meses de verão já anda numa aflição a angariar mais figurantes para o Campus Romanus, vai “cativando amigos, clientes, ex-camaradas da tropa”. “Ando sempre a chatear pessoas. Ninguém ganha dinheiro com isto, mas é por uma boa causa, estamos a ajudar a comunidade e os reclusos. E é uma alegria estar a representar. Os cheiros, os barulhos, é como voltar dois mil anos atrás no tempo.” Ainda se recorda de uma tarde de domingo em que o presépio recebeu 20 mil visitantes, um orgulho que não consegue calar. Ensaios já não há, está tudo bem oleado, e quando há novos figurantes José organiza uma tarde de sábado para afinar detalhes, leva o lanche e faz-se um convívio. As roupas dos soldados, essas, são tratadas com cuidado, algumas mandaram vir de França. Há armaduras, capacetes, além de “armas de guerra, catapultas”. Talvez o amor ao presépio de Priscos venha do pai, também ele construtor, agora reformado, que faz parte do projeto desde a primeira edição e que construiu o primeiro cenário de todos, a gruta onde estão Maria, José e o Menino Jesus.
O Menino Jesus e a logística dos pais
E sim, até os bebés que vestem a pele de Menino Jesus são reais aqui. Alexandre e Natália Araújo foram pais há seis meses, vão interpretar Maria e José em Priscos e levar o pequeno Artur para ser Menino Jesus. Moram no centro de Braga, nunca foram ao Presépio de Priscos, mas perguntaram-lhes se não queriam participar, eles acharam graça à ideia, decidiram arriscar. “Vai ser um dois em um, vamos conhecer e participar. Mas só vamos em alguns dias e por pouco tempo, há várias famílias a fazer este papel, porque é impossível ficar aqui uma tarde inteira com o bebé”, diz o pai. Aliás, a costureira Maria Angelina tem sempre três conjuntos de fatiotas para as famílias se revezarem ao longo de cada dia.

Alexandre e Natália já têm tudo pensado, vão levar fraldas, comida, a ideia é ficarem à volta de uma hora e meia em cada dia. Ele nem é religioso, mas é dado às tradições natalícias, e isso não foi questão. “É sempre uma experiência engraçada para se ter. O que vamos fazer é, basicamente, estar a tomar conta do nosso filho enquanto ele está nas palhas estendido.” A filha mais velha, Lara, de cinco anos, também vai participar. E como o presépio só abre aos fins de semana e feriados, não os obriga a faltar ao trabalho. Ao fim de tantos anos, Maria Angelina ainda se diverte com o facto de “as pessoas ficarem de boca aberta por o Menino Jesus ser um menino a sério, não ser um boneco” e por haver “um burro e uma vaca a sério”. Os animais são cedidos por gente da freguesia, também há ovelhas, cavalos. Só que o padre João Torres confessa que, aos poucos, querem caminhar “para reduzir a sua presença”, não só porque obriga a uma grande logística, mas também por questões ligadas “ao bem-estar animal”.
Nada que mexa na magia de um projeto que se faz da força popular e de que Sérgio Martins faz parte quase desde o início. Mora em Priscos, é professor em Famalicão, já fez vários papéis, mas faz parte do cenário do Senado Romano há já largos anos. “Comecei por ser um Rei Mago, com o meu irmão e um primo, entretanto desci na hierarquia”, brinca. Quando o presépio começou a crescer, foi ajudando em algumas construções rudimentares, foi então que se montou o Senado Romano, onde participa há mais de uma década. “Já temos um grupo alargado de amigos, de Santo Tirso, Barcelos, Vila Verde, somos uns 15, que se junta sempre para fazer a representação.” Dividem-se pelos fins de semana, são uns sete em cada dia que o presépio abre. A família também participa, como o irmão e a cunhada. “No dia da inauguração, antes de abrirmos ao público, fazemos sempre um almoço. Às vezes cozinhamos mesmo aqui, temos uns potes, umas panelas.” Com o tempo, e também à conta da formação que o padre João Torres foi dando, já dispensam ensaios, dominam as fardas, a postura, a história, que vão relatando aos visitantes. “Conversamos com as pessoas e explicamos que estamos em Roma, que somos senadores romanos, que temos soldados. Falamos do tempo de Jesus, do Império Romano. É quase uma aula de História.”

Há uma certeza para Sérgio, desde que tudo começou as recriações “melhoraram muito” e o espaço “levou uma transformação enorme, fruto do empenho da comunidade e do trabalho dos presos”. “Isto eram uns campos que não tinham nada.” O professor sacrifica tempo com a família, mas isso não o trava. “É um pouco de nós que estamos a dar aos outros, e ajudamos os reclusos. Há muitos ex-reclusos que passaram por aqui e que estão hoje a trabalhar na construção civil, graças a este projeto, que também lhes deu formação. E aqui não há telemóveis, conversamos, acaba por ser uma terapia.”
O Presépio ao Vivo de Priscos abriu portas no domingo e pode ser visitado nos dias 22, 25 e 29 de dezembro e 1, 4, 5, 11 e 12 de janeiro. Por lá passam curiosos de todo o país e até do norte de Espanha. “O que começou como uma iniciativa local, com um número reduzido de cenários e participantes, transformou-se no maior presépio vivo da Europa. Cresceu de forma notável”, conclui o padre João Torres.